A Covid-19 promove a subversão da lógica institucional da segurança?

«Vivemos tempos incomuns, bizarros e ao mesmo tempo (sur)reais nos quais alguns países aproveitaram para resgatar a tendência ficcionada do poder de uns para que se valide a voz de partes interessadas»

Apanhados pela COVID-19, a solidariedade de uns, a responsabilidade e o sentido comunitário de outros, fazem-nos subscrever de olhos fechados a validação para qualquer que seja a política de privacidade; é ver-nos colocar vistos atrás de vistos naquele quadradinho que aparece no fim de cada texto inerente à política de privacidade “sim, tomei conhecimento”! Cookies??? Who cares?! Levem tudo!

Ainda que possa ser considerado um argumento falacioso: a segurança coletiva, o bem comum, sempre se sobrepôs à segurança singular – ao bem individual.

Com tudo o que podemos criticar nesta declaração, temos de assumir que esta questão, em si mesma, não é nova.

Lembremo-nos das questões da bioética sempre que recorrem aos modelos utilitaristas para responder a dilemas, ou até a algo tão simples como o facto de termos doenças transmissíveis de notificação obrigatória, por exemplo o Botulismo.

Muito se tem falado sobre uma App que alerta os utilizadores se alguém, perto de si (ainda que sem identificação), esteve infetado por COVID-19.

A questão a colocar é se, pelo facto de não ser uma aplicação de uso obrigatório, pelo facto de não guardar a localização (será que a Google e que a Apple o permitem?) e por não revelar a identidade de alguém infetado, poderá entender-se enquanto segura.

E poderíamos começar um tratado a partir daqui: onde estão alojados os dados, quem acede e quando o faz a que níveis de dados tem alcance?

Uma aplicação promovida pelo Estado, tutelada/desenvolvida por uma instituição privada sem fins lucrativos, levanta sempre e inevitavelmente questões – por melhor que seja a finalidade comum.

E voltamos à velha questão da filosofia: os fins justificam os meios? Não é a App que nos salva e é bom que estejamos conscientes que a transparência, se omitida numa primeira fase, terá sequelas sociais que dificilmente serão recuperáveis.

Isto não se trata apenas de filosofia(s), todos sabemos ou concordaremos sobre a assunção geral de que uma sociedade pode ser controlada com um simples ataque cibernético.

É fácil cair no discurso superficial (mas simbólico) de que tudo conta para “ajudar a ver o invisível”. Um pouco à semelhança da terceira temporada de Westworld a million dollar question que deveríamos colocar em cena é: quem vai beneficiar da inovação da ciência e da tecnologia?

Vivemos tempos incomuns, bizarros e ao mesmo tempo (sur)reais nos quais alguns países aproveitaram para resgatar a tendência ficcionada do poder de uns para que se valide a voz de partes interessadas.

Por este motivo, talvez seja um bom momento para pensar sobre a validade e ética digital, escutando aqueles que nunca deixaram de pensar em voz alta, o mesmo é dizer, em comunidade.

 




Autora: Lia Raquel Neves

© 2020 – Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva

Lia Raquel Neves formou-se em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, integrando, de seguida, o Mestrado em Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, elaborando a tese: «A Saúde como Autêntico Problema de Saúde Pública».
Nos últimos cinco anos trabalhou no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (Grupo de História e Sociologia da Ciência), investigando questões que entrecruzam a filosofia e sociologia da ciência com a evolução histórica e científica do conceito de saúde, bem como questões de ética prática e bioética.
Posteriormente, trabalhou no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo integrado o projeto “Intimidade e Deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal”, onde fez parte do Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe).
Já em Lisboa integrou a reta final do projeto Genetics Clinic of the Future (financiado pela Comissão Europeia no âmbito do Horizonte 2020) sediado no grupo de Ciência e Políticas no Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa.

 



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