A eleição das CCDR, cultura política e administração pública

A política já não tem o poder de obrigar, ela envelheceu, perdeu autoridade. Está sobrecarregada, é cada vez mais superficial, muitas vezes à beira da trivialidade e da ligeireza

Na terça-feira, dia 13 de outubro, realizaram-se as primeiras eleições para a presidência das CCDR. Eleições indiretas, através de um colégio eleitoral formado por eleitos locais, maioritariamente de extração partidária. É um bom pretexto para uma breve reflexão sobre cultura política e administração pública.

A transformação da cultura política de extração partidária

A cultura política em Portugal tem, como bem sabemos, uma extração essencialmente partidária. Em primeiro lugar, o exclusivismo partidário na estruturação e formação da cultura política dos cidadãos que, de resto, foi sendo alimentado pelo sistema eleitoral proporcional de listas fechadas e pelo controlo apertado das direções partidárias sobre a seleção de candidatos aos círculos plurinominais.

Em segundo lugar, o rotativismo partidário de longa data do bloco central que estabeleceu uma espécie de acordo político tácito no que diz respeito à proteção dos interesses particulares dos dois maiores partidos e à distribuição dos respetivos benefícios.

Em terceiro lugar, alguma complacência da chamada sociedade civil que preferiu, desde muito cedo, a cumplicidade e os jogos de sedução político-partidária para resolver e acomodar os seus problemas.

Este imenso terreno escorregadio foi encorpando com o tempo enquanto crescia a abstenção eleitoral e a indiferença política e se estreitava o campo de recrutamento de novos militantes, tendo a confiança/lealdade/obediência como condição de acesso e sobrevivência.

É deste conglomerado de interesses, oportunidades e obediências, muito variados e contraditórios, que se alimenta a cultura política em Portugal em redor do que pode ser denominado como o partido-estado e a equação-orçamental do partido-estado.

Hoje, o campo de recrutamento parece estar circunscrito à arregimentação partidária, pois o partido-estado é, ainda, um campo de treino por excelência, por onde circulam e se formam as chamadas elites partidárias e se faz a reciclagem dos dirigentes partidários.

Este campo de treino é imenso, pois o partido-estado tem ramificações fora do aparelho de Estado, uma vez que se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vai e vem permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental.

É, de resto, esta gigantesca corporação e a sua cultura política de conveniência que formam o que costuma designar-se como a “inércia do sistema”. Mas há alguns sinais de mudança.

Cultura política e administração pública

No século XXI, a tecnologia política do Estado-administração está sujeita a uma erosão permanente se pensarmos, por exemplo, na revolução digital, nos movimentos de globalização, de integração supranacional e de descentralização infranacional, no conjunto, aquilo que hoje a literatura designa como processos políticos de “governação multiníveis”.

Numa aceção ampla de Estado-administração e perímetro orçamental, estão em jogo as grandes funções do Estado, a saber:
i) o Estado soberano e as missões de soberania,
ii) o Estado social e os regimes de proteção social na sua aceção mais ampla,
iii) o Estado fiscal e toda a estrutura dos benefícios e estímulos fiscais,
iv) o Estado empresarial e os limites do perímetro empresarial do Estado,
v) o Estado administrativo, a administração autónoma e a reforma da administração desconcentrada regional,
vi) o Estado local e a reforma da administração local,
vii) o Estado financeiro e os limites constitucionais da responsabilidade fiscal e financeira do Estado.

As elites do bloco central circulam, obviamente, nos territórios imensos definidos por estes vários subsectores do Estado, razão pela qual não há uma verdadeira reforma do Estado e da estrutura da despesa pública correspondente, mas apenas pequemos ajustamentos incrementais tolerados.

É este imenso bloco político-partidário que está, aparentemente, posto em causa com a transformação digital que se avizinha rapidamente.

Com efeito, numa sociedade cada vez mais digitalmente distribuída e assente num número crescente de plataformas colaborativas, a base territorial mais tradicional será progressivamente dessacralizada enquanto a “coprodução e a cogestão da economia digital” serão uma realidade em modo crescente.

A afirmação desta liberdade radical da sociedade política, para lá dos estritos limites político-partidários, alterará substancialmente a natureza do espaço público, tal como o conhecemos, isto é, hierárquico, vertical, clientelar e corporativo.

