A União Europeia e o seu estado em 2020: “estamos unidos na diversidade e na adversidade”

“O futuro será o que construirmos. E a Europa será o que quisermos que seja. Por isso deixemos de a menosprezar. E trabalhemos em prol dela. Façamos com que se torne mais forte. E construamos o mundo em que queremos viver”

Assistimos esta semana ao Discurso do Estado da União 2020 proferido pela Senhora Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

O Discurso “Construir o Mundo em que queremos Viver: uma União Vital num Mundo Fragilizado”, cuja tradução oficial está disponível aqui, é claramente alicerçado na reafirmação dos valores europeus de confiança, solidariedade, equidade, justiça, cooperação, boa-fé, estabilidade.

É um discurso de reconhecimento dos desafios e das adversidades, mas também um discurso de esperança e de exortação a um trabalho coletivo inadiável.

Confrontados com uma crise pandémica que obrigou a uma disruptiva alteração do nosso modus vivendi enquanto cidadãos, trabalhadores, diria até como pessoas, com a necessidade de confinamento e a uma paragem “por decreto” das nossas economias, urge “sairmos desta situação de fragilidade e conquistarmos uma nova vitalidade”.

Cientes de que “redescobrimos a importância daquilo que temos em comum”, “é a nossa oportunidade de concretizarmos a mudança pela força da nossa vontade (…) criando novas oportunidades para o mundo de amanhã e não apenas limitando-nos a solucionar as contingências do mundo de ontem”.

Como salientou Ursula von der Leyen, “a principal prioridade deve consistir em sairmos desta situação em conjunto” e “lidar com a pandemia com extremo cuidado, responsabilidade e unidade”. É, pois, essencial construir uma união mais forte no domínio da saúde e reforçar a capacidade europeia em termos de preparação e gestão de crises.

A pandemia mostrou simultaneamente a fragilidade do sistema global e a importância da cooperação para superar desafios coletivos. A UE assumiu a responsabilidade de liderar a resposta à pandemia a nível mundial, mobilizando de forma ímpar a sociedade civil, o G20, a OMS, mais de 40 países com o fito de mobilizar mais de 16 000 milhões de euros para financiar a investigação sobre vacinas, testes e tratamentos para o mundo inteiro.

A crença nas instâncias internacionais como a ONU, a OMS e a OMC foi confirmada num quadro de necessidade de revitalizar e reformar o sistema multilateral, numa mudança por via da deliberação e não da destruição.

A pandemia mostrou-nos também que as instituições europeias podem e conseguem agir de forma célere e determinada: a Comissão propôs o programa NextGenerationEU e um orçamento renovado em tempo recorde, o Conselho aprovou-o em tempo recorde e o Parlamento Europeu tem-se esforçado por votá-lo o mais rapidamente possível.

Pela primeira vez, a título excecional, a Europa criou os seus próprios instrumentos comuns para complementar os estabilizadores orçamentais nacionais.

Tratou-se efetivamente de um momento de unidade notável e um “feito do qual nos devemos orgulhar coletivamente”. Importa pois manter o rumo face à incerteza que ainda vivemos.

As economias precisam de apoio político permanente e importa encontrar um ponto de equilíbrio rigoroso entre a prestação de apoio financeiro e a garantia de estabilidade orçamental.

E a Europa pode fazê-lo efetivamente com base numa “economia com humanidade” que “protege dos grandes riscos da vida: doença, infortúnio, desemprego ou pobreza”, numa economia social de mercado que “proporciona estabilidade e ajuda a absorver melhor os choques”, uma economia que “cria oportunidades e prosperidade”.

E com a afirmação de que “a União se esforça por proteger toda a gente”, com enfoque nas pessoas, “ninguém fica para atrás”, nas PME, com a asserção de que “a dignidade do trabalho deve ser considerada sagrada”.

Muito relevante foi a intenção deixada de apresentação de uma proposta legislativa para ajudar os Estados-Membros a criar um quadro europeu para o salário mínimo.

