Monchique reforça aposta na arqueologia tendo Cerro do Castelo de Alferce como pretexto

Já está oficializada a colaboração do Município de Monchique, com a Universidade de Évora e o Campo Arqueológico de Mértola

Susana Gomez, Cláudio Torres, Rui André e Fábio Capela, em Monchique – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Um campo-escola para estudantes de arqueologia de Portugal e até do resto da Europa deverá avançar no cerro do Castelo de Alferce, de modo a ter «uma intervenção arqueológica mais consistente ao longo do tempo». Para já, no Verão do próximo ano de 2021, em vez de um mês de escavações, como aconteceu este ano, haverá dois meses.

Por forma a apoiar o estudo e a valorização do Sítio Arqueológico do Cerro do Castelo de Alferce, a Universidade de Évora, o Campo Arqueológico de Mértola e o Município de Monchique assinaram há dias um acordo de cooperação. No fundo, trata-se de concretizar no papel aquilo que já estava a acontecer na prática: a colaboração entre estas entidades nas escavações arqueológicas que têm estado a ser feitas naquele local, nomeadamente as que decorreram este Verão.

O Sítio Arqueológico do Cerro do Castelo de Alferce, situado a cerca de dois quilómetros da aldeia, ocupa um total de 9,1 hectares no alto de um monte a 487 metros de altitude, de onde se avista uma paisagem que vai até Silves e mais além, a nascente, ou até ao mar, a sul.

Fábio Capela, o arqueólogo da Câmara Municipal de Monchique que tem sido o responsável pelos trabalhos de investigação mais recentes no local, considera que o cerro «não seria uma mera atalaia do Castelo de Silves, mas antes uma aldeia fortificada».

A ocupação começou nos tempos pré-históricos, entre o 3º e o 2º milénio antes de Cristo (escavações em 2017 comprovaram isso mesmo), terá sido interrompida na Idade do Ferro e na época romana (até agora não foram encontrados quaisquer vestígios) e retomada em tempos islâmicos, aliás em duas épocas sucessivas, entre o século IX e o período Omíada, na segunda metade do século X.

 

Susana Gomez, Cláudio Torres, Rui André e Fábio Capela – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Para lá da investigação científica, o Cerro do Castelo de Alferce, classificado como Sítio de Interesse Público em 2013, é considerado como um elemento chave para a revitalização da aldeia, que foi das mais atingidas pelo grande incêndio de 2018 e é sobretudo habitada por «uma população muito envelhecida».

Antes do grande incêndio, «esta era uma freguesia exemplo, tínhamos feito tudo na prevenção, nomeadamente a limpeza à volta da aldeia. Mas ardeu tudo, tudo, causando uma enorme mágoa nas pessoas, que deixaram de acreditar seja no que for. Por isso, tudo o que for inputs positivos, que apelem à autoestima das pessoas do Alferce, é muito importante», explicou o presidente da Câmara de Monchique, na reunião restrita onde se deu a assinatura do protocolo.

Nos projetos da Câmara, com apoio do PADRE – Plano de Ação de Desenvolvimento de Recursos Endógenos, está a criação de um centro de interpretação na aldeia, de onde partirá então um percurso pedestre de cerca de dois quilómetros até ao cerro do castelo e às ruínas arqueológicas, que serão valorizadas. Pelo meio, os visitantes passarão pelo Barranco do Demo, um local de grande beleza e importância geológica e cheio de lendas, a começar pelo próprio nome. Para aí aceder, haverá um passadiço e uma ponte suspensa sobre o barranco.

Além disso, Rui André, presidente da Câmara, revelou que o Município já pôs em marcha o processo que deverá levar à compra do terreno privado situado no topo do cerro do castelo, na zona mais importante do sítio arqueológico. «Já foi feita a avaliação do prédio e o seu proprietário está interessado em vender. Agora é uma questão de chegarmos a um acordo».

Cláudio Torres, o pai do Campo Arqueológico de Mértola, partindo desta experiência que recentemente completou 40 anos e que colocou aquela vila do interior alentejano no mapa, salientou que «a Câmara de Monchique não pode pagar este projeto de arqueologia o tempo todo. Isto leva anos e anos a consolidar. Tem que se tentar tornar isto autossustentável, transformando-o, em simultâneo, num projeto de desenvolvimento».

É que, salientou o decano arqueólogo, se não se fizer isso, «daqui a uns anos a Câmara muda e o projeto morre. Mas se o projeto tiver razão de sobrevivência, será muito diferente».

