De Vilamoura ao Ameixial, uma viagem pelo imaginário serrano!

Alimento a esperança de que os mais jovens, mais do que turistas ocasionais, sejam também viajantes, mas, sobretudo, agentes inovadores em projetos de interesse comunitário

Eu costumo dizer que os territórios não são pobres, estão pobres, num determinado período histórico da sua existência. Além disso, na sociedade do conhecimento, os nossos principais problemas são problemas ou défices de conhecimento.

Acresce que, na sociedade do século XXI, estamos bem-dotados de conhecimento, cultura e criatividade que podem ajudar a mitigar, adaptar e transformar um território, por mais remoto e agreste que ele seja.

É, assim, também, no interior do concelho de Loulé. Em escassas dezenas de quilómetros passamos do universo cosmopolita de Vilamoura, cheio de glamour e pastiche, para o universo remoto e invisível do velho mundo, pleno de histórias e memórias que o tempo apagou.

Esta viagem pelo interior do concelho de Loulé é uma metáfora ao imaginário da serra do Caldeirão e serve apenas para ilustrar a minha ideia de que há uma complementaridade virtuosa entre o litoral e o interior, desde que, obviamente, nos mobilizemos politicamente para resolver o problema.

 

O sistema operativo do Caldeirão

O Algarve foi quase sempre, como sabemos, lido e praticado na horizontal, seja na linha de costa, na EN 125, na A22 ou na EN 124. Vamos, desta vez, procurar lê-lo na vertical. Façamos, então, uma viagem imaginária e imaginemos que:

1) O concelho de Loulé assume politicamente que a justiça ambiental e a justiça social estão gravemente postas em causa na economia rural do barrocal-serra e, em particular, na serra do Caldeirão; o município assume este desafio como um imperativo categórico, não apenas no campo da mudança climática e da ecologia fundamental, mas, também, nos campos da economia rural e da solidariedade social;

2) A freguesia do Ameixial é eleita como a sede de um ecossistema operativo inovador para a Serra do Caldeirão; trata-se de um projeto de investigação-ação envolvendo, numa primeira fase, o município de Loulé e, numa segunda fase, os municípios do Caldeirão e os principais atores regionais que, para o efeito, subscreverão uma candidatura comum no quadro do programa de recuperação que se desenha neste momento e tendo como pano de fundo um projeto regional sobre a economia da dieta mediterrânica;

3) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte um centro operacional de silvicultura preventiva; trata-se não apenas de um centro de limpeza de matos e matas para prevenir os fogos florestais, mas, também, de uma unidade de apoio à elaboração do cadastro florestal e à produção de biomassa;

4) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte um centro de ecologia funcional para a biodiversidade e os serviços de ecossistema; trata-se de reabilitar linhas de água e vegetação ripícola, endemismos locais, proteção da fauna e flora serranas, restauração dos ecossistemas e dos serviços de ecossistema (em especial, a compostagem para a produção de solo);

5) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte um espaço de coworking empresarial alimentado por um programa de estágios profissionais; trata-se de uma pequena incubadora para iniciativas empresariais que visem o desenvolvimento económico e social do barrocal serra, em especial, nas áreas agro-silvo-pastoris;

6) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte um complexo pedagógico, recreativo e terapêutico; trata-se de um complexo com campo de férias e trabalho, residências científicas e artísticas e locais para apoio ao viajante e peregrino das caminhadas e dos percursos de natureza;

7) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte, igualmente, um centro de artes e ofícios tradicionais, que é, também, um centro de reutilização de recursos da economia circular e um posto de observação privilegiado das artes da paisagem e arquitetura de amenidades paisagísticas;

8) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte, igualmente, um serviço ambulatório de apoio domiciliário em matéria de alimentação, saúde e segurança, pelos diversos lugares dispersos na serra;

9) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte, também, um centro de acolhimento de animais abandonados, mas, também, de apoio à fauna em risco e que tem o seu habitat na serra do Caldeirão;

10) Do sistema operativo do Caldeirão faz parte, finalmente, um centro de animação turística; trata-se de rever os percursos de natureza do Caldeirão e os seus postos de observação privilegiados e organizar visitas guiadas, em especial, a rota que une os seus cumes mais altos acima dos 500m.

 



 

A economia serrana e a dieta mediterrânica

Tudo o que dissemos acerca do sistema operativo do Ameixial e do Caldeirão necessita de uma fonte de alimentação, ou seja, de uma economia de rede e visitação minimamente organizada.

Imaginemos, então, uma economia serrana composta pelas seguintes atividades: a produção de pequenos ruminantes, a cabra algarvia em primeiro lugar, o mel e a transumância das abelhas, o medronho e os frutos silvestres, o pomar tradicional de sequeiro, o figo da índia, os citrinos, as flores ornamentais e comestíveis, as ervas aromáticas e medicinais, os cogumelos, a caça e os produtos da caça, a cortiça e os produtos do montado, a lenha e o carvão, a limpeza dos matos e das matas, o turismo micológico, a oliveira e o azeite, a compostagem, a biomassa e a microgeração de energia, a provisão de serviços ecossistémicos, os festivais das caminhadas, a gastronomia tradicional, a nova dieta mediterrânica. Mas, também, os produtos transformados, o marketing digital e a produção de conteúdos publicitários e pedagógicos associada ao comércio direto e online de todos estes bens e serviços.

