Algarve em festa – as «Comemorações Centenárias», em Junho de 1940

Hoje, volvidas oito décadas, a memória das comemorações centenárias quase se perdeu na região

Por estes dias de há 80 anos, o Algarve vivia um movimento desusado, particularmente em Faro, Sagres e Lagos. O país, por determinação do presidente do Conselho, Oliveira Salazar, de março de 1938, celebrava de forma grandiosa os centenários da formação da nacionalidade (1140) e da restauração da independência (1640).

Naqueles dois anos, trabalhou-se afincadamente, um pouco por todo o lado, constituindo a Exposição do Mundo Português, em Lisboa, inaugurada a 23 de junho, o auge das celebrações.

Ela constituiu a maior exposição até então realizada em Portugal, na qual foi determinante o algarvio e quase mítico ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco.

O Estado Novo legitimava-se, recorrendo à glorificação do passado. Alguma instabilidade provocada pelo reviralho no início dos anos de 1930 era passado e as celebrações só não granjearam maior destaque internacional pelo eclodir, a partir de 1939, da II Guerra Mundial.

Internamente o conflito retirou também brilho aos festejos, com a imprensa a dividir as primeiras páginas com os acontecimentos bélicos.

As comemorações iniciaram-se a 2 de junho, atingindo o auge no Algarve nos dias 14 e 15 do mesmo mês. As datas escolhidas prenderam-se, segundo o programa, com o dia da conquista de Faro aos mouros, por D. Afonso III. Mas o ano de 1940 trazia aos farenses uma outra efeméride, os 400 anos de elevação de Faro a cidade, ocorrida pela mão de D. João III, em 1540.

Na tarde de 13 de junho, chegava a Faro o ministro Duarte Pacheco, em representação do Chefe de Estado. Ao contrário do previsto no programa oficial, o general Carmona não veio presidir às comemorações, uma ausência que os algarvios não deixaram de lamentar, até porque o Presidente da República havia participado, dias antes, nas celebrações em Guimarães.

Duarte Pacheco, recebido pelo governador civil, major Monteiro Leite, e membros da comissão distrital dos centenários, à entrada do distrito, junto ao Ameixial, encontrou uma cidade engalanada, com milhares de pessoas e ruas decoradas.

 

 

No dia seguinte, após receção no governo civil pelas entidades regionais, prelados de Faro, Beja e Cabo Verde, o ministro recebeu no Arco da Vila, a chave da cidade, desenhada pelo pintor Lyster Franco e concebida na Escola Tomás Cabreira.

Chave que lhe foi ofertada pelo presidente da Câmara, Francisco Barros, descerrando depois, perante milhares de pessoas, uma lápide de homenagem a D. João III. O local, bem como alguns edifícios envolventes, encontravam-se ornamentados à século XVI.

Após uma passagem triunfal na Rua do Município, sob uma chuva de flores e papelinhos, o ministro assistiu à inauguração do monumento a D. Francisco Gomes de Avelar, na então denominada Praça Almirante Reis (Largo da Sé).

Com 2,6 m de altura, a estátua, da autoria de Raul Xavier, foi uma iniciativa de Mário Lyster Franco. Após o momento solene, o bispo do Algarve, D. Marcelino Franco, celebrou uma missa campal, a que assistiram as entidades e uma multidão de populares.

À tarde, foi inaugurada, nas dependências do Seminário, a exposição de Arte Sacra, Iconográfica e Bibliográfica, evocativa de D. Francisco Gomes.

 

Exposição de Arte Sacra

Comissariada pelo ainda padre José António Pinheiro e Rosa, a exposição reuniu, no edifício do Seminário, por aqueles dias cedido à Diocese (longe iam os tempos da I República), alfaias litúrgicas da maioria das paróquias do Algarve, custódias (Raposeira, Vila do Bispo, Ameixial, etc.), cálices (Portimão, Guia, Martinlongo, Tavira, etc.), coroas e resplendores de imagens, missais e outros objetos de altar, crucifixos, o lampadário de Monchique, paramentos, navetas, castiçais, imagens, pálios, etc.

Na sala dedicada ao bispo Gomes do Avelar, estavam expostos o seu retrato, pertencente às Caldas de Monchique, a mitra, os báculos que empunhara, a estola, e pastorais, provisões, editais e cartas por si redigidas, entre outras peças e documentos. Exposição «muito visitada pelos estudiosos», segundo o Diário de Notícias (DN).