«Tem que haver um pequeno museu que justifique a visita, integrado num projeto de desenvolvimento local que enquadre tudo. É que, para já, a arqueologia não vai dar nada!», avisou Cláudio Torres.

 

A muralha interior, do século X – Foto: Fábio Capela | DR

Rui André concorda: «a partir do momento em que o local ganhe identidade própria e ganhe pernas para andar, venha o político que vier, aquilo mantem-se».

O autarca, que se confessa um apaixonado por património arqueológico, salienta que aquele é «um sítio que, por natureza, é atrativo», não só para os amantes da arqueologia, «mas até noutros aspetos, como as caminhadas, a geologia».

Para dar início ao projeto de valorização do cerro do Castelo de Alferce, e depois de um mês de escavações arqueológicas numa zona das muralhas e na cisterna milenar, o arqueólogo municipal Fábio Capela anunciou que, para 2021, a intenção é a de «pôr a entrada do castelo e um troço de muralha a descoberto». Até para que, quem se aventura a subir até ao alto, possa ver alguma coisa do castelo anunciado na placa castanha junto à estrada, cá em baixo.

Além disso, depois de «devidamente consolidada», também a cisterna irá «ficar a descoberto» e será mais um elemento de interesse para os visitantes.

Susana Gomez, professora e investigadora da Universidade de Évora e do Campo Arqueológico de Mértola, salientou que este protocolo de colaboração com a Câmara de Monchique é «a simbiose perfeita: nós precisamos de tirar os alunos [de arqueologia] da sala de aula e trazê-los para o terreno». Mas o facto de, durante alguns meses por ano, a aldeia de Alferce ser invadida por gente jovem e seus professores «também é muito bom para a própria terra».

Depois da assinatura do protocolo, o pequeno grupo desceu ainda até à galeria municipal, onde estão guardados sacos e caixas com os materiais recolhidos nas escavações. São «sacos e sacos» de cerâmica, na sua esmagadora maioria. Um estudante de arqueologia da Universidade de Évora vai começar agora estudar estes cacos, para a sua tese de mestrado. «Há aqui muito material por estudar, dá para muitas teses de mestrado», comenta Susana Gomez, segurando num pequeno fragmento de cerâmica.

 

Cláudio Torres e Susana Gomez visitam local onde o material das escavações está armazenado – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

«Da Pré-história Recente ao Medieval Islâmico: antigas ocupações humanas no Cerro do Castelo de Alferce» é o nome oficial do Projeto de Investigação Plurianual de Arqueologia (PIPA), já aprovado pela Direção-Geral do Património Cultural e que há-de durar quatro anos, até 2024.

É promovido pelo Município de Monchique, em parceria com as Universidades do Algarve e de Évora e Centro Arqueológico de Mértola, e apoio da Junta de Freguesia de Alferce.

O projeto reúne uma equipa multidisciplinar, que envolve investigadores nas áreas da arqueologia, zooarqueologia, arqueobotânica, arqueometria, história, geografia, geologia e ainda conservação e restauro.

Quando fala do Cerro do Castelo de Alferce, com o seu sistema defensivo islâmico formado por três recintos amuralhados não concêntricos, e onde há também vestígios da Pré-História recente (3º-2º milénios a.C.), os olhos de Fábio Capela brilham. É com entusiasmo que, perante uma pequena plateia atenta, composta pelo presidente da Câmara, os arqueólogos Cláudio Torres e Susana Gomez, e duas jornalistas, vai fazendo o ponto da situação do que se descobriu nas escavações deste Verão.

Mesmo para o Sul Informação, que lá esteve em reportagem no início de Setembro, há novidades interessantes. A principal tem a ver com as inscrições encontradas no reboco da cisterna.

Umas, mais recentes, feitas por picotagem, apresentam vários símbolos, alguns deles bem curiosos. O arqueólogo municipal salienta que vão recorrer «a um epigrafista, para os interpretar». Mas essas nem são as mais interessantes. É que há ainda inscrições islâmicas, «feitas por incisão, quando a argamassa estava fresca». Ou seja, foram feitas quando a cisterna estava a ser construída, talvez pelos seus construtores.

Fábio Capela mostra imagens das inscrições, fotografias feitas à noite com luz rasante. «Há duas cartelas, dois retângulos com esta escrita árabe», mostra. Cláudio Torres quer saber se já se sabe o que dizem. «Estas inscrições ainda não foram decifradas», responde Fábio. Mas sê-lo-ão, com a ajuda de um especialista. Que mensagem terão deixado os mouros que há mais de mil anos construíram esta cisterna para aí armazenar água?

