Covid-19, aceleração digital, cidadãos digitalizados

Quanto mais isolados e distanciados socialmente mais ligados e conectados digitalmente

Foto: DepositPhotos

Na sequência do meu artigo anterior, regresso ao tema da Covid-19, para refletir um pouco sobre a aceleração digital que ela desencadeia.

Para mim é claro que, enquanto não estivermos todos imunizados ou vacinados, a pandemia vai voltar em vagas sucessivas, mais pequenas, é certo, mas, ainda assim, gerando medo e ansiedade. Em causa, o nosso modo de vida tal como o conhecemos e praticamos, hoje em dia.

Eis algumas facetas dessa aceleração digital, do nosso realismo virtual ou da nossa virtualidade real, enquanto cidadãos cada vez mais digitalizados.

1. O crescimento da biometria e inteligência artificial na área da saúde
A pandemia da Covid-19 arrasta inevitavelmente uma alteração substancial da relação entre a doença, o doente e o serviço nacional de saúde, em duas áreas fundamentais: na qualidade e rapidez da informação que o doente envia aos serviços de saúde e na qualidade e rapidez com que os serviços tratam e resolvem a doença em questão.

A digitalização desta relação é inevitável. A biometria mede os sinais vitais do doente, a inteligência artificial abrevia o tempo de diagnóstico e de resposta dos serviços. Os dados serão, doravante, a nova fonte do conhecimento.

2. O crescimento do teletrabalho
A pandemia da Covid-19, em tempo de emergência sanitária, teve uma consequência imediata, a saber, o crescimento do trabalho à distância ou teletrabalho por via de diversas redes de comunicação online.

O grau de desmaterialização digital de tarefas e serviços é muito variável e depende da natureza especifica de cada atividade.

A pandemia acabou por acelerar a transformação digital e essa possibilidade tornou possível não apenas a continuidade dos serviços online, mas, também, a conciliação com as obrigações familiares, num momento tão difícil.

3. O crescimento do ensino à distância
A pandemia da Covid-19 teve um impacto apreciável no sistema de ensino em todos os seus graus. A disrupção foi, quase, brutal, mas a reação das escolas foi muito positiva e deixa augurar mudanças substanciais nos modelos de ensino no próximo futuro.

A opinião maioritária concorda que o regime plenamente presencial está esgotado e modelos mais flexíveis e imaginativos são imprescindíveis. Neste particular, regista-se, ainda, um défice apreciável em matéria de infraestruturação digital e a próxima geração de investimento público terá de colmatar estas carências fundamentais.

4. O crescimento da comunidade online de cuidadores e serviços ambulatórios
A pandemia da Covid-19 tem um impacto muito significativo ao nível das várias necessidades da sociedade sénior. Nesta área tão delicada e sensível temos de ser muito flexíveis e imaginativos.

Uma ética do cuidado permanente, o reconhecimento dos cuidadores formais e informais e uma boa comunidade online de cuidadores na sua relação com os serviços públicos, em conjunto com os serviços ambulatórios ao domicílio, eis o que parece ser uma boa solução para responder ao desafio que a pandemia nos lançou.

5. O crescimento da robótica e da indústria automatizada
A pandemia da Covid-19 vai acelerar, igualmente, a transformação digital das empresas industriais em muitas das suas dimensões.

Para além da digitalização de procedimentos administrativos, uma parte importante da produção industrial será, também, objeto de automatização.

Estes dois processos de transformação, o administrativo e o industrial, reduzirão progressivamente o contingente tradicional de trabalhadores administrativos e industriais.

O período de layoff que se segue pode acelerar esta transformação, pois as empresas industriais poderão utilizar os próximos 2 meses para proceder à sua transformação digital. Estamos num momento crucial para pensar a reindustrialização do país.

6. O crescimento do comércio online
A pandemia da Covid-19 tem um impacto significativo no crescimento do comércio online em consequência da aplicação estrita do estado de emergência. Mas estamos apenas na fase inicial deste movimento de virtualização.

Hoje, nos hipermercados, o cliente já pode fazer o registo das suas compras em máquinas automáticas. Amanhã, provavelmente, passará a fazer uma parte das compras online à distância.

Estamos perante um movimento de longo alcance, que as gerações mais novas adotarão, à medida que a sociedade digital for criando as suas rotinas, mas que interessa também às grandes superfícies pois permite-lhes desmaterializar e reduzir substancialmente alguns custos fixos.

