Covid-19, o impacto na saúde económica do Algarve

Que seja criado um Conselho Estratégico Regional, com o objetivo de desenhar o programa operacional regional no contexto das medidas de recuperação e diversificação que se justificarem

E aconteceu. O cisne negro apareceu mesmo. A economia do mundo, com uma malha cada vez mais apertada, atingiu um grau tal de interdependência e integração que qualquer vetor desencadeia de imediato efeitos de ricochete por todo o lado.

O risco global e o efeito sistémico de propagação estão aí para nos avisar de que existe um forte nexo de causalidade com as agressões ao ambiente e a desigualdade social (pobreza) do capitalismo atual.

No final da cadeia humana, os vírus e as bactérias esperam por nós para nos abençoar ou maltratar. Acresce que, tanto as agressões ambientais, como a desigualdade e a pobreza, pela sua amplitude, nos colocam a todos, cidadãos do mundo, praticamente face a face e à mercê de outras tantas mutações de vírus e bactérias ainda mais agressivas.

A região do Algarve, pela grande dependência da livre circulação de pessoas, é um território particularmente vulnerável à propagação da Covid-19. Vejamos alguns aspetos do problema.

À boleia de uma bolha turística

O Algarve é uma região de “turismo quase total”. O turismo é um fator fundamental de desenvolvimento regional, tomado com conta, peso e medida, mas é, também, um fator muito sensível às variações do ciclo geopolítico e geoeconómico.

A bolha turística dos últimos anos criou uma excelente oportunidade para discutir algumas hipóteses de diversificação da base económica regional. Sim, porque é na fase alta de um ciclo que se devem discutir os problemas da fase baixa do ciclo.

Com a Covid-19 aí está, de forma brutal, a fase baixa do ciclo. Adormecemos à boleia de uma dilatação e agora estamos reféns da sua severa contração.

O ecossistema turístico do Algarve corre sérios riscos de involução, se não atendermos rapidamente a algumas das suas mais graves disfunções:

– A turistificação afunilou ainda mais a base económica existente e criou uma precária economia low cost intensiva,

– A turistificação condicionou o desenvolvimento de outros setores e aumentou o custo de oportunidade de atividades económicas alternativas,

– A turistificação provocou uma distorção no mercado regional de trabalho e a desvalorização de ativos regionais importantes, em particular, a migração de quadros técnicos da Universidade do Algarve que não encontram aqui saídas profissionais,

– A turistificação provocou uma gentrificação dos pequenos “centros e baixas” de vilas e cidades algarvias, em resultado de uma pressão imobiliária inusitada sobre os respetivos moradores, em particular, os mais idosos e desprotegidos, mas, também, os estudantes,

– A turistificação promoveu um consumo excessivo de recursos públicos e, em especial, um consumo excessivo de água, solo e património, no preciso momento em que se pede alguma parcimónia no uso de recursos escassos por virtude dos efeitos mais perniciosos das alterações climáticas.

Em síntese, a contração brutal da bolha turística põe a descoberto todas estas disfunções e tanto mais quanto maior for o prolongamento da pandemia por via das suas sucessivas réplicas.

A turistificação do Algarve, no modo plataforma low cost de consumo de eventos turísticos e culturais, onde tudo e todos “estão obrigados a render” no mais curto espaço de tempo, o tempo do passageiro eventual, chegou ao fim. Vejamos alguns cenários possíveis.

A Covid-19, alguns cenários de evolução

A Covid-19 chegou sem avisar e parece não ter pressa de partir. Vejamos alguns cenários de evolução, reportados aos períodos de eventual replicação.

1) O cenário mais otimista: sinais claramente positivos no 2º semestre de 2020
O segundo trimestre do ano – abril, maio, junho – é um trimestre de viragem. O vírus sofreu, provavelmente, alguma mutação com a subida das temperaturas e a mesma tendência se verifica nos países com os quais fazemos turismo; apesar de uma lenta recuperação no 3º trimestre, os sinais são claramente positivos e permitem antecipar a consolidação da tendência no 4º trimestre de 2020.

2) O cenário mais pessimista: uma tragédia anunciada durante 2020 e parte de 2021
A pandemia arrasta-se devido a uma sucessão de pequenos surtos, a sociedade portuguesa deixa o estado de emergência, mas permanece em estado de confinamento sem fim à vista e a mesma tendência verifica-se nos nossos parceiros comerciais.
O receio e a falta de confiança permanecem.
Imagine-se, agora, a coincidência da pandemia com uma seca severa no 2º semestre, a falta de água, o encerramento de muitas microempresas e o crescimento descontrolado do desemprego em consequência da falência do modelo de “low cost intensivo”.