Inaugurada a mostra, foi descerrada na Praça D. Afonso III, pelo ministro, um padrão «comemorativo da conquista do Algarve e da unidade territorial da Nação».

À mesma hora, segundo o jornal «O Século», era hasteada a bandeira de D. Afonso III em todos os castelos da província.

De seguida, o presidente da Comissão Executiva das Comemorações Centenárias, o também algarvio Júlio Dantas, discursou sobre os aspetos históricos e elogiou as belezas do Algarve, exortando por fim os algarvios a estimar e conservar aquele monumento «comemorativo dos sete séculos do Algarve Português».

Em cortejo, a comitiva dirigiu-se para o Largo de São Francisco, onde se encontrava, em recinto fechado, a «exposição regional».

 

A Exposição Regional

«O grande certame, o primeiro que se realiza no Algarve e dos melhores que se têm feito em Portugal, constituiu um autêntico triunfo e uma clara demonstração da importância desta província no plano económico da Nação». Foi desta forma que «O Século» sintetizou a exposição, cujos pavilhões foram concebidos pelo farense Carlos Porfírio, coadjuvado por dezenas de operários algarvios.

Em linhas modernas de estilo nacional, a exposição dividia-se em duas alas: na da direita, as representações dos concelhos do Barlavento, e, na da esquerda, os do Sotavento.

Autarquias que ali levaram o que de melhor tinham nos seus territórios, destacando-se, como os melhores stands, os de Loulé, Albufeira, Vila Real de Santo António e Silves.

O jornalista de «O Século» legou-nos a descrição dos conteúdos expostos. Assim, o primeiro concelho do Barlavento representado era Silves, que exibia artigos da indústria corticeira, o busto de João de Deus, artigos de arte popular, trabalhos de alunos da Escola Industrial e, na parte histórica, o castelo, estandartes e relíquias antigas.

Seguia-se Vila do Bispo, com cereais, mel, barros, queijos, frutas e fotografias daquela região. Aljezur tinha a legenda «Tudo exporta, excepto azeite», apetrechos da lavoura, tear antigo, etc.

Portimão expunha doces regionais e empreitas finas. Lagoa, barros vidrados, empreita fina, trabalhos rurais de Estômbar, e fotografias da praia do Carvoeiro.

Albufeira mostrava um grande quadro representando D. Afonso III, uma miniatura do seu castelo, utensílios de pesca, cordoaria e trabalhos de esparto.

Monchique, um tear antigo, trabalhos em lã e retalhos, aguardente de medronho e panos de arte rural. Por fim, Lagos, miniaturas de carros antigos, conservas de peixe, doces, esteiras, rendas e empreitas finas.

Na ala esquerda, Olhão evidenciava trajos e costumes antigos, pesca e conservas, cerâmica e barros vidrados, artigos de arte popular, esteiras de palma, etc.

Seguia-se Castro Marim, com miniaturas da Festa de S. Sebastião, rendas, lãs, vinhos, mel, sal, tecidos de tear da serra, instrumentos e alfaias agrícolas, trabalhos em cana, etc.

Por sua vez, Vila Real de Santo António exibia conservas, mosaicos, rendas, mármores, fotografias artísticas, etc.

Faro, o busto de D. Francisco Gomes, miniatura do monumento aos combatentes da Grande Guerra, quadros de Carlos Lyster Franco alusivos à conquista do Algarve, projeto de urbanização de Santo António do Alto, ânforas romanas, fotografias e artigos regionais.

 

 

Já S. Brás de Alportel apresentava artigos manufaturados da indústria corticeira, pirotecnia e olaria. Tavira, em fundo, o castelo, pedras antigas, fotografias artísticas, etc.

Alcoutim, roca de fuso e seus trabalhos, colchas de lã, queijos, mel, antimónio e artigos de arte regional.

O derradeiro, Loulé, um magnífico mostruário de trabalhos em cobre, barros vidrados, olaria, cordoaria, empreitas finas, cera e tecidos de cotim.

Depois das autarquias, seguiam-se os pavilhões da Junta Autónoma dos Portos do Barlavento e Sotavento, com a maqueta da barra Faro-Olhão, planta do porto de Portimão e maqueta dos seus molhes, gráfico sobre o movimento comercial e de pescado no Algarve, fotografias, etc.

