O barrocal serra e o turismo em espaço rural

“Na fase baixa do ciclo turístico pensamos, sobretudo, na sua recuperação, na fase alta não precisamos de pensar”

Regresso ao tema do turismo em espaço rural. As alterações climáticas, a transformação digital, a pandemia da covid 19, as mudanças necessárias no modelo de turismo massificado e intensivo, as novas regras de etiqueta social pós-pandemia, obrigam-nos a refletir e a reconsiderar as relações cidade-campo e a economia do turismo em espaço rural.

Nestes dois casos há, igualmente, um nexo de causa-efeito com os problemas de saúde pública. Tanto mais que, como sabemos, no espaço rural há cada vez menos espaço de produção e cada vez mais espaço de consumo. Quer dizer, pela via da produção e do consumo, temos à nossa frente um leque muito variado e colorido de modos de ocupar o campo, de fazer agricultura e turismo rural. Façamos uma pequena incursão por esses novos territórios emergentes.

 

A variedade de agriculturas locais e regionais

Quero crer que, doravante, haverá uma maior variedade de modos de agricultura e turismo em espaço rural em consequência de profundas alterações nos mercados de trabalho e nos padrões de mobilidade dos cidadãos. Maior mobilidade e nomadismo, de um lado, maior pluriatividade e plurirrendimento nos mercados de trabalho, de outro, significam, também, soluções mais inovadoras e imaginativas no mundo rural.

Eis algumas dessas soluções ou modos agrorurais:

1. A agricultura das quintas novas: mais cosmopolita, criativa, ecológica, uma agricultura de fusão de atividades, protagonizada por neorurais das mais variadas proveniências;

2. A agricultura acompanhada pela comunidade local: uma agricultura social e comunitária de proximidade feita a partir de bairros, clubes, associações, cooperativas, redes locais apoiadas em plataformas tecnológicas e colaborativas;

3. A agricultura convencional verticalizada: uma agricultura mais tecnológica que contratualiza com as médias e grandes superfícies comerciais, com standards de qualidade impostos/contratualizados pelas cadeias de distribuição;

4. A agricultura convencional regionalizada: uma agricultura de micro e pequena dimensão integrada no rural tradicional, com ligações aos mercados locais, às organizações de produtores (OP), cooperativas, intermediários e angariadores;

5. As agriculturas de nicho, de conservação e/ou autor: as agriculturas com um desenho alternativo, ligadas a formas de ecologia radical, com atividades lúdicas, criativas e culturais de inspiração pessoal e artística em formatos e manifestações muito diversos, por exemplo, as quintas pedagógicas e terapêuticas ou os campos de férias e aventuras.

 

A modernização do rural tradicional, duas abordagens complementares

Para modernizar o rural tradicional algarvio há duas abordagens complementares, a fileira económica, verticalizada e extrovertida, e o sistema produtivo local, mais territorializado e introvertido. A título de exemplo, pensemos na fileira económica da cabra algarvia e nas tarefas que essa opção acarreta, lá onde a cabra algarvia tem o seu nicho ecológico preferido (quem diz cabra diz mel, medronho, frutos silvestres, pomar tradicional de sequeiro, citrinos, flores, cogumelos, cortiça, caça, etc.).

Eis o caderno de encargos da cabra algarvia:

– Em primeiro lugar, trata-se de reagrupar os produtores desta raça autóctone tendo em vista valorizar a biodiversidade local da espécie e o seu nicho ecológico;

– Em segundo lugar, trata-se de organizar a assistência técnica, associativa e pública, nessa linha de abordagem mais agroecológica e ecossistémica;

– Em terceiro lugar, trata-se de rejuvenescer o capital social envolvido, seja no plano familiar dos produtores, seja convidando “novas entradas” para o agrupamento;

– Em quarto lugar, trata-se de melhorar o processo de produção, de alargar as funções da cadeia de valor e de acrescentar as suas circularidades (economia circular), tendo em vista reduzir os seus custos de transação internos: raça, pastagem, biodiversidade, limpeza de matos, compostagem, etc;

– Em quinto lugar, trata-se de diversificar a “linha de produtos finais” da cabra algarvia e de diversificar os mercados-alvo por via de uma comercialização e marketing mais inteligentes;

– Finalmente, trata-se de capitalizar a fileira de produção e de articular a cadeia de valor da cabra algarvia com a exploração florestal das ZIF, acrescentando, por essa via, a massa, o músculo e o sistema nervoso deste sistema produtivo local sub-regional.