Imaginemos, então, que somos capazes de ligar todas estas atividades, que temos um ator-rede com talento suficiente para articular conhecimento, cultura e criatividade e, assim, gerar novas cadeias de valor, de tal modo que o Ameixial e o Caldeirão se tornem parte integrante dessas cadeias de valor e sinais distintivos tão relevantes como Vilamoura ou Vale do Lobo, os sítios da Fonte Benemola e Rocha da Pena, as minas de água e as levadas, as aldeias típicas do barrocal, as estelas e a escrita do sudoeste, os vales e os hortejos tradicionais, para citar apenas as principais.

Retomo aqui o que já escrevi em outra ocasião. Tomemos, por exemplo, as artes tradicionais do barrocal-serra e pensemos no que poderia ser realizado com algumas pequenas inovações tecnológicas e artísticas introduzidas nestas atividades de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar um mosaico produtivo e uma economia inteligente de rede e visitação turística.

A partir daqui, poderíamos compor uma pequena economia de aglomeração e visitação e, com um sistema de incentivos adequado, atrair para o barrocal serra os neorurais em busca de uma oportunidade.

 

As artes tradicionais e a economia da dieta mediterrânica

1. As artes do pastoreio da cabra algarvia
2. As artes da queijaria tradicional algarvia;
3. As artes da tirada da cortiça;
4. As artes do varejo e apanha da azeitona;
5. As artes do varejo e apanha do PTS,
6. As artes da apicultura e da melaria,
7. As artes da pisa a pé das uvas;
8. As artes da destilação do medronho;
9. As artes da apanha do figo da índia;
10. As artes da apanha produtos micológicos
11. As artes associadas à poda e ao enxerto;
12. As artes da cosmética tradicional;
13. As artes associadas às ervas aromáticas;
14. As artes associadas às ervas medicinais;
15. As artes da cestaria e da olaria;
16. As artes associadas às flores comestíveis;
17. As artes associadas à pesca artesanal;
18. As artes associadas à caça e à cinegética;
19. As artes da confeitaria e doçaria locais,
20. As artes da culinária tradicional;

A economia da dieta mediterrânica tem de ser equacionada em redor de cadeias de valor, tangíveis e intangíveis, mais do que em torno de produtos específicos e reunir em doses equivalentes conhecimento, cultura e criatividade, quanto baste. Este é o momento do digital, da ecologia e do combate às alterações climáticas, por isso deve ser prestada uma atenção muito especial à biodiversidade, restauração de ecossistemas e a agroecologia.

Deixo aqui alguns exemplos de cadeias de valor que precisam de ser trabalhadas com muita imaginação no terreno, mas, também, pelo marketing digital, seja através de visitas guiadas, jornadas científicas, festivais de caminhadas, programas pedagógicos para os mais jovens e programas terapêuticos para os mais idosos:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias da serra algarvia: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal serra algarvio: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal serra algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espetáculos noturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc.

 

Notas Finais

Em tempo de pandemia deveríamos rever os nossos conceitos de economia do turismo e economia rural e olhar para a totalidade de um território de uma forma mais justa e equitativa.

Não se trata, obviamente, de turistificar a serra do Caldeirão, trata-se de ser magnânimo com o interior esquecido e abandonado e tirar partido do grande volume de turistas que visita a linha de praia e sol do concelho de Loulé.

Depois da pandemia temos de pensar menos em termos de “negócio turístico” puro e duro e mais em termos de cadeia de valor de uma região inteira. Voltar ao “velho normal”, frágil em termos de justiça ambiental e justiça social, não seria uma prova de inteligência.

Há cerca de dez anos, o município de Loulé patrocinou um projeto inovador em espaço rural com bastante sucesso na freguesia de Querença designado “Projeto Querença”. Em boa hora, a Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG) acolheu esse projeto sob a direção esclarecida do Eng. Luís Guerreiro, entretanto falecido.

A minha sugestão ao município de Loulé é que convide a FMVG, a Junta de Freguesia do Ameixial, a Cooperativa QRER sediada em Querença e vocacionada para este tipo de ações e em conjunto desenhem um projeto para os próximos anos, no âmbito do programa de recuperação europeu e do próximo quadro comunitário de apoio para 2021-2027. Seria, também, uma forma singela de prestarmos uma homenagem devida ao Eng. Luís Guerreiro.

Como disse no início, trata-se de uma viagem imaginária pela serra do Caldeirão. Todavia, eu alimento a esperança de que os mais jovens, mais do que turistas ocasionais, sejam também viajantes, mas, sobretudo, agentes inovadores em projetos de interesse comunitário. É nossa obrigação criar as condições mínimas necessárias para que tal aconteça.

Aos amantes da natureza e aos neorurais da agroecologia serrana, o Ameixial e a Serra do Caldeirão aguardam pela vossa visita.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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