A 31ª Cimeira Ibérica realiza-se no próximo sábado, dia 10 de outubro, na cidade da Guarda. Na agenda da cimeira a cooperação transfronteiriça e a articulação de uma estratégia conjunta para a recuperação económica.
De acordo com a informação disponível a “estratégia comum de desenvolvimento transfronteiriço” terá cinco eixos principais:
– Incentivar a mobilidade transfronteiriça, eliminar os custos de contexto e criar a figura do trabalhador transfronteiriço,
– Melhorar as infraestruturas e a conectividade territorial, internet e rede móvel: mais ferrovia e rodovia, melhorar os sistemas cartográficos para facilitar o projeto-piloto da rede 5G,
– Coordenar os serviços básicos como a educação, a saúde, os serviços sociais: o 112 transfronteiriço e o serviço de ambulância mais próxima,
– Promover o desenvolvimento económico e a inovação territorial,
– Promover os serviços ambientais, a energia, os centros urbanos e a cultura.
Antes, porém, de elencarmos as principais questões em aberto, não podemos deixar de passar em revista as linhas principais da geopolítica peninsular. A natureza das decisões políticas tomadas em 2020/2021, em razão dos meios envolvidos e da incerteza em que ocorrem, envolve um elevado custo de oportunidade e pode condicionar, pesadamente, o futuro das relações peninsulares.
A geopolítica das relações peninsulares
Em primeiro lugar, sabemos que a fronteira ibérica é uma das mais antigas, estáveis e, também, menos desenvolvidas da União Europeia, um feito digno de registo para a nossa cooperação bilateral, sabendo nós que a cooperação de proximidade é um recurso relativamente abundante que pode ser usado de forma inteligente e colaborativa pelos dois vizinhos. Por razões historicamente bem conhecidas, estamos hoje onde estamos.
Em segundo lugar, sabemos que mais integração peninsular só se recomenda se tivermos, também, mais e melhor integração europeia. Esta é uma condicionante geopolítica da maior importância e deve estar sempre presente no nosso pensamento geoestratégico para a próxima década.
Em terceiro lugar, sabemos, igualmente, que o Mediterrâneo e o Atlântico, depois das primaveras árabes, do Brexit, da suspensão do tratado transatlântico e da presidência Trump podem gerar consequências geopolíticas imprevisíveis sobre o sudoeste peninsular, a justificar a criação de um posto de observação privilegiado neste canto mais ocidental da península euroasiática.
Em quarto lugar, sabemos que a Espanha, devido às consequências sanitárias e socioeconómicas da covid 19 e às suas sequelas comunitárias e regionais, é uma verdadeira incógnita para os próximos tempos e não deixa augurar nada de especialmente auspicioso em matéria de cooperação transfronteiriça, em especial, tudo o que resulta da sua previsível turbulência regionalista.
Em quinto lugar, na atual fase da zona euro, não existe ainda doutrina e estratégia para uma Europa das Regiões, desde as Macrorregiões de 50 a 60 milhões de cidadãos (a península ibérica) até às Euro-regiões e Euro-cidades transfronteiriças; apesar de já haver alguns ensaios há, ainda, um longo caminho a percorrer para estas “jovens comunidades territoriais” de países, regiões e cidades.
Cooperação transfronteiriça, as questões pendentes
Tendo tudo isto em conta, vejamos agora as principais questões políticas pendentes nas relações peninsulares, no preciso momento em que se preparam os dois principais instrumentos europeus de apoio, o programa de resiliência e recuperação (até 2026) e o quadro financeiro plurianual (até 2027), aos quais acrescem os recursos nacionais, públicos e privados. Sabemos já, pela retórica política constantemente reafirmada, que a fachada transfronteiriça deverá ser transformada numa nova centralidade do mercado único ibérico e que esta é uma oportunidade que não se repetirá. Mas para lá da retórica política vejamos o que está pendente e merece a nossa atenção.
– Em primeiro lugar, os missing links da rede rodoviária são perfeitamente realizáveis no horizonte temporal do programa de recuperação e resiliência; entre as ligações mais referidas estão Bragança/Sanabria, Nisa/Cedillo e Alcoutim/Sanlucar;
– Em segundo lugar, as ligações ferroviárias que articulam o nosso corredor internacional sul (Sines, Setúbal e Lisboa) com a fronteira espanhola de Badajoz e as futuras ligações a Madrid através da rede ibérica do sudoeste; a dificuldade maior reside no escalonamento temporal dos investimentos e no custo de oportunidade dos capitais públicos envolvidos (apesar das subvenções europeias) num momento em que acumulamos uma enorme dívida pública;
– Em terceiro lugar, em linha com o pacto ecológico europeu e os respetivos programas de descarbonização, quais são os investimentos emblemáticos que os dois países ibéricos estão dispostos a realizar, no quadro, por exemplo, do mercado ibérico de eletricidade (Mibel) e da matriz energética de recursos renováveis?