O stand do Instituto Nacional do Trabalho, ao centro, escudo, e, nas laterais, a lista dos sindicatos nacionais e casas do povo, etc. No seu interior, em várias salas, casas dos pescadores, gráficos com o desemprego na região (a baixar desde o fim de 1939), etc.

O pavilhão do Grémio dos Exportadores de Frutos e Produtos Hortícolas do Algarve, com gráficos do movimento das produções e exportações, montes de alfarrobas, fotografias de amendoeiras em flor e dos trabalhos de recolha e seleção de frutos, mostruários de alfarroba, amêndoa e figo e doces regionais.

A Casa José Sousa e Silva, com uma nora em miniatura. O Grémio das Conservas de Peixe do Barlavento e do Sotavento, com centenas de latas de conserva, produzidas na região, embalagens artísticas, gráficos, fotografias, etc.

O pavilhão da EVA, com gráficos e mapas das carreiras de camionetas efetuadas (num dia percorriam uma distância de 4 vezes a travessia de Portugal, norte-sul).

Além dos stands do Instituto Português das Conservas de Peixe, Junta Nacional do Vinho, Junta Nacional da Cortiça e Indústria da Pesca do Algarve, com uma armação em miniatura para a captura de atum.

Por fim, o pavilhão central. No seu interior, surgia a cruz da Fundação ao fundo, ladeada por dois guerreiros com almos e lanças. Aos pés, uma grande caravela de velas enfunadas. Aos lados, dois padrões das Descobertas, no da direita, o Infante D. Henrique, e, no da esquerda, Vasco da Gama, com cronologias dos Descobrimentos.

Em frente ao pavilhão, um lago com jogos de água e, no centro do terreiro, mastros com as bandeiras da «Legião» e da «Mocidade». Nos stands dos organismos corporativos, além destas bandeiras, existiam frases de Salazar de exaltação e virtudes do regime.

À noite, decorreu um banquete de gala no salão nobre dos Paços do Concelho, seguido de um concerto no cine-teatro pela Grande Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro Frederico de Freitas.

No recinto da exposição, visitada nessa noite por cerca de 10 mil pessoas, decorreram concertos, combates de carretilhas, tendo a iluminação dos pavilhões causado admiração pela sua beleza. Às 23h00, um trimotor sobrevoou a cidade lançando fogo de artifício.

 

As comemorações em Sagres e Lagos

Ao contrário do que sucedeu em Faro, em Sagres, as comemorações foram transmitidas em direto pela rádio, afinal o regime ia ali fazer a «Glorificação do Infante e dos navegadores do ciclo Henriquino».

No país, várias empresas rodoviárias organizaram excursões a Sagres, circulando naquele fim de semana «constantemente» camionetas entre Lagos e Sagres, para transportar os viajantes dos comboios, alguns especiais, como já acontecera em Faro. O alcatroamento da estrada entre aquelas localidades ficara concluído dias antes.

Os tempos eram outros e o programa oficial advertia que Sagres não tinha alojamentos disponíveis e a alimentação era difícil, pelo que todas as pessoas que ali fossem deveriam levar o seu farnel.

As solenidades iniciaram-se na noite de 14 de junho, com uma procissão a Nossa Senhora da Graça, que percorreu o circuito completo da fortaleza. O vento não deixou as velas acesas, mas o «espectáculo», segundo o DN, não deixou de ser impressionante.

Finda a procissão, foi iluminada uma cruz de Cristo monumental, de madeira, com 25 metros de altura, erigida no extremo Sul do promontório. No mar, a esquadra apresentava-se também iluminada.

Em Sagres, o Chefe de Estado fez-se representar pelo ministro da Marinha, participando também na cerimónia o ministro das Colónias, bem como uma embaixada do Brasil, governadores civis de Faro e Beja, antigos colonos, indígenas de Angola e Macau, o rei do Congo, forças militares e milhares de pessoas, de acordo com «O Século».

Na manhã de 15 de junho, foi organizado um longo cortejo cívico-religioso, até ao local onde se ia realizar a missa Pontifical, junto à majestosa cruz de madeira.