 

Inscrições no interior da cisterna – Foto: Fábio Capela | DR

Mais do que uma cisterna, ela é um poço…de surpresas. Na parede das escadas que dão acesso ao interior, há uma data inscrita: 1879. O arqueólogo Fábio Capela aventa a hipótese de, também no século XIX, mas mais no início, a cisterna ter sido usada, já não para recolher água (os sismos ao longo dos séculos deixaram a sua marca destruidora nas paredes), mas como abrigo. «A estrutura poderá ter sido usada no século XIX, durante as Invasões Francesas ou pela guerrilha do Remexido». Ali bem perto, no Barranco do Demo, também há uma gruta que a tradição diz ter sido usada pelo famoso guerrilheiro miguelista algarvio.

Esclareça-se que, depois de devidamente escavada, registados e recolhidos todos os dados e artefactos encontrados, a cisterna voltou a ser tapada, com geotêxtil e terra, para garantir a sua conservação durante o Outono e Inverno. Enquanto não avançar a valorização do monumento, é assim que ficará.

Mas a campanha arqueológica do Verão passado incluiu também uma sondagem num troço oeste do recinto, apanhando duas muralhas: a interior (século X), ainda com 1,5 metros de altura, aparelho de pedra mais regular e «argamassada como revestimento», e uma segunda muralha (século IX), exterior, em pedra seca, sem argamassa, com «uma altura conservada de 60 centímetros».

Entre as duas muralhas, como o Sul Informação contou em Setembro, os arqueólogos encontraram um muro, que Fábio Capela diz ter sido «talvez uma estrutura habitacional, porque tem pavimento em argila».

Aqui, nas tais lixeiras que são a alegria dos arqueólogos (e não só), foram encontrados abundantes restos da fauna que era consumida pelos habitantes de então: cascas de amêijoas, espinhas de peixe, ossos de cabra, vaca, veado, javali, coelho.

Do ponto de vista dos artefactos, foram recolhidas muitos fragmentos de cerâmica (de panelas, potes, alguns púcaros, restos de um candil).

Pelo meio, mas certamente misturados em épocas posteriores, vestígios bem mais antigos, da Pré-História, como uma ponta de seta em sílex, o pedacinho de uma queijeira em barro e uma faquinha, também em pedra.

Fábio Capela já não tem muitas dúvidas de que o recinto mais exterior é mais antigo, quem sabe se «construído por um grupo de rebeldes do século IX» que aqui vieram em busca de refúgio, e o recinto interior é «um alcácer que é de construção mais recente».

 

Fábio Capela a desenhar a cisterna

Cláudio Torres, habituado a interpretar o que seriam as paisagens e as vivências destes mouros, salienta que se trata de «um tipo de povoados muito comum aqui no Sul».

O cerro do Castelo de Alferce, esta «cumeada que domina», «pela sua situação, também tinha uma certa ligação ao mar» e deveria desempenhar as funções de «posto de controlo regional». «É um sítio com uma paisagem fantástica, talvez com ocupação temporária», acrescenta o decano arqueólogo, para logo dizer: «ainda estamos no princípio da investigação».

«A serra algarvia serviu de barreira à expansão do feudalismo, que apanhou todo o Alentejo. Aqui havia pequenos proprietários, pequenas hortinhas, um mundo muito diferente da planície. Aqui não havia os grandes senhores, os latifundiários. A serra é pobre, é gado, é pouco interessante para vir atacar. A costa é rica, cheia de atividade e de comércio. Esta serra, no meio deste Sul ibérico, é muito conservadora. A serra é diferente, aqui são os mesmos por gerações e gerações, gente que se escondeu nos vales, com o seu gado», explica Cláudio Torres.

Para o arqueólogo, «a serra é muito conservadora, mantém tradições e hábitos». Por isso mesmo, salienta, «é uma zona muito interessante do ponto de vista da investigação».

Rui André, que ouve com muita atenção o que Cláudio Torres diz, remata: «estão a aparecer coisas que nos questionam muito, que nos indicam que a ocupação daquele espaço é muito anterior. E vai ser muito interessante perceber como viviam as pessoas daqueles tempos neste território».

É que, acrescenta o presidente da Câmara, fazendo uma ponte com o presente, «em Monchique estamos numa fase em que é preciso perceber e reconstruir a relação do homem com a Natureza, porque poderá ser a única forma de travar os incêndios que nos assolam». Quem sabe as lições que os monchiquenses de hoje poderão recolher dos monchiquenses de há mais de mil anos?

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e Fábio Capela | DR

 

 

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