Todavia, esta metodologia para a verticalização da fileira da cabra algarvia só será inteiramente bem-sucedida se, ao mesmo tempo, tivermos em mãos um projeto de sistema produtivo local (SPL), uma pequena economia de aglomeração, que crie um ambiente favorável nas seguintes áreas de trabalho:

– O alargamento das áreas da agroecologia e a conversão à agricultura biológica;

– A organização dos mercados locais, dos clubes de agricultores, dos circuitos curtos e das suas redes de distribuição,

– O desenvolvimento das atividades ligadas à economia circular (redução, reciclagem, reparação e reutilização);

– A consideração das artes da paisagem e da terra associadas ao turismo de natureza;

– O alargamento das atividades criativas e culturais, desde as artes culinária e gastronómica, ao artesanato tradicional, os materiais locais e as oficinas de artes e ofícios;

– O desenvolvimento dos produtos e serviços turísticos nas tipologias do turismo de saúde e bem-estar para a sociedade sénior;

– A promoção das artes do lazer e do recreio, dos espaços pedagógicos, lúdicos e terapêuticos, por exemplo, para a sociedade sénior, onde se incluem os campos de férias e as residências seniores.

 

O barrocal serra, os bens e serviços associados à produção agroflorestal

A verticalização de uma atividade económica ao longo de uma fileira deve ser, portanto, acompanhada e complementada, de tal modo que destes cruzamentos e desta malha possamos derivar um novo cabaz de bens e serviços.

Enumeremos, por exemplo, as artes tradicionais e pensemos no que poderia ser realizado com algumas pequenas inovações introduzidas nestas atividades de tal modo que, a partir delas, se pudesse estruturar um mosaico produtivo e uma economia de rede e visitação turística:

1. As artes do pastoreio da cabra algarvia;
2. As artes da rouparia/queijaria tradicional algarvia;
3. As artes da tirada da cortiça;
4. As artes do varejo e da apanha da azeitona;
5. As artes do varejo e da apanha da alfarroba e da amêndoa;
6. As artes da apicultura e da melaria e a transumância das abelhas;
7. As artes da pisa a pé das uvas;
8. As artes da destilação do medronho;
9. As artes da apanha do figo da índia;
10. As artes da apanha dos produtos micológicos;
11. As artes associadas à poda e ao enxerto;
12. As artes associadas à cosmética tradicional;
13. As artes associadas às ervas aromáticas;
14. As artes associadas às ervas medicinais;
15. As artes da cestaria e da olaria;
16. As artes associadas às flores comestíveis;
17. As artes associadas à pesca artesanal;
18. As artes associadas à caça e à cinegética;
19. As artes da confeitaria e doçaria tradicionais;
20. As artes associadas à culinária tradicional;

A título de exemplo, aponto algumas inovações em matéria de designe de produto obtidas pelo cruzamento entre as fileiras verticais de produção e as economias da visitação e do consumo, aqui sob a designação de “um dia em”:

– Um dia na floresta da serra algarvia: a apanha dos frutos silvestres e a destilação do medronho conjugado com o turismo micológico e os percursos de natureza e a gastronomia serrana da dieta mediterrânica;

– Um dia nas aldeias do barrocal algarvio: a colheita das ervas aromáticas e medicinais, a sua preparação e destilação, conjugado com a visita ao apiário e visitas guiadas ao património vivo e museológico das aldeias; à noite a gastronomia mediterrânica e os serões de música e teatro na aldeia;

– Uma jornada científica e cultural no barrocal e serra algarvios: visitas guiadas para a observação dos endemismos florísticos e faunísticos do barrocal e serra algarvios, conjugado com percursos de natureza, as paisagens literárias, a gastronomia mediterrânica e os serões culturais de aldeia; importa lembrar que a inventariação e o plano de salvaguarda da dieta mediterrânica obrigarão a criar uma linha de investigação nesta área em particular;

