A Grande Colisão

No preciso momento em que a alta velocidade da rede 5G está para chegar, é real o risco de uma “grande colisão por excesso de velocidade”

Com a convergência das redes 4G e 5G chegam as tecnologias mais disruptivas, mas chega, também, o risco de uma grande colisão. Digamos que todas as tecnologias imersivas, intrusivas e invasivas irão colidir, tarde ou cedo, com os seus potenciais destinatários.

O que importa sublinhar nesta altura, no preciso momento em que a alta velocidade da rede 5G está para chegar, é o risco muito elevado de uma “grande colisão por excesso de velocidade”.

De facto, o coronavírus mostra-nos que está iminente uma grande colisão entre o infinitamente grande dos macro organismos, os seres humanos que nós somos, e o infinitamente pequeno dos micro organismos, como é o caso da Covid-19.

Esta grande colisão tem, ainda, uma expressão eloquente no divórcio que se consumou entre as ciências naturais e as ciências sociais e poucos autores foram capazes de estabelecer relações fiáveis de coevolução entre esses dois ramos das ciências.

A ligação umbilical entre as ciências naturais e as ciências sociais foi interrompida.

Se pensarmos na manipulação genética, na clonagem, nas técnicas de fertilização e nos mapas genómicos, se pensarmos na relação entre alimentação, saúde e longevidade e no impacto desta relação na vida das pessoas concretas e na representação que elas fazem de si mesmas e da vida em sociedade, estaremos a falar de intrincados processos de subjetivação contemporâneos mas, sobretudo, de uma construção social e política muito diferente, uma espécie de “mundo novo”, onde tudo pode acontecer, pois a sociedade e o meio ambiente poderão ser convertidos num gigantesco laboratório.

 

O Universo NBIC

A revolução industrial da 1ª modernidade ficou para trás, estamos agora a caminho do “Universo NBIC”, uma constelação tecnológica que está a caminho do transumanismo e da pós-humanidade.

A constelação tecnológica NBIC, formada pelas nanotecnologias (N), as biotecnologias (B), as indústrias informáticas (I) e as ciências cognitivas (C), terá um impacto imenso sobre as ciências da vida e a saúde humana, as indústrias da alimentação e o mundo natural.

Com as NBIC, nós seremos cidadãos permanentemente conectados e vigiados, em qualquer lugar, independentemente do “não-lugar” onde estejamos.

Ora, nesta vertigem tecnológica reside, porém, uma dúvida existencial, a saber: é muito provável que a hipervelocidade dos dispositivos tecnológicos reduza substancialmente a distância cidade-campo, mas, ao mesmo tempo, contribua para lançar um olhar paradoxal sobre os territórios mais remotos do interior, na exata medida em que o nomadismo digital e a hipermobilidade impedem a formação de um urbanismo crítico que lhes permita contrariar os movimentos em direção ao litoral.

Um exemplo deste olhar paradoxal sobre a relação cidade-campo diz respeito ao impacto significativo que as NBIC têm na chamada agricultura de precisão e nas suas fileiras ou cadeias de valor. São as tecnologias imersivas e intrusivas da cidade no campo.

Eis alguns exemplos de tecnologias de precisão já hoje utilizadas: a gestão remota da rega, a monitorização das culturas a partir de imagens aéreas obtidas com drones, as câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias, os robots de ordenha e alimentação, os chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida, os robots para realizar os trabalhos na vinha, os veículos autónomos como máquinas agrícolas e tratores, a sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores), as câmaras térmicas (os olhos noturnos dos bombeiros), as imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos, os robots para fazer o ataque a incêndios, o farming data e o cloud computing, os modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenção, a criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros, finalmente, a inteligência artificial (machine learning) para diversas simulações.

No Universo NBIC tudo será smart, mais tarde ou mais cedo: a cidade, a habitação, a fábrica, o hospital, o aeroporto, a universidade, o automóvel, o centro comercial, mas, também, o campo agrícola, a empresa pecuária, a floresta, o parque natural, a bacia hidrográfica, etc.

Quer dizer, no âmbito da “internet das coisas” (IOT) e dos sistemas automáticos, praticamente nada escapará aos dispositivos de monitorização e controlo, sejam sensores, chips, drones, robots ou câmaras de vigilância.

Se a esta “plantação digital” juntarmos a constelação tecnológica antes referida, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da atual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo, geridas à distância por “seres aumentados” que administram interfaces eletrónicos e digitais de todo o tipo.

Aqui a imaginação não tem limites e o rural tardio português ficará certamente muito confuso.

