Vai continuar tudo na mesma?

O Algarve não é uma região inclusiva para os seus habitantes

O processo de transformação, adaptação e extinção da vida na Terra, tal como a conhecemos, dura há cerca de 400 milhões de anos.

Esse processo de adaptação da vida ao planeta e às suas mudanças fez-se umas vezes de forma lenta e outras dramática, dando possibilidade às mais variadas espécies de se adaptarem ao meio em transformação ou perecerem.

O meio transformava-se e a vida tentava acompanhá-lo. Os nossos antepassados nómadas começaram a fixar-se com a agricultura, a criar aglomerados que se transformaram em cidades e em regiões. Instalaram-se próximos dos solos mais férteis e da água, em locais estratégicos para as trocas comerciais e para as posturas defensivas.

As cidades transformaram-se em metrópoles e as regiões em nações e países, com fronteiras mais ou menos rígidas e definitivas.

A industrialização e posterior globalização levaram ao abandono da relação primordial entre o Homem e a Natureza. O génio humano permitiu ultrapassar muitas das impossibilidades e limites que o mundo natural impunha.

Milhões de seres humanos e de toneladas de mercadorias podiam viajar, diariamente, de e para todos os cantos do mundo. Podiam-se ocupar os solos mais férteis, já que o abastecimento de produtos alimentares estava assegurado nem que fossem produzidos a milhares de quilómetros.

Podia-se degradar a água, já que a tecnologia a purificava. Entubar rios e construir sobre o mar, porque se dominavam os materiais e as técnicas de construção.

Nos últimos cinquenta anos assistimos à revolução tecnológica que nos agraciou com a Internet, a nanotecnologia, a energia limpa, a evolução do saber e do conhecimento.

Simultaneamente, mantiveram-se e agravaram-se guerras, crises humanitárias, desigualdade e exclusão, degradação dos ecossistemas e da qualidade de vida, desertificação e abandono dos territórios rurais.

Este milénio inicia-se com a necessidade urgente de transformação do modelo de sociedade que criámos e desenvolvemos ao longo de todo o século XX.

A sociedade das contradições: da intensificação demográfica e do envelhecimento galopante, da abundância e da fome, das multidões e da maior solidão, do consumo alienado e dos movimentos e práticas ecologistas, da rigidez das fronteiras e das populações sem pátrias.

A globalização, no sentido das trocas comerciais sem dignidade humana, dos monopólios, da existência de mundos paralelos como o “mercado bolsista”, os “fundos”, as “offshores” sem rosto, da corrida pelo domínio e pela supremacia, da destruição inconsciente ou intencional do mundo natural, estão a revelar-se desastrosos para a Humanidade.

As alterações climáticas, em conjugação com o modelo do consumo massificado e globalizado, são a mais grave consequência das acções do Homem no planeta.

A indústria do turismo está intrinsecamente ligada a essa realidade, pelos movimentos e fluxos de população que gera e por se concentrar e depender, em larga medida, do factor clima.

É a principal fonte geradora de riqueza na região algarvia e a que, de longe, mais contribui para o PIB nacional.

Mas, chegados a este ponto, importa reflectir sobre o modelo que criámos. Foi um modelo equilibrado que permitiu o desenvolvimento de outros sectores da sociedade, gerou riqueza e aumentou a qualidade de vida das populações na região?

Nalguns casos sim. Porém, não podemos ignorar que ao longo das últimas décadas a actividade turística também funcionou de forma predatória.

Foi responsável, em larga medida, pelo abandono e ocupação de solos de elevado potencial agrícola, pela destruição irreversível de recursos, valores e espaços naturais, pela desvalorização do património construído, pela descaracterização e degradação de cidades, vilas, aldeias e paisagens rurais.

Para além disso, teve outros efeitos colaterais. Direccionou o investimento para a construção associada ao turismo, esquecendo os residentes e o seu direito à habitação e a espaços verdes públicos de qualidade, inflacionou preços levando à gentrificação dos centros urbanos, sobrecarregou infraestruturas e equipamentos com consequências na sua degradação e no aumento das despesas de manutenção, orientou, directa ou indirectamente, uma boa parte da actividade produtiva da região e dos seus recursos para essa “monocultura”.

Apesar do contributo inegável para o PIB nacional, o Algarve não é uma região inclusiva para os seus habitantes. Faltam ainda muitas infraestruturas e equipamentos básicos no que respeita à mobilidade, saúde e qualidade de vida das populações.

Veja-se, por exemplo, a ferrovia e a qualidade do material circulante, a rede ciclável (funcional) que nem sequer liga Faro à sua Universidade, a degradação do hospital distrital (nula atractividade para a colocação de médicos na região), a reduzida expressão de espaços verdes urbanos de uso público (contrariamente aos empreendimentos turísticos).

Apesar da reconhecida importância do turismo para a região e para o país, é preciso repensar, uma vez mais, este modelo e as dependências que criou. A pandemia que deflagrou obriga a essa reflexão, as alterações climáticas em curso tornam-na urgente.

Depois desta crise e das incertezas em como terminará, são urgentes mudanças na sociedade e em cada um de nós, para não continuar tudo na mesma.

As noções de bem comum e dos limites do crescimento, que se debatem e refletem desde os anos setenta do século passado, devem guiar as decisões individuais e colectivas.

O conceito de diversidade, comum à ecologia, sociologia e economia, associado à variedade, complexidade, riqueza e sustentabilidade dos sistemas e processos (naturais e humanos) deve prevalecer sobre a uniformidade, a monotonia, a simplificação e a extinção.

A estreita ligação e dependência entre economia e ecologia obriga a que não se continuem a ultrapassar os limites do crescimento, a que se estabeleçam rapidamente mecanismos e ferramentas para a resiliência, transformação e adaptação. A ciência deve contribuir para prevenir e a antecipar esse futuro.

Para isso, a Academia deve olhar para a realidade socio-económica, ambiental e cultural da região, trabalhar mais para e com a comunidade, abandonar a endogamia passiva da produção científica que valoriza demasiadas vezes a quantidade e as estatísticas das publicações, e menos a qualidade, importância ou utilidade para a sociedade. Precisamos de olhar, novamente, para o meio onde vivemos, antecipar a mudança e agir para nos adaptarmos.

 

Autora: Amélia Santos é Arquitecta Paisagista

 

 


Comentários

pub