– Um dia na caça: a preparação e a participação numa caçada, a culinária dos produtos da caça, sessões sobre a natureza e a vida selvagem e o turismo cinegético;

– Um dia na rota da cortiça: a tirada da cortiça e a sua transformação industrial, as artes artísticas e decorativas associadas à cortiça, os produtos e a gastronomia do montado, a apanha de flores comestíveis, as sessões científicas, culturais e recreativas associadas à multifuncionalidade do montado;

– Um dia no pastoreio: pastorear um rebanho de cabras de raça autóctone, recolher o leite e produzir o queijo artesanal, provar a gastronomia da dieta mediterrânica, assistir às sessões culturais e recreativas associadas ao sistema agro-silvo-pastoril;

– Um dia no pomar tradicional de sequeiro do barrocal algarvio: a apanha do figo, da amêndoa e da alfarroba, a sua preparação e transformação, o artesanato da doçaria tradicional, workshops sobre a doçaria tradicional, a gastronomia da dieta mediterrânica, sessões sobre artesanato local;

– Um dia na vinha e na adega: o conhecimento das boas práticas de produção na vinha, a pisa da uva, o processo de vinificação, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de vinho e o enoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas à vinha e ao vinho;

– Um dia no olival e no lagar: o conhecimento das boas práticas de produção no olival, a apanha da azeitona, o processo de transformação no lagar, a reciclagem de resíduos, os produtos derivados, as provas de azeite e o olivoturismo, a gastronomia da dieta mediterrânica associada, sessões culturais, técnicas e científicas ligadas ao olival e ao azeite.

Estes programas curtos podem, ainda, estar associados com programas especiais para o turismo sénior e o turismo para grupos de mobilidade reduzida e ser articulados, por exemplo, com residências artísticas e produção criativa e cultural (semanas criativas e culturais) e, ainda, com programas de educação física de manutenção e tratamento adaptados a grupos especiais e programas recreativos de eventos e espetáculos noturnos de fados, de teatro, de música de câmara, de canto e poesia, de cinema e documentário, campeonatos de jogos de mesa, concursos vários, etc…

 

Nota Final

O exemplo da linha de artesanato “TASA” (técnicas ancestrais, soluções atuais) é uma boa ilustração deste campo imenso de possibilidades que combina matérias-primas locais e tecnologias artesanais com soluções de designe e comunicação atuais que revolucionam o marketing comercial e territorial devolvendo aos territórios e aos artistas locais uma relevância que eles não tinham até aí.

Se pensarmos nas múltiplas associações virtuosas em redor da cabra algarvia, cortiça, frutos silvestres, mel, medronho, cogumelos, ervas aromáticas e medicinais, cosmética artesanal, cinegética, citrinos, o universo das “sementes perdidas”, para citar apenas alguns exemplos, verificamos que há um mundo surpreendente que jaz expectante sob os nossos pés à espreita de uma oportunidade.

Termino como comecei. As alterações climáticas, a transformação digital, a pandemia da covid 19, as mudanças necessárias no modelo de turismo massificado e intensivo, as novas regras de etiqueta social pós-pandemia, obrigam-nos a refletir e a reconsiderar as relações cidade-campo e a economia do turismo em espaço rural.

Não esqueçamos, também, os riscos de “estar na moda”, por exemplo: a especulação imobiliária, a pressão sobre os pequenos proprietários, a gentrificação da população idosa, o sobreaquecimento dos recursos naturais, a perda de identidade e capital simbólico, a exploração socio-laboral, enfim, os efeitos derivados de uma região mono industrial de turismo massificado e intensivo.

Não esqueçamos, finalmente, o paradoxo turístico a funcionar: “na fase baixa do ciclo turístico pensamos, sobretudo, na sua recuperação, na fase alta não precisamos de pensar”.

Quer dizer, uma recuperação acelerada do turismo tem um efeito dilatório, não cria as condições para um pensamento radical sobre o futuro da região e, portanto, sobre a diversificação da sua base económica. Pensem nisso, quando visitarem o barrocal serra algarvio.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 




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