A região-cidade do Algarve

A inteligência coletiva dos territórios e a política de ordenamento

Temos refletido pouco sobre o impacto que as grandes transições em curso – climática, energética, digital, demográfica, migratória, socio-laboral e, agora, a emergência sanitária e os efeitos sistémicos da Covid-19 – terão sobre as políticas urbanas e o ordenamento do território.

Estou a pensar na inteligência coletiva dos territórios, em três escalas principais: a cidade-região nas áreas metropolitanas, a região-cidade nas áreas de baixa densidade e os territórios-rede nas áreas naturais e rurais (a 2ª ruralidade).

Imagine-se, por exemplo, a inteligência coletiva que anima as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de cooperação empresarial, as redes de inovação social, as redes amigas do ambiente e, num país tão pequeno como o nosso, o potencial colaborativo que elas podem estabelecer com as cidades-região (áreas metropolitanas), as regiões-cidade (redes de cidades de baixa densidade) e, ainda, os territórios-rede da 2ª ruralidade. A reflexão que se segue incide sobre estes três níveis de inteligência coletiva territorial que cobrem, no essencial, as áreas objeto da política de ordenamento.

 

A cidade-região das áreas metropolitanas

No princípio era a natureza, todas as áreas naturais. Depois vieram as áreas agrícolas e no seio destas áreas nasceram as primeiras cidades.

Com o tempo estas cidades cresceram em direção às áreas agrícolas e naturais, fragmentando os habitats e ecossistemas da vida natural.

As cidades continuaram a crescer e transformaram-se em metrópoles cada vez maiores, rodeadas de anéis e circulares suburbanos e periurbanos cortados por vias de comunicação e transporte.

Nos seus interstícios nasceram terrenos baldios, logradouros, guetos urbanos, bairros pobres, terrenos urbanizáveis, mas, também, parques industriais e zonas comerciais e até bioparques e parques ambientais.

As áreas agrícolas e naturais foram as principais vítimas deste crescimento vertical das cidades-região metropolitanas. É aqui que nos encontramos hoje. A natureza virou ambiente.

As áreas agrícolas converteram-se em mundo rural. As áreas naturais foram reclassificadas em áreas de paisagem protegida. A agricultura tornou-se “de precisão”. As cidades tornaram-se “smart”.

No final, a cidade-região das áreas metropolitanas é o produto direto do modelo urbano-industrial, mas é, também, o produto da discricionariedade político-partidária dos territórios urbanos quando tomam decisões sobre locais de produção, vias de comunicação e transporte, desafetação de áreas naturais e seminaturais, locais expectantes e urbanizáveis, locais de habitação, comércio e turismo.

Sabemos como as cidades inteligentes estão na ordem do dia. Atualmente, prevalece a versão tecnológica e gestionária de smart city que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia, a gestão de bairros inteligentes, a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos.

Nesta abordagem mais tecnológica a inteligência urbana incide, em geral, sobre três blocos de medidas: a virtualização de serviços convencionais numa ótica vertical de serviço-utente, a criação de plataformas digitais made in numa perspetiva mais horizontal e colaborativa e, por fim, uma lógica mais uberizada feita de sistemas SIG/GPS e inúmeros aplicativos.

Há, todavia, um défice de inteligência coletiva e de interação virtuosa, na relação da smart city com as redes de conhecimento anteriormente referidas.

A questão nuclear é aquela que foi formulada pelo arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT):

«As ideias que presidem à criação da nova cidade devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urbanismo-ecologia. O homem de hoje tende a deixar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, também, as atividades. O conceito de paisagem global tende a informar todo o processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo» (Telles, 2003: 334).

Fica, pois, claro que vai uma longa distância entre a simples provisão inteligente de serviços públicos de uma smart city e a criação de uma plataforma de conhecimento integrada numa estratégia de desenvolvimento territorial mais compreensiva e dilatada no tempo.

Entretanto, pelo caminho, ficaram algumas vítimas: os grupos mais desfavorecidos em subúrbios inóspitos e agressivos, os ecossistemas naturais cada vez mais poluídos e fragmentados, os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais semiabandonados, onde apenas restam alguns serviços públicos.

Ora, justamente, a próxima fase da smart city é o restabelecimento de um laço forte de solidariedade em direção a estes elementos mais discriminados.

A nova inteligência coletiva urbana não pode menosprezar a geomorfologia do território, a arquitetura biofísica dos sistemas naturais e seminaturais e as infraestruturas ecológicas indispensáveis à sustentabilidade do espaço, já para não falar dos valores culturais das paisagens tradicionais.

Nesta estratégia de cidade-região e conexão cidade-campo o segredo reside na nova arquitetura biofísica e paisagista, onde o plano verde, a estrutura ecológica e a rede de corredores verdes desempenham um papel fundamental.