 

O Universo NBIC, a produção biopolítica, a grande colisão

O universo NBIC será cada vez mais imersivo, invasivo e intrusivo e tudo será acelerado com a chegada da rede 5G.

De facto, com a constelação digital formada pela convergência das redes 4G+5G poderemos assistir a uma inversão dos termos da equação tecnológica, isto é, o universo NBIC deixará de ser instrumental e subordinado e passará a instrumentalizar e subordinar a natureza e a humanidade, sendo o resultado uma forma nova, porventura cruel, de o homem e a natureza serem ambos “produzidos”, o mesmo é dizer, serem fruto de uma especial “biopolítica”.

Neste sentido, a pandemia da covid-19 pode ser lida como uma espécie de aviso à navegação, nesta trajetória que nos pode levar até ao desconhecido, ao transumanismo e à pós-humanidade.

No fundo, o que a pandemia nos diz é que a ecologia e a economia são inseparáveis e que só há uma terra e uma só saúde. Ela avisa-nos de que está iminente uma grande colisão entre nós, os seres humanos, e o infinitamente pequeno dos micro organismos, sejam vírus e bactérias, mas, também, nano-dispositivos tecnológicos e que esse embate nos trará danos cada vez maiores e vítimas cada vez mais numerosas.

Senão, vejamos:

– As alterações climáticas pressionam as migrações de seres humanos, plantas e animais,

– A primavera demográfica numas zonas coabita com o inverno demográfico em outras,

– O comércio e o tráfico de pessoas, animais vivos, comuns e selvagens, não para,

– É evidente a fragilidade dos sistemas de saneamento básico, água e saúde pública,

– Uma agropecuária quimicamente intensiva pressiona mais os recursos escassos,

– Uma agricultura geneticamente modificada tem riscos acrescidos de biossegurança,

– Uma urbanização feita em solos agrícolas coabita com um meio suburbano miserável,

– Uma mobilidade crescente coabita com uma turistificação intensiva e predadora.

Estes fatores de risco, em movimento constante, visíveis a olho nu, são outras tantas linhas vermelhas que os seres humanos cruzam com demasiada frequência, colocando a economia e a ecologia em trajetória de colisão iminente:

– A invasão do espaço vital dos seres vivos faz aumentar o nº de mutações virais,

– O desequilíbrio entre presas e predadores, faz, igualmente, aumentar o nº de mutações,

– A fragmentação dos ecossistemas e habitats faz aumentar o nº de mutações virais,

– O tráfico de seres humanos aproxima pessoas e vírus de várias proveniências,

– Os mercados locais do mundo subdesenvolvido são um foco constante de carga viral,

– O uso de antimicrobianos na criação agropecuária acaba por contaminar os humanos.

O resultado é conhecido. Os interfaces, como os chips, nano-implantes e outros dispositivos, aumentam as fontes de contágio, as barreiras naturais são violadas e os vírus colidem frontalmente com os humanos.

Os roedores e os morcegos, em especial, tornam-se grandes hospedeiros de zoonoses, as alterações nos ciclos de vida dos microrganismos geram novas mutações e, no final, cada pandemia cria os seus próprios elementos patogénicos.

 

Nota Final

Termino como comecei. No preciso momento em que a alta velocidade da rede 5G está para chegar, é real o risco de uma “grande colisão por excesso de velocidade”.

Em jeito de síntese:

– A velocidade das redes e as cargas de Big Data são cada vez maiores,

– O grau de exposição e a vulnerabilidade aos hackers são cada vez maiores,

– O espaço-terra é um espaço-distância cada vez mais irrelevante,

– O risco moral e o free raider são cada vez maiores neste palco-mundo,

– A nuvem eletromagnética é cada vez maior e paira sobre as nossas cabeças,

– Os impactos colaterais das redes são cada vez maiores,

– O individuo que digitaliza é cada vez mais um individuo aditivado e digitalizado,

– A interação homem-máquina é cada vez maior em direção ao transumanismo.

No resto, é bom não esquecer que outras colisões estão para acontecer na grande constelação 4G+5G: os riscos implicados pela biossegurança, a guerra fria cibernética, a pirataria e os vírus informáticos, a radiação eletromagnética a interferir com a saúde pública e individual, as dores reumáticas e as viroses das máquinas automáticas, já para não falar da prisão IOT doméstica e das futuras colisões originais dos veículos autónomos nas nossas autoestradas pejadas de antenas 5G. Um admirável e extraordinário mundo novo.

Para acompanhar nos próximos capítulos.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



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