N2 – Travessia em tempo de pandemia

Tanto fica por dizer de seis dias a cruzar Portugal em cima de uma bicicleta, vivendo a intensidade dos momentos

Castro Daire – Foto: Fernando Viegas

A Estrada Nacional 2, tal como a conhecemos hoje, parte de Chaves e termina em Faro. São mais de 700 quilómetros registados em marcos à beira da estrada. Se onde começa não parece haver dúvidas, ao longo do traçado percebem-se as várias alterações que se produziram ao longo dos seus 75 anos de existência.

Em relação ao final as opiniões são diversas. A certeza maior é que se trata de uma estrada que rasga o país de cima a baixo e nos mostra um pouco de Portugal tal como ele é, mais quilómetro menos quilómetro.

Percorrer a Nacional 2 é uma aventura que se vive na primeira pessoa, dependendo do meio de locomoção. Do conforto do carro até ao par de sapatilhas, a decisão cabe a quem tem vontade de se lançar neste desafio. Eu fi-la de bicicleta, o meu meio de transporte favorito quando o que está em causa é conhecer, ver, observar as cores, sentir os cheiros, parar onde quero a cada momento, sentir o ambiente dos locais, mas também as dificuldades e facilidades do traçado.

Foi em cima da bicicleta que revisitei locais e conheci outros pela primeira vez. Aos poucos, confirmei a opinião que já tinha sobre a heterogeneidade e a beleza das paisagens do nosso Portugal. Cruzar um país a pedalar, mesmo pequeno como o nosso, é também uma lição de vida com nuances de força de vontade e sacrifício. Olhar para as coisas tal como elas são. Umas simples e outras mais complexas. Ir em frente sem a preocupação do tempo.

 

Alvares, concelho de Góis – Foto: Fernando Viegas

Por ser uma via que se desenvolve sobretudo no interior, salta-nos à vista a desertificação e o abandono. As casas que perderam o telhado ou parte das suas paredes, as aldeias praticamente desertas, as manchas florestais enegrecidas dos incêndios que as dilaceraram ou os terrenos onde não se lança uma semente há muito tempo. E no fim tudo se conjuga numa imagem singular que resulta no Portugal dos nossos dias, onde há o muito e o pouco, o bom e o menos mau.

Pelo meio, há também as cidades e vilas onde o trânsito se faz de modo mais intenso, contrastando com o sossego absoluto ao nos afastarmos delas.

Mas há, sobretudo, uma vivência que se faz ao longo de uma estrada que outrora foi a força motriz de atividades económicas que se desenvolveram nas suas imediações. Muitas delas desapareceram, tal como desapareceram partes do seu percurso.

Quilómetro a quilómetro, ganha vida a sensação de liberdade, que tem o seu esplendor máximo em locais como as encostas do Douro vinhateiro – essa magnífica obra onde o homem esculpiu na natureza e fez brotar o supremo néctar da uva – as várias serras onde o ar arrefece, a estrada se inclina e apenas se escuta o sopro do vento. As margens dos rios com águas correntes e outras mais paradas na imponência das várias barragens. Por fim, a planície alentejana, onde o olhar se perde no horizonte, antes de enfrentarmos as agruras do Caldeirão sob um sol impiedoso. Na soma de tudo isto, surge a formação de um mosaico de cor, vida, beleza e encanto a que chamamos o nosso Portugal.

Alto do Caldeirão – Foto: Fernando Viegas

Mas nem tudo é alegria e felicidade. Não há como esconder. São tempos difíceis estes os que vivemos. Em cada paragem, seja para comer, descansar ou pernoitar, percebe-se o medo a cada canto. O vírus que mudou o mundo está muito presente em todo o lado, principalmente nas terras onde se transformou em surto e levou vidas sem dó nem piedade.

Por isso, as pessoas guardam distância e não nos recebem como gostariam. A hospitalidade de um povo é colocada à prova por razões de força maior. Nem as conversas são as de sempre e um bem-vindo à minha terra é substituído por um coloque a máscara e desinfete as mãos.

Uma paragem numa aldeia para dar os bons dias a um idoso que está sentado à sombra de uma árvore à beira da estrada a ver quem passa, transforma-se num sobressalto. O melhor mesmo é seguir em frente. Os afetos estão suspensos. Esperemos que regressem em breve.

E tanto, mas tanto fica por dizer de seis dias a cruzar Portugal em cima de uma bicicleta, vivendo a intensidade dos momentos, ao mesmo tempo que gravo na memória os minutos e as horas em que vi o meu país como ele merece ser visto. Com tempo. Com atenção. Com carinho e admiração. Porque quem nunca o viu assim, não sabe o que está a perder.

 

Fotos: Fernando Viegas

 

Autor: Fernando Viegas é um leitor do Sul Informação que gosta de conhecer o mundo a pedalar na sua bicicleta

 

 

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