No final, esperamos nós, a cidade monolítica, zonada e discriminatória estará condenada, pois teremos criado as condições para restabelecer a unidade da urbe-ager-saltus-silva. O desenho da cidade grande comportará a integração da ecologia no urbanismo, uma atenção muito particular aos grupos sociais mais vulneráveis, uma nova mobilidade urbana e a preservação dos elementos patrimoniais mais valiosos da sua herança histórico-cultural.

 

 




 

A região-cidade das áreas de baixa densidade

Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de comunicação, os dois arcos metropolitanos de Lisboa e Porto estarão muito próximos dos arcos ou redes de vilas e cidades do interior, isto é, as duas cidades-região metropolitana estarão bem articuladas com as futuras regiões-cidade das áreas de baixa densidade.

E o segredo da futura política de ordenamento do território, em toda a sua extensão, reside, justamente, nesta articulação bem-sucedida. Em alguns casos, as atuais comunidades intermunicipais (CIM) podem desempenhar este papel de região-cidade como é, por exemplo, o caso do Algarve.

Os antigos distritos poderiam ser, também, uma referência útil pois alguns coincidem com as CIM. A estruturação destas regiões-cidade, inspirada na doutrina da “mutualização dos bens comuns” é, ainda, fundamental para a reabilitação das áreas naturais e das zonas rurais mais remotas, pois fazem-nas cair na sua área de influência mais facilmente.

Nesta filosofia dos bens comuns das regiões-cidade é decisivo o contributo das redes de conhecimento. Estou a falar das redes de ciência e investigação, das redes de cooperação empresarial, das redes de inovação social e das redes amigas do ambiente, que se podem constituir em plataformas digitais colaborativas muito eficazes no planeamento e desenvolvimento dos territórios inteligentes e criativos.

 

Os territórios-rede da 2ª ruralidade

O terceiro pilar desta estratégia de planeamento e desenvolvimento territorial diz respeito aos territórios-rede da 2ª ruralidade.

Ora, as regiões-cidades, pela sua própria natureza, podem criar os efeitos externos favoráveis para um saudável desenvolvimento das áreas naturais e rurais, mesmo as mais remotas.

E tanto mais quanto estas se constituírem em territórios dotados de inteligência coletiva e, portanto, de atratividade e visitação.

Estou a falar de sinais distintivos e recursos como amenidades e zonas de recreio e lazer, de estações e campos arqueológicos, de terroirs bem estabelecidos em redor de zonas de produção DOP/IGP, de bosquetes multifuncionais, de parques naturais e geoparques, de zonas de intervenção agroflorestal, de áreas de cooperação agrícola, de áreas com endemismos florísticos e faunísticos, de áreas de paisagem com valor histórico-literário, entre muitos outros motivos que se podem constituir em territórios-rede para efeitos de aproveitamento agroambiental e visitação turística.

À semelhança do exemplo das regiões-cidade, e aqui por maioria de razão, os territórios-rede da 2ª ruralidade beneficiam da retaguarda e dos efeitos externos positivos gerados no seio das redes de conhecimento antes referidas.

Acresce, em tempo de transição digital, uma particularidade destes territórios-rede, isto é, eles são territórios abertos ao mundo que as redes digitais se encarregam de promover e dar a conhecer. Por isso, e mais uma vez, é tudo uma questão de conhecimento e mobilização de inteligência coletiva.

 

Notas Finais

No modo convencional de organizar o território os cidadãos iam ter com os serviços que estavam fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana. No modo digital, e em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso smartphone.

A transição digital vai revolucionar a dimensão espaço-tempo, a mobilidade urbana e a arquitetura dos territórios. Agricultura de precisão, planeamento urbanístico (smart cities), plataformas de compra e venda, máquinas e assistentes inteligentes, serviços públicos em linha, mobilidade autónoma, ensino e trabalho à distância, internet dos objetos, interfaces de realidade aumentada e virtual, redes sociais, vigilância eletrónica, tudo se encaminha para uma nova dimensão espaço-tempo, com menos distância e mais tempo livre (intermitente), com mais campo na cidade e mais cidade no campo.

Se não ficarmos “confinados digitalmente”, teremos, finalmente, um horizonte mais largo e promissor à nossa frente. A terminar, e em jeito de síntese, talvez possa resumir o meu programa da seguinte forma:

– A política de ordenamento em três escalas: cidade-região, região-cidade, territórios-rede da 2ª ruralidade,
– As várias redes de conhecimento entre ecologia, urbanismo e ruralidade,
– As diversas funcionalidades e conectividade das infraestruturas ecológicas,
– A diversidade e qualidade dos serviços de ecossistema provisionados,
– A diversidade/qualidade dos benefícios prestados e a disposição a pagar pelos cidadãos,
– Os processos de transformação digital e as plataformas que nos poderão ajudar,
– As interações inteligentes entre comunidades online e comunidades offline.

Tudo somado, eis aqui um bom programa de investigação-ação para cumprir em redor, por exemplo, da smartificação da região-cidade do Algarve e dos territórios-rede do barrocal-serra que caem na sua área de influência.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 




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