Após a cerimónia, cantada pelos seminaristas algarvios, por a Orquestra Sinfónica Nacional não ter chegado atempadamente, o prelado algarvio procedeu à bênção do Oceano com a custódia manuelina de Vila do Bispo. Este ato estava previsto para o Cardeal Cerejeira, que acabou por cancelar, tal como o general Carmona, a vinda ao Algarve.

Finda a bênção, alguns aviões sobrevoaram o promontório, lançando ramos de flores. Atuou então a Orquestra Sinfónica e a Sociedade Coral de Lisboa.

Durante a missa, os clarins haviam tocado a marcha de continência, salvando uma bateria da marinha e os navios fundeados em frente ao promontório.

Seguiu-se uma alocução proferida pelo arcebispo de Évora e depois a representação do auto «Rosas de Santa Maria», de autoria do poeta altense Cândido Guerreiro, com música também de um algarvio, Francisco Fernandes Lopes, de Olhão.

A peça de teatro, que «agradou profundamente», evocava o regresso de Gil Eanes, após a passagem do Cabo Bojador. Numa das cenas foi entregue ao infante um ramo de rosas, em ouro e prata, representando as colónias portuguesas.

Ramo que foi seguidamente colocado pelo prelado algarvio, acompanhado dos ministros, no altar da Virgem da Guadalupe, na ermida homónima, ao som da «Salvé Rainha», entoada em coro por pescadores algarvios.

A comitiva ministerial partiu então para Lagos onde almoçou. Após o repasto, o representante do general Carmona entrou na cidade, «lindamente engalanada», pela denominada «Porta da Vila», recebendo das mãos do vice-presidente da Câmara, tenente Amado da Cunha, a chave da cidade.

Seguiu-se uma sessão solene na Câmara Municipal, onde o lacobrigense Júlio Dantas exaltou o Algarve nos aspetos turístico, industrial e agrícola e focou em termos eloquentes a figura do Infante D. Henrique.

Encerrada a cerimónia pelo ministro da Marinha, teve lugar, no Largo Camões, a inauguração do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, solenidade à qual, de acordo com o DN, «assistiu a cidade inteira». A comitiva ministerial e a embaixada brasileira regressaram nessa mesma noite a Lisboa.

 

Capa do programa da festa em Sagres

O Estado Novo, que se queria modelar, cumpriu com êxito a tarefa comemorativa de exaltação histórica e de auto-promoção, todavia, desconsiderou os algarvios.

Nada a que o Algarve não estivesse desde há muito habituado, pelos sucessivos governantes de outros regimes e, neste campo, o Estado que se queria novo também não diferiu. É certo que vieram ministros, mas é insólito que a embaixada do Brasil estivesse presente sem os chefes de Estado e do Governo portugueses.

Para mais, quando a presença de Salazar constava no programa oficial em Sagres. Mas a festa, organizada pelos algarvios, fez-se e estes compareceram em massa, tal como muitos forasteiros de todo o país.

Hoje, volvidas oito décadas, a memória das comemorações centenárias quase se perdeu na região. É certo que muito do espólio ali presente foi integrado posteriormente no Museu Etnográfico Regional de Faro, e ainda lá está a lápide sob o Arco da Vila, muito deteriorada é certo, ou a estátua a D. Francisco Gomes.

O padrão dedicado à conquista do Algarve, não obstante o apelo de Júlio Dantas para a sua conservação, foi destruído num acidente de viação, e no seu lugar colocada a estátua de D. Afonso III, a 7 de Novembro de 1966.

Quanto à exposição de Arte Sacra, Pinheiro e Rosa interrogava-se em 1942: «Reunir-se-ia aqui tudo quanto no Algarve existe de arte sacra? Não. (…) ainda ficou muita coisa para expor. Que não seja só… no próximo centenário que uma exposição mais completa se realize!».

O certo é que até hoje, 80 anos depois, os algarvios não lograram visualizar de novo reunido tão nobres alfaias litúrgicas ou esculturas.

A região transmutou-se e a maioria da atividade económica de então desapareceu, tal como muitos dos elementos identitários dos concelhos.

O Algarve não voltou a organizar uma exposição regional daquele género, embora outros certames de índole mais comercial tenham surgido a afirmar, nos nossos dias, o vigor da região e dos algarvios.

 

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: As imagens são do «Boletim da Junta de Província do Algarve – Centenários 1140-1640-1940», de 1942.

 

 

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