O discurso abordou naturalmente os desafios com que nos deparamos nos tempos complexos que vivemos enquanto indíviduos/cidadãos europeus e sociedade, no sentido de pertença a este espaço que congrega os 27 Estados-Membros.

Abordarei aqui a dupla transição ecológica e digital, pela sua importância para os cidadãos individualmente considerados, para as instituições, para as empresas, para os Estados.

“A urgência de uma ação acelerada quanto ao futuro do nosso frágil planeta” é consubstanciada no Pacto Ecológico Europeu, o plano europeu para operar a transformação necessária de tornar a Europa o primeiro continente climaticamente neutro até 2050, aumentando a meta de redução de emissões no horizonte 2030 para pelo menos 55%, com base na avaliação de impacto realizada e que mostra que a economia e indústria europeia conseguem fazê-lo. O objetivo para 2030 é assim “ambicioso, exequível e benéfico para a Europa”. Temos hoje “mais tecnologia, mais perícia e mais investimento” e “estamos já a enveredar por uma economia circular com uma produção carbonicamente neutra”.

37% do instrumento europeu de recuperação “NextGenerationEU” servirá diretamente para a consecução dos objetivos do Pacto Ecológico Europeu. “Ao mesmo tempo que ultrapassamos as dificuldades em conjunto, também temos de ser a força que nos impele rumo ao futuro de amanhã. Agora é a nossa responsabilidade de pôr em prática e construir um mundo mais forte para viver – um mundo servido por uma economia que reduz as emissões, estimula a competitividade, reduz a pobreza energética, cria postos de trabalho compensadores e melhora a qualidade de vida.”

No espaço de algumas semanas, assistimos a anos de inovação e transformação digital. O desígnio de fazer desta a “Década Digital da Europa” implica adotar um plano comum para a Europa digital com objetivos claramente definidos para 2030, como a conetividade, as competências e os serviços públicos digitais, seguindo princípios claros: o direito à privacidade e à conetividade, a liberdade de expressão, a livre circulação de dados e a cibersegurança.

O investimento de 20% do instrumento europeu de recuperação no setor digital é um sinal de querer “liderar o caminho, pela via europeia, rumo à era digital”.

Como evidenciou a Senhora Presidente da Comissão Europeia, uma verdadeira economia dos dados é um poderoso motor de inovação e de criação de novos empregos.

São necessários espaços comuns de dados, o que contribuirá para apoiar ecossistemas de inovação a que as universidades, as empresas e os investigadores poderão aceder e colaborar no domínio dos dados.

A construção de uma nuvem europeia no âmbito do instrumento europeu de recuperação, com base no projeto GaiaX, é, pois, um propósito que deverá ser alavancado o quanto antes.

Assumir a liderança digital com foco em três domínios: dados, tecnologia (com destaque para a inteligência artificial e regras aplicáveis à mesma) e infraestruturas, nomeadamente com a expansão do 5G, 6G, fibra e investimento em conetividade segura, é uma necessidade incontornável. Tudo sopesado permitirá assegurar a soberania digital da Europa.

A propósito deste dois grandes desafios, digital e ecológico, quero aqui reiterar a importância do papel da Administração Pública no contributo para os desígnios acima apontados, mormente com a consolidação do green procurement e do e-procurement. Temos que dar o nosso contributo para moldar o mundo em que queremos viver, um mundo em que utilizamos as tecnologias digitais para construir uma sociedade sustentável e ecológica.

Mais do que nunca a Administração Pública, alicerce fundamental de um Estado de Direito democrático e social, tem de estar à altura da responsabilidade de inovar, de continuar a modernizar-se, de se capacitar para prestar eficientemente e com qualidade o serviço público ajustado às necessidades dos cidadãos, como, aliás, é evidenciado na Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da Administração Pública 2020-2023, disponível aqui.

Para que isso aconteça, é necessário continuar a investir nas competências, nomeadamente digitais, dos trabalhadores em funções públicas e outras emergentes, é essencial privilegiar modelos de gestão das organizações públicas assentes no trabalho em rede (e sim, isso implica esbater os silos que ainda subsistem) e é preciso dotar a Administração das pessoas e dos recursos fundamentais para a prossecução das suas atribuições.

