Covid-19, os efeitos a médio e longo prazo

As medidas excecionais tomadas pelas autoridades públicas, se aplicadas com eficácia, deverão conter a recessão económica dentro de limites razoáveis

Estamos em guerra perante um inimigo invisível que nos causa dor e ansiedade e que tomou conta da amarga existência do nosso quotidiano. Os efeitos a curto prazo desta pandemia fazem o ano de 2020 completamente refém da Covid-19, seja no plano da saúde pública ou da saúde da economia.

Enquanto o vírus se globaliza a velocidades diferenciadas, consoante as zonas do globo, e prepara, por essa via, as próximas vagas da pandemia, interrogo-me quanto aos efeitos a médio e longo prazo que ela pode desencadear.

À nossa frente, em pano de fundo, o horizonte da próxima década. Eis algumas tendências pesadas que poderão ser afetadas pelos efeitos da Covid-19:

1) Em primeiro lugar, a implementação do Acordo de Paris e a estratégia global de combate às alterações climáticas; está em causa, nos próximos anos, a eficácia e a efetividade deste combate, não obstante os efeitos positivos de menores emissões de CO2 para a atmosfera, devido aos estados de emergência declarados.

2) Em segundo lugar, a estratégia de transformação tecnológica e digital, nos planos global, europeu e nacional; a pandemia altera as perceções geopolíticas atuais e não sabemos, ainda, como se fará o ajustamento, por exemplo, em relação ao lançamento da tecnologia 5G proveniente da China; está em causa, portanto, a eficácia, a segurança e a bondade desta estratégia considerada um dos elementos nucleares da geopolítica mundial.

3) Em terceiro lugar, o futuro próximo do multilateralismo como instrumento de uma globalização regulada; se a pandemia tiver efeitos benignos nas relações internacionais poderá servir para reforçar o multilateralismo, mas, neste momento, perante tanta incerteza, está em causa o papel das instituições nesse contexto e a estabilização das relações comerciais no plano global.

4) Em quarto lugar, a liberdade de circulação de pessoas em geral – turistas, trabalhadores migrantes, refugiados – será profundamente afetada; dependendo da duração e latitude da pandemia podemos estar à beira de um movimento geral de “desglobalização” com maior controlo da mobilidade de pessoas e bens; estamos com curiosidade em saber se, por causa desta pandemia, haverá uma próxima metamorfose do capitalismo.

5) Em quinto lugar, os cenários que se fazem em matéria de recessão económica em 2020 giram à volta dos 5%; seja qual for a quebra do PIB os países europeus serão empurrados, mais tarde ou mais cedo, para o mercado internacional da dívida pública; mesmo que a União Europeia cubra as primeiras necessidades através do BCE e do MEE (mecanismo de estabilidade europeu), o recurso ao mercado da dívida será uma inevitabilidade; como se irão comportar os mercados nesta matéria?

 




 

6) Em sexto lugar, a pandemia causa um sério revés na política sociodemográfica de cada Estado e na sua política de proteção e segurança social; estão em causa, a interdependência entre os saldos natural e migratório enquanto instrumento de uma política sociodemográfica coerente e a consistência financeira e operacional do Estado Social face aos problemas de proteção da sociedade sénior e da próxima vaga de desempregados.

7) Em sétimo lugar, a pandemia obriga-nos a rever em profundidade o modo como conduzimos as relações triangulares entre três gerações: a geração dos mais jovens (a escola nos seus vários níveis), a geração dos que trabalham (as várias modalidades de trabalho) e a geração sénior (os aposentados e reformados e a sua situação social); estou convencido de que a pandemia irá acelerar esta reflexão no sentido de muitas outras formas de sociabilidade e convivialidade.

8) Em oitavo lugar, uma vez resolvido o problema nos países mais desenvolvidos, fica por saber como vamos impedir que a pandemia cresça de forma descontrolada nos países não desenvolvidos; está em causa uma segunda vaga da pandemia, a mutação do vírus e o seu regresso aos países desenvolvidos de forma ainda mais virulenta.

9) Em nono lugar, e dependendo da duração e intensidade da pandemia, está em causa a convergência entre a desestruturação dos mercados de trabalho, o desemprego de trabalhadores migrantes, o crescimento das desigualdades sociais, a demagogia partidária e o populismo político iliberal; está em causa a “indústria do emprego” e a formação das redes de pluriatividade e plurirrendimento, mas, também, a democracia política tal como a conhecemos e praticamos.

10) Em décimo lugar, não quero vaticinar a morte anunciada do projeto europeu, mas perante a estagnação política da união europeia pode estar em causa o futuro da Europa tal como a conhecemos, sendo o problema dos “eurobonds” apenas a ponta do icebergue; em causa, a alegada megalomania e omnipresença da União Europeia, a sua impotência para agir, o défice de recursos próprios e a sua progressiva balcanização.

Neste contexto tão denso e carregado, existem, porém, algumas oportunidades e linhas de orientação positivas que precisarão de ser exploradas.

Em primeiro lugar, importará não esquecer que a forte redução das emissões de CO2 para a atmosfera é um excelente contributo para a melhoria da saúde pública. Aprender esta lição é uma prova de inteligência.

Em segundo lugar, as medidas excecionais tomadas pelas autoridades públicas, se aplicadas com eficácia, deverão conter a recessão económica dentro de limites razoáveis e, desse modo, aliviar o risco de uma crise mais prolongada.

Em terceiro lugar, fica provado que as tecnologias digitais podem fazer muito mais pela indústria da saúde e esta crise sanitária pode e deve precipitar mais investimento público e mais esforço colaborativo público-privado no setor.

Em quarto lugar, a pandemia do covid19 demonstrou à evidência que são possíveis outras modalidades de organizar o trabalho e o ensino, mais amigas da família e dos idosos.

Em quinto lugar, é preciso acreditar em que a pandemia possa desencadear uma vaga de solidariedade internacional e, desse modo, reabilitar a confiança e o papel central das instituições internacionais.

Em sexto lugar, é ainda possível que os “coronabonds” vejam a luz do dia, mesmo que a título excecional e que, além disso, a União Europeia retome o roteiro para completar a união económica e monetária até 2025, tal como proposto pela Comissão Europeia em 2017.

Em sétimo lugar, e porventura mais crítico, é preciso que estejamos preparados para um programa excecional de apoio aos países de expressão oficial portuguesa, no caso de a pandemia se alastrar pelo continente africano.

Finalmente, é imperioso que reconsideremos o modo como organizamos a nossa solidariedade social e que, doravante, uma genuína ética do cuidado esteja no coração da cidade inteligente e colaborativa, em especial, no combate à iliteracia digital e na promoção das plataformas descentralizadas de coprodução de serviços ambulatórios e domiciliários. Os nossos velhinhos agradecem.

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