3) Os cenários intermédios: monitorizar, ajustar e adaptar em permanência
Se conseguirmos reunir a melhor informação e o melhor painel de observação e controlo das situações, agindo e reagindo em tempo muito curto, talvez seja possível mitigar e minimizar os efeitos mais perniciosos da Covid-19, tomando as medidas adequadas de emergência que estão agora em vigor, enquanto, ao mesmo tempo, preparamos as medidas de recuperação e diversificação que se justificam para a fase posterior do ciclo.
Estou a falar de um ponto de viragem algures no 2º semestre, no final do verão ou no outono, ou seja, 2020 é, praticamente, um ano perdido com uma quebra substancial do PIB e do emprego regionais que eu não quero sequer prognosticar.

Em qualquer dos cenários, teremos dois períodos muito descontinuados, ou seja, uma “quebra brutal” dos negócios, do produto, do rendimento e do emprego em 2020, e uma “retoma muito lenta” e gradual durante 2021. É esta descontinuação dos dois períodos que nos obriga a pensar numa estratégia regional de recuperação e diversificação da base económica tão cedo quanto possível.

O “paradoxo da pandemia”, recuperação e diversificação económica

Não é tarefa fácil falar de recuperação e diversificação da economia regional quando a atividade turística é aquela que remunera mais rapidamente as pequenas poupanças e os pequenos investimentos realizados.

Num primeiro momento (2º trimestre), a prioridade é gerir bem as medidas de emergência, impedindo que a sobrevivência se converta rapidamente numa insolvência irremediável. Nesta linha, deveria ser criado uma espécie de “hospital empresarial de campanha” para acudir e tratar os casos mais urgentes.

Nesta matéria tão sensível, a região do Algarve sofre do que poderíamos designar como o “paradoxo da pandemia”, cujo funcionamento pode pôr em causa a sua recuperação económica a curto prazo.

De facto, a extrema dependência do turismo faz a região depender completamente da liberdade de circulação de pessoas, não apenas o turista eventual, mas, também, o turista pendular (o vizinho espanhol), o trabalhador migrante, o estudante Erasmus, o residente estrangeiro, o trabalhador transfronteiriço, o passageiro em trânsito.

Ou seja, a economia do Algarve fica dependente de um visitante que pode ser portador de Covid-19 e esta eventualidade choca de frente com uma possível imunidade da região à Covid-19.

Se pensarmos no que acontece atualmente nos países nossos vizinhos e no que ainda está para acontecer, vemos, de novo, pairarem algumas nuvens negras sobre o próximo futuro. Vejamos, então, algumas medidas de aplicação.

1) Medidas de emergência
As medidas de emergência já anunciadas visam a sobrevivência dos pequenos negócios e dos empregos correspondentes.
Duas observações se impõem.
A primeira diz-nos que a sobrevivência não acontece se a pandemia se prolongar muito no tempo, mais do que um trimestre e segue-se a insolvência.
A segunda diz-nos que a sobrevivência de uma empresa pode acarretar uma redução significativa dos seus postos de trabalho. Um terço ou uma metade do emprego atual pode desaparecer, para reaparecer, eventualmente, um ano ou dois depois.
Entretanto, enquanto tudo isto acontece, os créditos concedidos convertem-se em uma nova vaga de crédito malparado, uma nova vaga de salários em atraso, uma nova vaga de dívidas a fornecedores, uma nova vaga de dívidas à segurança social e às autoridades fiscais.
Insisto aqui na ideia de um “hospital empresarial de campanha” para dar algum conforto às empresas da região.

2) Medidas de recuperação e diversificação da base económica e social
Está em curso o desenho de um novo programa regional no quadro da programação dos fundos europeus para a década 2030 e este é um momento decisivo para refletir sobre o assunto.

Muito já foi dito, a CCDR-ALG tem feito o seu trabalho, aqui vão algumas ideias mais no atual contexto de Covid-19:

– Em primeiro lugar, para salvar vidas, é absolutamente necessário mais investimento nas infraestruturas hospitalares da região e, em especial, no centro hospitalar universitário; essa será sempre a melhor imagem de marca de uma região cujo primeiro produto é o turismo;

– Em segundo lugar, para salvar os alimentos e a produção agrícola regional, é fundamental criar três (3) redes de abastecimento local – Barlavento, Algarve Central e Sotavento – com base na lógica da agricultura de proximidade, os circuitos curtos e a distribuição local;