As questões geoestratégicas foram pedra de toque, com referência às grandes potências mundiais China e Rússia e o robustecimento da posição intransigente da UE dos valores da democracia e dos direitos humanos.

Ursula von der Leyen referiu-se igualmente à necessidade de “um novo início com velhos amigos” – em ambos os lados do Atlântico e em ambos os lados do canal da Mancha.

Evidenciou que a aliança transatlântica deve ser sustentada numa nova agenda transatlântica e num reforço de uma parceria bilateral no comércio, na tecnologia e na fiscalidade.

No que ao Brexit concerne, não se coibiu de citar Margaret Thatcher: “o Reino Unido não rasga tratados”.

A questão complexa da migração foi abordada do ponto de vista humano e humanitário, com o compromisso de a Comissão apresentar, para a semana, o novo Pacto sobre a Migração, deixando o repto de que a migração é um desafio europeu e toda a Europa deve fazer a sua parte.

O enfoque dado na parte final do discurso ao Estado de Direito, com a adoção antes do final do mês do primeiro relatório anual que abrangerá todos os Estados-Membros, e a garantia de que o dinheiro do orçamento e do NextGenerationEU será protegido contra a fraude, corrupção e conflito de interesses, parece-me ser de reter.

As alocuções “Temos o dever de estar sempre atentos para cuidar e preservar o Estado e Direito” e “Os valores europeus não estão à venda” são de especial importância.

Na reta final do Discurso, num pendor humanista, a Presidente da Comissão evidenciou que “os progressos na luta contra o racismo e o ódio são frágeis – conquistam-se a muito custo, mas perdem-se muito facilmente”, por isso “a luta contra o racismo nunca será facultativa”.

Ademais, “ser o que somos não é uma questão de ideologia, é a nossa identidade. E ninguém pode privar-nos dela.”

A Comissão apresentará, por isso, uma estratégia para reforçar os direitos das pessoas LGBTQI e, neste contexto, será promovido o reconhecimento mútuo das relações familiares na UE – quem for reconhecido como progenitor num país, deve ser reconhecido como progenitor em qualquer outro país. O combate à discriminação e à desigualdade também passa por aqui.

Da leitura do Discurso do Estado da União 2020, evoco a expressão particularmente feliz usada por Von Der Leyen: “A diferença é a essência da humanidade”.

A Senhora Presidente da Comissão Europeia terminou o seu Discurso salientando que “estamos unidos na diversidade e na adversidade”.

O mundo em que queremos viver é aquele em que trabalhamos juntos para ultrapassar as nossas diferenças e nos apoiamos mutuamente quando os tempos são difíceis.

Numa referência à geração mais jovem europeia, reporta-se à lição que os mais novos nos ensinam: a de não permitir que os obstáculos nos impeçam de seguir o nosso caminho, de não deixar que as convenções nos bloqueiem, de aproveitar o momento para fazer o que é preciso ser feito.

“Quando tivemos a opção de seguir em frente sozinhos, como fizemos no passado, utilizámos a força combinada de 27 países para dar a esses 27 países uma oportunidade para o futuro. Mostrámos que estamos nisto juntos e que vamos sair disto juntos”.

“O futuro será o que construirmos. E a Europa será o que quisermos que seja. Por isso deixemos de a menosprezar. E trabalhemos em prol dela. Façamos com que se torne mais forte. E construamos o mundo em que queremos viver”.

Em tempos de adversidade, o ser humano consegue demonstrar o melhor de si e do que é capaz de fazer. Que nos sobre a coragem, a motivação, o engenho, o talento, a dedicação e a confiança de, homenageando os nossos antecessores, fazermos desta Europa o projeto europeu que ambicionamos para nós e para as gerações futuras.

 

 

Autora: Inês Morais Pereira é Jurista e Mestranda em Gestão e Políticas Públicas

 

 



Comentários

pub