– Em quarto lugar, e em linha com a agenda digital europeia, quais são os investimentos que os dois países estão dispostos a fazer para realizar a cobertura digital das regiões fronteiriças e quais são as áreas e os projetos-piloto para instalar as primeiras plataformas digitais colaborativas;
– Em quinto lugar, e mais uma vez no âmbito do programa de recuperação e resiliência, qual é a disposição dos dois países para um programa ambicioso na área das alterações climáticas, dos recursos hídricos (linhas de água), mas, também, de regeneração do capital natural e dos serviços de ecossistema (áreas de paisagem protegida)?
– Em sexto lugar, estão os dois países dispostos a eleger duas ou três Euro-cidades, – Chaves/Verin, Elvas/Campo Maior/Badajoz e Castro Marim/VRSA/Ayamonte – para implementar serviços comuns transfronteiriços, por exemplo: a gestão de serviços de transporte, saúde e educação, de serviços de emprego e formação profissional, de serviços ambientais e energia, de redes de microcrédito regional e crowdfunding, de gestão de espaços transfronteiriços de coworking?
– Em sétimo lugar, seria muito positivo preparar, em conjunto com as instituições de ensino superior e os centros de investigação, um grande programa de cooperação na área da investigação científica e tecnológica, com a circulação de estudantes, a titulação conjunta de diplomas, residências científicas e programas de estágios profissionais com as associações empresariais;
– Em oitavo lugar, estão os dois países dispostos a criar o estatuto do trabalhador transfronteiriço e, a título experimental, uma via verde para os jovens e os seniores, em especial, os doentes de grande risco;
– Em nono lugar, os dois países ibéricos podem criar uma estrutura comum de alto nível para resolução de conflitos, pois é muito provável que a política nuclear (Almaraz), a política de recursos hídricos (transvases), a política migratória, a política de combate às alterações climáticas, a política sobre Gibraltar (Reino Unido), pelo menos estas, estejam na origem de alguns equívocos e mal-entendidos;
– Em décimo lugar, os dois países podem criar uma estrutura de missão conjunta para gerir em comum o programa operacional de cooperação transfronteiriça para 2020-2030.
Notas Finais
Agora que se prepara o lançamento do programa de resiliência e recuperação económica (PRRE) e o próximo quadro financeiro plurianual (QFP) para a década 2020-2030, o lançamento de um “grande programa de redes físicas e digitais para o sudoeste ibérico” é sempre possível. Sem prejuízo deste programa para a década, creio, porém, que o software da cooperação transfronteiriça não pode esperar mais tempo.
No contexto do mercado único digital, a existência de universidades e institutos politécnicos, comunidades intermunicipais, associações empresariais e cidades importantes ao longo da fronteira, é uma excelente oportunidade para iniciativas mais arrojadas de cooperação. De facto, em plena sociedade digital, no tempo dos hubs tecnológicos, das apps, das start-ups e dos espaços de coworking, estamos obrigados a dar provas concretas desta nova inteligência coletiva territorial.
E por que não começar pelas Euro-cidades já existentes? Sugiro que a Euro-cidade do Caia e/ou do Guadiana, pela sua centralidade, seja considerada um projeto emblemático do programa de cooperação transfronteiriço, em termos de transição ecológica, transição digital e desenvolvimento sustentável e que, por exemplo, os 10Km entre Elvas e Badajoz seja uma área-piloto exemplar de integração peninsular.
A terminar, uma última palavra para a cooperação ibérica no plano europeu. Na década que agora começa, os dois países ibéricos têm de defender a política de coesão territorial de modo muito determinado: nos impactos do mercado único digital, na harmonização fiscal, na atribuição das ajudas de estado, na disciplina orçamental e na perequação regional da zona euro, no reforço dos agrupamentos europeus de cooperação territorial e de um direito específico de cooperação transfronteiriça.
E, já agora, alguém está em condições de prever a equação orçamental da próxima década e os impactos orçamentais de todo este exercício ao longo da década, num país com uma dívida pública e privada gigantesca e confrontado com uma das maiores crises económico-social da sua história?
Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve
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