Contributo para a Discussão Pública da “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”

Contributo para a Discussão Pública do documento “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, António Costa Silva, Lisboa, 21 Julho 2020

  1. Nota Prévia

O presente contributo para a discussão pública é feito a título pessoal e não envolve uma apreciação de todas as partes do documento. Será circunscrito às áreas em que o signatário tem tido mais experiência e conhecimento técnico e científico.

  1. Apreciação Global

Nos últimos anos, tem sido discutida a oportunidade de se retomar a prática do planeamento de médio e longo prazos, focado na definição de estratégias de orientação para toda a economia e de compromisso mais vinculativo para o setor público.

É hábito dizer-se que fazer planeamento no contexto de incerteza é uma atitude inútil. Ora, é precisamente neste contexto que a análise das opções de desenvolvimento, num trabalho de enunciado de estratégia, faz mais sentido.

Neste quadro, considero que o exercício de definição de estratégia para o Plano de Recuperação Económica é necessário, não só para a negociação do financiamento comunitário, mas também para a própria orientação dos agentes económicos em Portugal e na sua relação com o Mundo.

Também gostaria de sublinhar a recomendação feita no documento sobre uma mais promissora articulação entre o Estado (a nível nacional, regional e local) e as empresas.

A economia como sistema assenta nas relações entre unidades económicas. No entanto, o papel do Estado como orientador nas políticas públicas, nos grandes projetos estruturantes e como regulador do funcionamento do sistema económico, nomeadamente no que se refere à correção das “falhas de mercado”, que reduzem a eficiência na afetação de recursos, deve assumir um papel preponderante, sem se substituir às empresas.

  1. Modernização da Administração Pública e a Coesão de Território

O documento estabelece, e bem, uma relação entre desenvolvimento económico e social e funcionamento eficiente da Administração Pública.

A eficácia das políticas públicas depende da sua atualizada reformulação e da capacidade do Estado de compreender os problemas da sociedade, definir os destinatários das políticas públicas e da oportunidade (especialmente do seu custo) na respetiva decisão e execução (conforme as atribuições e competências de cada nível da administração pública).

Quando se fala da “bazuca financeira” de fundos comunitários é essencial que o Estado saiba, como “municiador e atirador”, qual a destreza e tempo de tiro para a boa utilização daquela “arma”.

A experiência diz-nos que o desperdício do financiamento e as perdas de rendimento são em grande parte devido ao excesso de etapas e procedimentos administrativos. Até agora os serviços da Comissão Europeia não são muito bom exemplo de simplificação administrativa e encontram terreno fértil de cumplicidade para a criação de burocracia na Administração portuguesa.

Nunca como agora e aqui é necessária uma direção política firme e conhecedora dos problemas e das suas soluções.

Nesse sentido, esta “Estratégia” deve conter uma referência específica ao processo de análise, avaliação e decisão dos projetos que fazem parte do Plano de Recuperação. Este documento (agora em discussão pública) tem, no entanto, um aspeto de sensibilidade à competitividade do território e à sua importância para tornar mais democrática (equidade) a distribuição do rendimento ao longo desse território.

Parte para tal, identificando não só a inserção geoestratégica de Portugal Continental e Insular, mas também e muito especialmente os recursos endógenos em cada parcela do território nacional e o papel novo que irão ter as infraestruturas de mobilidade e conetividade transeuropeia.

Considero que a conjugação duma Administração moderna com o aproveitamento dos Recursos deve ser tornada relevante, em termos de reforma, na perspetiva de que muitos procedimentos administrativos têm sido uma das causas para o desperdício de recursos, para o afastamento de muitos projetos de investimento e do agravamento da desigualdade de oportunidades ao longo do território nacional.

Um processo efetivo de descentralização (à semelhança da maioria dos restantes países europeus) é uma oportunidade para a reforma da Administração Pública. Independentemente da forma deste processo (que pode ser configurada na criação das Regiões Administrativas, nos termos constitucionais) devem ser dados passos significativos na reorganização desta Administração. Ressalvem-se as boas práticas já existentes, nomeadamente as que são conduzidas pela Agência de Modernização Administrativa (AMA) e num número importante de Autarquias Locais.

O signatário, tendo feito parte da Comissão Independente para a Descentralização, criada pela Assembleia da República em 2018, e coordenada pelo Eng. João Cravinho, não pode deixar, no âmbito deste assunto, de remeter para o Relatório publicado em julho de 2019.

  1. Reindustrialização e Diversificação da Base Produtiva do País

Este tema é dos mais importantes para um novo desenvolvimento e um dos que mais equívocos tem originado.

Sou dos que considera que a indústria transformadora é um dos setores que mais valor cria, até pela capacidade de inovação e desenvolvimento tecnológico. A excelente engenharia portuguesa tem também aqui um papel de grande competitividade no contexto internacional.

Para além disso, o desenvolvimento deste setor permite contribuir para um dos objetivos estratégicos de diversificação da base produtiva da nossa economia, o que é imprescindível para assegurar a sustentabilidade do sistema económico e da criação de emprego e rendimento. Todas as políticas de aproximação entre o sistema científico e tecnológico (em especial destaque para as Universidades) e as empresas, são de fomentar, até pelos resultados já evidentes em muitos domínios.

Os recentes acontecimentos derivados da pandemia da Covid 19 demonstraram que a debilidade no setor industrial afetou não só a autonomia no abastecimento de produtos essenciais, como fragilizou o funcionamento do sistema económico. De sublinhar que estamos a falar de indústrias de forte base tecnológica e não de componentes já ultrapassados em termos técnicos e de procura no mercado. Esta confusão entre “indústria e poluição” será talvez a principal causa do preconceito contra a reindustrialização.

  1. A Agricultura e a Pesca e a Produção de Alimentos

A agricultura portuguesa com a sua capacidade de inovação é talvez um dos segredos menos revelados na nossa sociedade. A combinação de vários fatores contribuiu para o relativo sucesso económico deste sector, sendo o principal a qualificação dos novos empresários e das equipas técnicas que os apoiam.

Esta capacidade de inovação está a ser verificada igualmente no setor das pescas.

Estas novas capacidades têm revelado um elevado grau de sustentabilidade devido às características dos mercados em que estes dois setores estão inseridos (as pessoas comem todos os dias!).

Neste ponto é de referir também a necessidade de criar melhores condições de enquadramento e de atração de investimentos, na lógica de aproveitamento de recursos marinhos, tendo em conta a importância do mar para Portugal.

De sublinhar, por último, que tanto a agricultura como a pesca são extremamente competitivas para o fomento do turismo em Portugal, podendo-se mesmo dizer que fazem parte do produto turístico em si.

  1. Uma referência ao caso específico do Algarve

Um documento desta natureza não tem que fazer referências de maior pormenor a zonas específicas do território nacional. A justificação para a inclusão deste ponto é a de utilizar a experiência do signatário no acompanhamento do desenvolvimento do Algarve nos últimos 35 anos. Tentarei focar a análise na questão da diversificação da base produtiva regional, nas diversas valências do turismo e nas novas oportunidades criadas no setor da saúde.

Em 1986 foi apresentado um PDR (Programa de Desenvolvimento Regional), elaborado pela então CCR Algarve, com o objetivo de enquadrar e justificar os financiamentos comunitários.

Um dos pilares estratégicos deste PDR já era a diversificação da base produtiva e a criação no Algarve de condições para a atração de novos investimentos, utilizando como fatores de competitividade a Universidade, as condições climáticas e naturais e as acessibilidades (nomeadamente o Aeroporto Internacional de Faro e as ligações rodoviárias e ferroviárias regionais, com o resto do país e com Espanha).

Esta estratégia não foi totalmente conseguida. Houve, pelo contrário, uma excessiva concentração no turismo, o que aumentou a fragilidade da economia regional bem evidenciada no atual contexto da crise provocada pela pandemia da Covid 19.

Parece-me que a proposta de estratégia para o País, explicitada no documento em análise, pode ser reproduzida no Algarve, com as devidas adaptações.

De facto, o turismo é um setor com grandes potencialidades para Portugal e para o Algarve em particular. Por isso, não deve ser descurada a continuidade do seu desenvolvimento. Este deve, contudo, incluir políticas de diversificação e de fomento de novas atividades a montante e a jusante (efeitos “linkage”).

A agricultura e em especial a pesca são setores cujo desenvolvimento pode ser induzido pelo turismo, numa região como a do Algarve, e fazer, como atrás referido, parte do produto turístico, contribuindo desta forma para a modernização e crescimento do comércio e restauração. Também o desporto e a náutica de recreio são setores a considerar.

Para além destes “efeitos”, que, já por si, criam uma nova economia regional, existem oportunidades para desenvolver no Algarve uma nova economia de base tecnológica (de que já existem exemplos de empresas de sucesso nesta área).

Refira-se, entretanto, como caso especial, com condições objetivas para crescer e criar valor, o desenvolvimento de um novo setor que podemos designar de “cluster da saúde”.

Para além das condições gerais de atratividade de projetos inovadores, a recente possibilidade de desconcentrar no Algarve um conjunto de serviços da área da Saúde cria uma oportunidade objetiva para o surgimento daquele “cluster”.

De facto, o “Algarve Biomedical Centre” (ABC), resultante do consórcio entre a Universidade do Algarve (através da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas e laboratórios de investigação associados) e o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), propôs ao Ministério da Saúde uma colaboração com diversas instituições da tutela do mesmo.

Daqui resultou a criação de um Grupo de Trabalho criado pelo despacho nº 5308/2018 do Ministro da Saúde, que concluiu um relatório em dezembro de 2018, que aponta para um conjunto de iniciativas de colaboração, no Algarve, que envolvem, para além do ABC, o INSA (Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge), o INFARMED, o IPST (Instituto Português do Sangue e da Transplantação), a DG Saúde e o CPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde).

Este “cluster” não se baseará apenas na desconcentração administrativa daquelas instituições, mas permitirá uma maior capacidade de investigação científica, o desenvolvimento do turismo de saúde e a atração de empresas da indústria farmacêutica.

 

Autor: Adriano Pimpão é Economista, Professor Catedrático Emérito da Universidade do Algarve e antigo Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional (1995-97)



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