Este vírus que nos está a endoidecer

Como diz Bernard-Henri Lévy, “contra um mundo refém do medo onde o vento da loucura sopra, temos de voltar à confiança do aperto de mão, dos abraços e das viagens”

Quando me propus escrever sobre este momento que a humanidade está a viver, sabia que podia entrar em areias movediças. Já tanto se falou sobre a COVID-19 e o impacto mundial da pandemia em tantas vertentes, que dificilmente a minha voz traria algo de novo.

E eis que encontro o livro de Bernard-Henri Lévy, Este Vírus que nos Enlouquece, e as minhas ideias, antes meio turvas relativamente a tudo o que nos está a acontecer, começaram a clarear. A visão deste autor, filósofo e escritor, considerado pelo The Boston Globe «talvez o mais proeminente intelectual na França da atualidade», materializou em palavras o que já sentia (e sinto), mas que não estava a conseguir verbalizar.

À medida que fui folheando páginas, comecei a reparar na mundividência, a retirar-lhe véus e a concordar cada vez mais com as contestações de Bernard-Henri Lévy. Quando a minha mãe, com a humildade dos seus 75 anos, me disse “uma pessoa sai à rua e não vai descansada, sai sempre com medo de vir doente e não saber”, percebi que estamos, acima de tudo, perante uma pandemia do medo e uma cegueira latente.

Mais do que um problema de saúde (e descanse, não sou daqueles que pensa que o vírus não existe e que não há pessoas a morrer todos os dias com a COVID-19), o planeta está a viver momentos de temor. E isso sente-se nos olhares de máscara sobranceiros de desconfiança, nos apertos de mão, abraços e beijos inexistentes.

Devemos manter o distanciamento social, é verdade, mas há pequenos rituais (como o famoso toque de cotovelo) que devemos introduzir, para que a perceção do “eu estou aqui, tu estás aí, mas eu não sou sozinho”, continue.

Somos seres sociais, mas também de forma fácil — e principalmente, quando sentimos que o Outro pode ameaçar a nossa existência — nos fechamos nas nossas conchas isoladas de medo. O medo é um gatilho poderoso de tudo o que de mais vil há no ser humano.

Outro aspeto que o livro aborda e que me despertou consciência foi a tentativa de utilização da “urgência sanitária e do delírio higienista” para a redução da liberdade dos cidadãos ou para instrumentalizar o vírus como uma forma de julgamento divino, uma punição por uma “Gaia maltratada”.

Neste aspeto, munido de factos e acontecimentos históricos, Bernard-Henri Lévy recordou-me a peste negra que dizimou quase metade da população europeia no século XIV, a praga de Atenas, relatada por Tucídides, a praga de Tebas, a tosse de Perinto, onde a gregos inventaram a palavra epi demos – literalmente, sobre o povo – a primeira calamidade que, ao contrário da ideia bíblica de «praga», que ataca «primogénitos», recai sobre todos, independente de idade, sexo ou posição social. E nesses momentos da história da humanidade, não existia a globalização, o esgotamento dos combustíveis fósseis ou as alterações climáticas.

Os vírus (tal como as bactérias) existem desde o “princípio dos tempos”. Este tipo de desastres sempre existiu. O século XX teve três grandes pandemias de gripe que parecem esquecidas: a gripe espanhola de 1918 a 1920, a gripe asiática de 1957 a 1958 e a de Hong Kong, de 1968 a 1970. A primeira foi a mais letal e grave de todas. Causada pelo H1N1, matou 50 milhões de pessoas. A segunda, com o H2N2, matou 2 milhões. A terceira, do H3N2, tirou a vida de 1 milhão de pessoas. A memória do povo é demasiado volátil.

Os vírus não são mensageiros, não são a mão castigadora contra a humanidade e mais ainda, não precisamos de nos preocupar, porque não somos nós que os provocamos. Eles simplesmente fazem parte deste planeta. Ponto final. E “são muito mais a arma de um crime da natureza contra o homem do que sinal da violência dos homens contra a natureza”.

Como tantas outras coisas que procuramos racionalizar, porque não compreendemos em total profundidade o seu “porquê”, precisamos de entender que os vírus, simplesmente existem, não pensam, não vivem e devem a sua existência enquanto “entidade”, só porque os humanos ao “dar-lhe nome, o retiraram do nada”.

É profundo. Talvez demasiado complexo, mas tira-nos peso e faz-nos olhar para esta fase como “apenas” o que ela é no todo da história da humanidade. Um momento, que estamos a viver, e ao qual nos temos de adaptar, de forma consciente, mas sem medo ou pânico, sem loucura, com a certeza de que não vai durar para sempre e que, não, depois não vamos ser melhores pessoas. Vamos continuar a ser o que sempre fomos: uns conscientes e preocupados, outros alienados e desinteressados.

Como diz Bernard-Henri Lévy, “contra um mundo refém do medo onde o vento da loucura sopra, temos de voltar à confiança do aperto de mão, dos abraços e das viagens”, claro está, enquanto necessário, com distanciamento social em espaços com desconhecidos, higiene das mãos e uso de máscaras.

Precisamos de encarar com racionalidade esta pandemia que não é a primeira, nem foi a mais mortífera que a humanidade até hoje conheceu. E não será, com certeza, a última.

Não pretendo com este artigo trazer nenhuma nova perspetiva sobre a dicotomia Humanidade versus COVID-19, pretendo antes partilhar em jeito de “resenha literária”, a visão de Bernard-Henri Lévy (que subscrevo), que consolida, com o recurso à história, à filosofia e ao pensamento, um olhar mais racional de tudo o que nos está a acontecer.

Ainda é demasiado cedo para conseguirmos perceber o verdadeiro impacto deste vírus em cada um de nós, que lhe sobrevivermos. Ainda estamos todos na ilha. Que consigamos não ensandecer, que consigamos continuar a viver com o bom e o mau que temos dentro de cada um de nós, e aprender o que nos for possível, sem aquela ilusão “nada será como dantes”. Afinal, somos apenas humanos. Convém não nos esquecermos disso.

 

 

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