Se o Estado-administração não tomar a iniciativa, ele próprio, de fazer atempadamente a modernização da sua cultura política e técnica, tarde ou cedo entrará em rota de colisão com o nosso radicalismo mais individualista e mesmo tribal, expressos por intermédio dos múltiplos dispositivos da economia digital. A política, tal como a conhecemos, será uma vítima material desta circunstância.

Administração pública e cogestão nos novos mercados do trabalho

Uma transformação relevante na nova sociedade tecnológica e digital diz respeito às alterações profundas nos mercados de trabalho e emprego tal como os conhecemos ainda hoje. Em particular, a tradicional intermediação comercial, administrativa e institucional passará por um profundo emagrecimento e muitas das suas atividades transitarão diretamente para os clientes/utilizadores através de operações e procedimentos colaborativos e cooperativos ditos de economia de partilha.

O mesmo se diga do grande setor da solidariedade social que poderá ser “adjudicado” por IPSS e ONG com estatutos diversos, também do setor do ambiente e economia circular e, ainda, o setor da cooperação e desenvolvimento com países terceiros.

A estes setores teremos, também, de juntar duas grandes áreas com marca muito impressiva, a saber, a educação e investigação científica e tecnológica e todo o setor criativo e cultural, já para não falar do trabalho de voluntariado que geralmente acompanha muitas destas atividades.

A este imenso conjunto de setores em trânsito paradigmático damos aqui a designação de “4º setor”.

A inovação tecnológica e social no 4º setor permitirá que as diferentes comunidades de utilizadores e fornecedores organizem novos formatos de prestação de serviços – coprodução e cogestão – com suporte em plataformas tecnológicas cujas aplicações serão instaladas nos telefones móveis dos mais jovens e menos jovens.

Algumas destas aplicações indicarão, mesmo, “perfis ocupacionais pluriactivos” com várias atividades e contagens de “tempo de serviço” respetivos. Nesses perfis ocupacionais, o trabalho a tempo parcial estará associado, provavelmente, a uma formação profissional, a um banco do tempo, a uma prestação de serviço em regime freelance e em “atividades úteis à comunidade” como, por exemplo, os serviços ambulatórios ou a agricultura social e comunitária.

Ao mesmo tempo, assistiremos a uma interação profunda e intensa deste 4º setor emergente com o setor público mais convencional, em especial em tudo o que diga respeita às prestações sociais, à sociedade sénior e ao envelhecimento ativo onde se aguarda uma verdadeira revolução nos cuidados continuados e no serviço ambulatório.

Notas Finais

Perante esta radicalidade que nos é proporcionada pela revolução tecnológica e digital, o mundo muito dificilmente caberá em classificações, tipologias ou culturas existentes.

Iremos necessitar de outras linguagens para lidar com singularidades, diferenças, exceções, descontinuidades, contrastes. Ou seja, perante tantas linguagens especializadas e outros tantos códigos de linguagem teremos uma dificuldade crescente em comunicar.

Isto é, estaremos perante um verdadeiro desconcerto comunicativo, donde a extrema necessidade do trabalho transdisciplinar e colaborativo.

É nesta centrifugação da política, onde maior interdependência significa, também, maior contingência, que é avisado dispor de mecanismos e procedimentos de negociação institucional sólidos para lidar com a contingência e a incerteza.

Se não formos capazes de arbitrar e regular o dissenso e o consenso, podemos perder a próxima década, uma das mais importantes das nossas vidas.

Além disso, importa sublinhá-lo, é preciso proteger a política da própria política, da sua pretensão de ter competência para tudo.

A política já não tem o poder de obrigar, ela envelheceu, perdeu autoridade. Está sobrecarregada, é cada vez mais superficial, muitas vezes à beira da trivialidade e da ligeireza. Pelo menos “esta política vertical” que conhecemos”.

Ora, no caso do Algarve, uma região onde tudo coincide com tudo – Nuts II e Nuts III, AMAL e CIM, Distrito e Região – quero crer que a eleição da presidência da CCDR é um sinal de esperança política, se a falta de bom senso não conduzir ao sufoco político. Lembro que, na sociedade do conhecimento, o saber contará tanto como o poder e esta é uma grande transformação da política.

Nesta sociedade o Estado-administração precisará de aprender com os erros, enquanto os cidadãos, uma parte pelo menos, espero, irão constituir comunidades de autogoverno e aliviar um “estado sobrecarregado” onde facilmente se aloja o tráfico de influências, a cumplicidade e a pequena ou grande corrupção.

 

 

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