7. O crescimento dos serviços públicos online
A pandemia da Covid-19, pelo isolamento e distanciamento social que provoca, servirá para ampliar ainda mais um movimento que já é imparável nesta altura.

Refiro-me aos serviços públicos online e, também, ao ecossistema de serviços digitais criado pela chamada Smart City. No primeiro caso, há uma melhoria constante nos sítios e plataformas digitais da administração pública central, no segundo caso está em curso, na administração local, uma pequena revolução no que diz respeito à prestação dos “grandes serviços” autárquicos, mas, também, e talvez mais relevante, aos “pequenos serviços” que têm a ver com o bem-estar e a qualidade de vida da sociedade local.

Maior dificuldade, a iliteracia digital da população mais idosa. As juntas de freguesia têm aqui um papel insubstituível de transição digital.

8. O crescimento das plataformas colaborativas da economia local
A pandemia da Covid-19 chama-nos a atenção para a importância das economias de proximidade e os sistemas de abastecimento locais, com especial relevância para a agricultura comunitária, os circuitos curtos de comercialização e a pequena distribuição porta a porta.

Esta pequena economia de proximidade pode abranger muitas áreas de pequenos negócios, mas só funcionará com um mínimo de eficácia se assentar em valores comuns partilhados e num mínimo de organização autónoma que as plataformas colaborativas digitais de base local podem proporcionar.

Por exemplo, uma união de freguesias, uma associação de desenvolvimento local ou uma associação de municípios pode, muito bem, ser o ator-rede desta plataforma colaborativa.

9. O crescimento de profissões ligadas ao big data, open data e cloud computing
Tudo o que dissemos anteriormente, a propósito da pandemia da Covid-19 e dos efeitos sistémicos que ela ocasiona, tem uma tradução, maior ou menor, na infraestrutura digital dos territórios.

E deste ponto de vista, fica desde já o aviso, não podemos tolerar que se criem novas assimetrias regionais, desta vez fraturas digitais entre territórios, e tanto mais quanto agora se discute, precisamente, a capacidade 5G do país.

No próximo futuro, os chamados 4V – volume, velocidade, valor e verdade – da sociedade digital irão exigir a recolha e tratamento de dados suficientes sobre todos nós (big data), o seu armazenamento em segurança e em condições de plena utilização (cloud computing) e a sua total transparência no que diz respeito ao acesso e direito de reserva (open data).

10. O crescimento das funcionalidades e atividades de vigilância digital
A pandemia da Covid-19, em todos os momentos anteriores, apertou a malha digital e digitalizou os cidadãos. Digamos que, involuntariamente, a pandemia originou uma maior adição digital nos cidadãos.

Quanto mais isolados e distanciados socialmente mais ligados e conectados digitalmente.

Não é impunemente que tudo isto acontece e, por isso mesmo, é imprescindível que os cidadãos sejam alertados para este efeito sistémico perverso, se não for usado com conta, peso e medida.

Tal como é conhecido em países do leste asiático, o crescimento exponencial da vigilância digital pode colidir com os princípios fundamentais da nossa vivência democrática. Esperemos que, uma vez passado o estado de emergência, tudo volte à normalidade, uma normalidade feita de liberdade, tolerância e bom senso.

Notas Finais
Em jeito de conclusão, a aceleração digital e a digitalização dos cidadãos parecem inevitáveis, apenas temos de evitar os seus efeitos indesejáveis.

Em segundo lugar, o crescimento da despesa pública e privada em infraestruturas e equipamentos digitais e, bem assim, o combate à iliteracia digital são dois desafios de grande monta a curto prazo.

Em terceiro lugar, é fundamental assegurar o equilíbrio entre os 4V na cadeia de valor que junta Big data, data centres e open data.

Em quarto lugar, é um imperativo político democrático que a digitalização do cidadão seja contrabalançada pelos valores e práticas de hospitalidade, solidariedade e convivialidade.

Em quinto lugar, a sociedade digital em formação deve estar muito atenta a esta nova geração de screeners que inclui “espécimes digitais” muito especiais, por exemplo, nerds, geeks, hackers, slashers, makers, developers, entre outros.

No final, e à semelhança do que aconteceu no século XX com a formação das escolas industriais e comerciais, eu atrevia-me a sugerir para o século XXI, em cada comunidade intermunicipal e nas grandes cidades, a criação de uma “escola de tecnologias, artes, cultura” no ensino secundário, em ordem a que fique salvaguardado o equilíbrio desejável entre tecnologia e humanidade.

 

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

 




 

 

Comentários

pub