– Em terceiro lugar, para cuidar da biologia marinha, da pesca artesanal e da aquacultura algarvia, é fundamental reforçar os laboratórios de ciências do mar da Universidade do Algarve e alargar as suas funções de apoio às atividades da economia do mar;

– Em quarto lugar, para cuidar do ambiente, da qualidade da água, solos, biodiversidade e serviços de ecossistema, é fundamental aprovar um programa de economia circular de grande amplitude;

– Em quinto lugar, para cuidar do Barrocal, do pomar tradicional de sequeiro e dos produtos da serra, é fundamental lançar um programa que remunere diretamente os serviços ambientais e ecossistémicos prestados pelos produtores agroflorestais;

– Em sexto lugar, para cuidar condignamente dos “velhinhos do Algarve”, é fundamental criar uma rede regional de IPSS e Unidades de Cuidados Continuados, que seja não apenas uma central de compras, mas, também, uma central de prestação de cuidados terapêuticos diferenciados, uma função que tem sido completamente descurada por estes dias;

– Em sétimo lugar, para cuidar dos “trabalhadores uberizados dos serviços”, é fundamental não apenas dar-lhes assistência técnica através do “hospital empresarial de campanha”, mas, também, proporcionar-lhes um programa alargado de formação técnica e empresarial nos próximos meses;

– Em oitavo lugar, para cuidar da literacia digital e do futuro dos nossos jovens, creio ser imprescindível ensaiar o lançamento a título experimental de uma “escola de tecnologias, artes e cultura” do Algarve;

– Em nono lugar, para cuidar dos “trabalhadores intermitentes do espetáculo e da cultura”, creio ser fundamental o lançamento de um programa regional para as atividades criativas e culturais em estreita articulação com as escolas, as empresas e as instituições algarvias,

– Em décimo lugar, numa região-cidade como o Algarve, é fundamental criar uma meta-plataforma Algarve Sharing, com o objetivo de regular a economia regional e ser uma plataforma colaborativa útil na gestão de mercados de ocasião, bolsas regionais, marcas coletivas, bens comuns, mercados de nicho, contratos de institutional food, bancos do tempo, redes energéticas de microgeração, circuitos curtos, redes de microcrédito e financiamento participativo, moedas sociais e complementares, espaços de coworking, residências científicas e artísticas, relações comerciais internacionais, entre outros exemplos, sempre numa lógica de partilha de interesses comuns com a sociedade civil algarvia e sempre para lá do simples arquipélago intermunicipal.

Notas Finais

O paradoxo que enunciei anteriormente é, seguramente, o sinal mais preocupante da atual economia do turismo algarvio, ou seja, aquela que relaciona o máximo de turistificação com o máximo de precarização socio-laboral.

Por essa razão, o cluster do turismo, nos próximos meses, deverá merecer uma atenção máxima das associações e das autoridades públicas devido, justamente, aos efeitos radiais deste setor na região.

Há um outro paradoxo a funcionar e que eu aqui registo. Todos desejamos que o turismo recupere rapidamente, todavia, uma recuperação acelerada do turismo tem um efeito dilatório, isto é, não cria condições para um pensamento radical sobre o futuro da região e, nessa linha, a baixa capitalização do empresariado local tornará muito difícil realizar políticas alternativas de diversificação da base económica, a menos que a região importe iniciativa empresarial e capital suficiente.

Talvez o grande trunfo da região-cidade do Algarve e das suas gerações mais novas seja a “conexão colaborativa” operada nas redes virtuais de “muitos para muitos”.

De facto, a região-cidade do Algarve, uma região aberta ao mundo, poderá tirar partido dessa diferenciação cosmopolita. Nesse caso, os fluxos da região-cidade do Algarve, para lá do turismo de ocasião, incluirão ainda a comunidade dos residentes estrangeiros, os atores da cooperação transfronteiriça peninsular, a mobilidade de estudantes, os investigadores e artistas e a grande variedade dos trabalhadores digitais em trânsito no ciberespaço, entre outras formas especificas de mobilidade. E esta será a base da sua diversificação económica, social e cultural para lá da Covid-19.

A terminar, sugiro que, para lá do gabinete de crise que o Senhor Secretário de Estado das Pescas coordena, seja criado, também, um Conselho Estratégico Regional, com o objetivo de desenhar o programa operacional regional no contexto das medidas de recuperação e diversificação que se justificarem e com o contributo daquelas aqui se recomendam, entre outras.

E não se esqueçam do essencial. Sem imunização e sem vacinação a precarização da saúde e do trabalho vai continuar. E o turista é um agente portador por excelência.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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