Algarve e epidemias – Passado e Presente

Esta crise que estamos vivendo teve algumas consequências muito positivas: tornou evidente a todos a existência do Algarve Biomedical Center

Quando falamos em epidemias no Algarve, ocorre-nos inevitavelmente a actual pandemia – epidemia que atinge vários continentes – bem como a Gripe Pneumónica do princípio do século XX. Existem igualmente relatos da peste negra na Idade Média no Algarve, mas, nesta abordagem, iremos rever, por dispormos de maior volume de informação, a Gripe Pneumónica de 1918 e observar algumas analogias com a da Covid-19.

Como grande elemento de informação para este texto, tomámos o livro de Paulo Girão “A Pneumónica no Algarve”, onde se assinala que a gripe pneumónica em Portugal apareceu com carácter violento e rápido.

O vírus entrou de Espanha, pela raia alentejana. Segundo José Manuel Sobral, os ceifeiros que regressavam de Badajoz e Olivença foram os que a trouxeram, sendo o primeiro caso detectado em Vila Viçosa em Maio de 1918, desta epidemia que teve o seu pico em Outubro e Novembro.

Ricardo Jorge, médico “fundador” da saúde pública em Portugal, para combater a disseminação desta epidemia, quis acabar com beijos e apertos de mão e proibiu as visitas aos hospitais e a realização de feiras e romarias. Aquilo a que hoje se chama distância social.

Cálculos efetuados apontam cerca de 60 milhões de mortos pela pneumónica, bem mais do que os 20 milhões de mortos na I Guerra Mundial.

Entre nós, os óbitos pela pneumónica variam entre dados das estatísticas oficiais que reportam 55780 mortes e os mais de 130 mil estimados pelo demógrafo Mário Leston Bandeira.

A pneumónica foi responsável pela morte do pintor Amadeo de Souza-Cardoso ou de Jacinta, a pastorinha de Fátima que faleceu no Hospital de D. Estefânia. No Algarve, registe-se o falecimento do escritor João Lúcio, nascido em Olhão.

Não sabemos a taxa de mortalidade da Pneumónica e o autor do estudo desta no Algarve optou pela não inclusão de taxas de mortalidade por poderem traduzir valores muito pouco fiáveis, pela falta de credibilidade de muitos dados estatísticos.

Diz-nos, no entanto, que cerca de 15% do total de óbitos do distrito de Faro, em 1918, foram causados por gripe. Nos princípios de Outubro de 1918, a doença encontra-se espalhada nos concelhos centrais do Algarve, nomeadamente em Loulé e em S. Brás de Alportel, trazida pelos trabalhadores vindos de comboio do Vale do Sado e de Coruche, zonas na altura bastante atingidas pela pandemia.

Na terceira semana de Outubro, já a gripe pneumónica tinha afectado todos os concelhos algarvios, evidenciando, numa trajectória dispersa e difusa, uma grande rapidez de contágio.

 

 

Na aquisição de medicamentos para os serviços clínicos e farmacêuticos do Algarve, verificou-se que poucos concelhos foram privilegiados com a remessa de remédios ou princípios activos para a elaboração dos medicamentos. Foram enviadas pequenas quantidades, muito reduzidas para as necessidades requeridas.

A isto acrescenta-se a demora nos transportes ferroviários de mercadorias, com muitas estações e apeadeiros encerrados ou a funcionar parcialmente.

Em meados de Outubro de 1918, plena fase crítica, a Direcção Geral de Saúde reconhecia a escassez de recursos para auxílio da população algarvia.

Também a nível de outros meios, dava a imprensa conta de que o Algarve não tinha ainda da autorização para os Delegados de Saúde de Faro disporem de viatura ou gasolina, a exemplo do que acontecia em Lisboa ou Évora.

O Algarve, no início do século XX, apresentava uma população jovem, que casava cedo, analfabeta, com elevadas taxas de mortalidade infantil.

Em termos demográficos, assistiu-se a um retrocesso no crescimento da população algarvia, fruto, em grande parte, da mortalidade gripal de 1918.

Verificando-se uma estagnação demográfica nas camadas etárias intermédias no censo populacional de 1920, a par da diminuição da população juvenil, chegou-se à conclusão que foram os jovens adultos as principais vítimas mortais da epidemia, factor pouco vulgar nestas situações.

O impacto da doença parece ter atingido fundamentalmente as sedes de concelho, atingindo em igual proporção ambos os sexos.

Conclui o mesmo autor que a epidemia de gripe pneumónica que atingiu o Algarve no final de 1918 deixou marcas numa região pobre e com falta de recursos sanitários e alimentares.

 

 

Fenómeno mundial, a doença evidenciou, no Algarve, à semelhança do que aconteceu no resto do país, velhos problemas de organização médica e administrativa que se traduziram nas altas taxas de mortalidade, reflectindo ainda um clima de terror e de caos face a todos os problemas originados pela epidemia.

Nesses dias de Outubro, Albufeira, Alcoutim a Aljezur foram os últimos concelhos algarvios a assistirem ao aparecimento da gripe pneumónica no distrito.

Destes elementos referentes à pneumónica de 1918, verificamos alguns que poderá servir como confronto com a actual pandemia Covid-19 no Algarve.

Verifiquemos nomeadamente alguns elementos de epidemiologia, medicação e assistência médica, bem como a ressonância nas populações.

Em traços largos da actual pandemia, temos que a 23 de Janeiro o governo chinês isolou Wuhan e, no dia seguinte, pôs outras 15 cidades em quarentena. A 31 de Janeiro já era admitido por responsáveis de saúde do Ocidente que o vírus podia ser transmitido por pessoas assintomáticas.

Estávamos perante algo muito diferente do conhecido até então. Mas mesmo assim, como escreve a Profª. Joana Vieira Flores, jovem da nossa região que vem fazendo carreira no Reino Unido, em muitos locais do mundo, como UK ou Portugal, a memória colectiva das crises recentes como a do SARS ou Ébola – “tanta coisa para nada” – dava nota de um frenesim da imprensa que prometia uma pandemia que acabou por não chegar. Talvez esta seja uma das razões que explica porque levou tanto tempo a perceber-se que desta vez seria diferente.

O padrão de aparecimento da actual pandemia de Covid-19 no Algarve mostra que os três concelhos que, no início, concentraram mais casos foram Albufeira, Faro e Portimão, seguindo-se, nas semanas posteriores, igualmente Loulé e Tavira, como os locais de maior incidência.

Não se registam casos em Vila do Bispo, Aljezur ou Alcoutim. Verificamos um padrão mantido nestas duas pandemias com os extremos do Algarve, Alcoutim e Aljezur, como locais mais resguardados.

Igualmente Albufeira mudou muito ao longo destes 100 anos, de situação relativamente isenta de contágio para a primeira, a esta data, no número de atingidos com Covid-19.

A taxa de letalidade (relação entre o número de casos confirmados de infectados e o número de mortos) da Covid-19 em Portugal a esta data, manhã do dia 16 de Abril, é de 3,31%.

Curiosamente, a que verificamos no Algarve é de 3,05%, com extremos no país de 0% no Alentejo e Madeira e com 5,17% na Região Centro. França está com a maior taxa de letalidade europeia, ronda os 15% e, a nível global, esta passou os 6,3%.

Outro elemento peculiar é a referência à cloroquina em 1918. Como se constata, no domínio das ciências da saúde, há muito para fazer. Verificamos que, até ao momento, não há nenhum fármaco específico que seja recomendado pela OMS no combate à Covid-19.

Relativamente à Cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ), são medicamentos vulgarmente usados no tratamento da malária e de doenças autoimunes. