Romance «Barro Cru», de Helena Tapadinhas, é o vencedor da 3ª edição do Prémio Literário Santos Stockler

Prémio de 10 mil euros distinguiu romance que conta a história de um oleiro de Lagoa

«Não é preciso ser de Lagoa para perceber esta história», garantiu Adriana Freire Nogueira, presidente do júri da 3ª edição do Prémio Literário Santos Stockler, promovido pela Câmara Municipal de Lagoa, cujo vencedor foi o romance «Barro Cru», de Helena Tapadinhas.

O júri, constituído por Adriana Nogueira, David Roque, Maria Helena do Carmo e João Nuno Aurélio Marcos, escolheu este romance de forma unânime. Segundo a ata da reunião final do júri, a obra vencedora «consegue, de forma destacada e literária, despertar aspetos da singularidade do concelho de Lagoa, nomeadamente a olaria».

«Partindo da realidade local, consegue encontrar e atingir o patamar mais alto da universalidade», através de uma «narrativa sólida» e de «maturidade literária». Passando-se em Lagoa, o romance não faz uma «tentativa de criar um faz de conta etnográfico», salienta o júri, mas não se esquiva a usar os «vários níveis de língua, perfeitamente adaptados aos momentos da narrativa. nomeadamente aos diálogos».

«A construção das personagens deste romance não se ateve à matéria da realidade», conseguindo assim conferir universalidade à história que é contada.

 

Helena Tapadinhas – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

No seu discurso de agradecimento, a primeira palavra de Helena Tapadinhas foi «de saudade: sinto falta da pessoa doce, do
incansável contador de histórias com quem tive o enorme privilégio de conviver e que inspirou a escrita do Barro Cru».

Mas, salientou a autora, «este livro não é uma biografia, nem tem qualquer pretensão biográfica: baseia-se nalgumas personagens e acontecimentos reais, é certo; mas a história nele contada é uma ficção, apenas isso».

Tendo em conta que esta é a segunda vez consecutiva que Helena Tapadinhas é distinguida no Prémio Literário criado pela Câmara de Lagoa (a primeira foi em 2018 com o conto «Alfaiate»), a vencedora repetente fez uma «especial vénia» à Câmara Municipal de Lagoa, «que soube gizar um regulamento que privilegia a escrita, que avalia histórias sem rosto, que valoriza a fidelidade ao programa que é proposto, sem ceder à tentação de criar regras bizarras, como aquelas, tão frequentes, que excluem uma boa história apenas porque o seu autor é… reincidente em boas histórias».

Na verdade, salientou, a Câmara de Lagoa é «credora de uma segunda vénia, pois ao contrário de tantos outros promotores de concursos literários, criou um Prémio que o é de facto, que não ofende o trabalho da escrita». É que o prémio é de 10 mil euros, um dos mais chorudos galardões literários em todo o país.

Numa sessão ao ar livre nos claustros do Convento de S. José, na zona antiga da cidade de Lagoa, com todas as regras sanitárias a serem escrupulosamente cumpridas, como o uso de máscara, apesar do forte calor do final de tarde de sexta-feira, Luís Encarnação, presidente da Câmara de Lagoa aproveitou para anunciar a 4ª edição do Prémio Literário Santos Stockler, para o biénio de 2020/2021.

Desta vez o género a concurso será a Novela, enquanto o mote será «Lagoa, Cidade Sustentável».

 

Duo Rimba, com Vasco Ramalho e João Paias – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Na sua intervenção, e aproveitando o facto de estar nos claustros do Convento de S. José, Adriana Nogueira, diretora regional de Cultura do Algarve, lançou um desafio à autarquia: o de promover a classificação de monumentos ou conjuntos de interesse patrimonial da cidade de Lagoa, que não tem um único edifício classificado.

Adriana Nogueira começou por sugerir a classificação deste «sítio maravilhoso onde estamos», o Convento de S. José, mas referiu ainda a Igreja Matriz ou o núcleo histórico de Lagoa. «Contem com a Direção Regional de Cultura para podermos classificar monumento aqui na cidade», concluiu.

A fechar a sessão, tal como no seu início, houve música, com o Duo Rimba, constituído por Vasco Ramalho (marimba) e João Paias (marimba e bateria).

 

A premiada, com membros do júri e o presidente da CM Lagoa – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Por seu lado, no final do seu discurso de agradecimento, Helena Tapadinhas leu um trecho do seu romance, para abrir o apetite para a leitura da obra na sua totalidade. O livro só será editado no próximo ano, mas fica aqui o trecho lido pela autora:

«Naquela primeira aula, foram poucos os que ousaram tirar o casaco, arregaçar as mangas e meter as mãos no barro. Desses, quase todos quiseram começar pelo fim, fazendo logo obra na roda. Exceto o João Riscado. O rapaz percebeu que sem conhecer o que tinha entre mãos não ia a lado nenhum. Observou-me atentamente e decalcou-me os gestos até sentir que já estava à posse de uma massa bem ligada que mudava de forma sem se esgaçar enquanto a manipulava… Incorporou bem o papel e a importância de gerir a humidade certa em todo aquele processo, e depressa fez o barro obedecer-lhe. De modo que, na terceira vez que se sentou na roda, fez obra. Imperfeita, claro, mas obra. Além disso, sempre que chegava a hora do fim da sessão, quando os demais já tinham desalvorado porta fora sem sequer se dignarem mandar-me à merda, o João Riscado ficava a arrumar calmamente a bancada. Depois de fazer o que achava que devia ser feito, ainda me perguntava se precisava de mais alguma coisa. Só então pegava nos atavios e despedia-se.
– Atão… até pra semana, Setor!
Tomei-o em boa nota. Por isso me surpreendi quando, tempos depois, me sentei pela primeira vez no Conselho daquela turma e ouvi dos meus ilustres colegas, que por sinal eram mais que os alunos que tínhamos, as piores referências ao rapaz: que não estudava nada, que não se interessava por nada, que era mal educado, indisciplinado, em resumo: não prestava!
– Não pode ser a mesma pessoa! – pensei alto.
– Desculpe?! – interpelou-me a diretora de turma.
– Nada. Esqueça. Ainda os conheço mal e julgo que estou a confundir com outro qualquer o aluno a que se referiam.
Mas não. Era mesmo o João Riscado. De modo que assim que surgiu oportunidade:
– Senhor João Riscado, pode dar-me um minuto, se faz favor? – sempre tratei o pessoal por senhor. Um hábito que adquiri na tropa e com o qual sempre me dei bem.
– Sim, Setor…
– Ouvi de si isto e mais aquilo. E gostava de saber o que é que o senhor tem a dizer sobre o assunto.

***

Sinto-me a expiar um crime que não cometi, Setor. Desde o dia em que entrei na escola que me sinto cercado por vedações por todos os lados. Por dentro e por fora. Não só me obrigam a andar cá dentro oito horas por dia, cinco dias por semana, como ainda me querem obrigar a pensar como eles pensam. Nem dúvidas posso ter que não estejam normalizadas. Dizem que é para o meu bem, mas isto só me tem feito mal.
Faço dezoito anos daqui a uns meses, ando cheio de vontade de viver, de fazer-me à vida, de tomar conta de mim. Mas não me deixam. Se desisto da escola, vão fechar-me as portas na cara; se não desisto, não irei saber o que fazer se elas se abrirem. E isto revolta-me. Aguentei até onde pude, mas de há algum tempo a esta parte qualquer coisa se transforma na gota d’água que faz transbordar o copo. Não posso dizer que aqui não se ensine nada. Não sei é para que serve a maior parte do que me querem ensinar. E como ninguém perde tempo a esclarecer-me, qualquer bocadinho de motivação que ainda traga de casa murcha mais a cada dia que passa. Ainda ontem, a professora de Biologia passou a aula inteira a falar-nos da fauna e da flora do estuário de um rio qualquer da América. E eu, enquanto a ouvia, dei por mim a pensar que nunca houve ninguém que nos tenha falado dos animais nem das plantas que vivem no estuário daquele rio que desagua logo ali na extrema do nosso concelho. Não sei ao certo que peixes nadam naquelas águas, não sei nada sobre a vida das amêijoas, nem
dos lingueirões, que se apanham ali nas lamas da vazante, não faço ideia da razão de haver alturas em que se podem comer e outras não, mas em compensação já sei que no tal rio da América vive um golfinho cor-de-rosa que se chama boto! Em História, Setor, andamos há semanas às voltas com o reinado de um rei Francês, um tal … não sei quantos. Mas sobre o que levou ao abandono das vinhas e dos campos de amendoeiras que rodeiam a nossa escola, nada! A setora de Português anda a falar-nos, desde o início do ano, de umas cenas escritas por um tal de Frei Luís, nos tempos em que as galinhas ainda tinham dentes. Mas, ainda ontem, quis escrever uma reclamação ali no Centro de Saúde, e mal sabia por onde começar. Tá a ver, Setor?
Quando acabei o nono ano, inscrevi-me nos profissionais para ver se esta sina tinha fim. Mas não. Vai para três anos que estou num curso de técnico vitivinícola, que escolhi porque era o único que me deu ideia de que poderia fazer qualquer coisa sem os livros. Nada! As duas únicas vezes que pus os pés dentro duma adega, foram por minha iniciativa, não foi a escola que me levou lá. Se não morasse ao lado de uma vinha, só conhecia as videiras pelas imagens que o professor projeta no ecrã do quadro novo.
Também é no quadro que ele nos desenha esquemas de podas, mas nunca nos levou para dentro de uma vinha nem nos pôs uma tesoura de podar na mão. A verdade, Setor, é que nem uma vindima fiz. A primeira vez em que me aconteceu qualquer coisa que se parece com prá4ca, tem sido aqui na sua aula, embora também lhe diga que não percebo o que tem olaria a ver com o meu curso, pois que eu saiba já ninguém usa vasilhame de barro para fazer vinho. Mas se tivesse dito a outro Setor qualquer isto que lhe estou a dizer agora a si, já tinha sido posto na rua. Ainda há dias tive a má ideia de perguntar à setora de Português se íamos dar mais alguma coisa este ano, além do
tal Frei de Sousa, e ela desatinou. Começou a gritar comigo, a chamar-me ignorante e provocador, que não passava de uma besta, até que eu acabei por me chatear, tive de lhe dizer que não lhe admitia que me falasse naqueles modos, ela pôs-me na rua, e acabei a semana a limpar o pó dos livros da Biblioteca, pois foi esse o castigo que a Direção me deu. Já viu, Setor? Nunca pensei que a escola me ensinasse que o trabalho é um castigo. Imagino que a Dona que toma conta da Biblioteca também esteja de castigo. E dos meus pais, nem falo: esses, acho que estão de castigo desde que nasceram».

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

Está na hora de nos ajudar a fazer o Sul Informação!
Contribua com o seu donativo, para que possamos continuar a fazer o seu jornal!

Clique aqui para apoiar-nos (Paypal)
Ou use o nosso IBAN PT50 0018 0003 38929600020 44

 

 



Comentários

pub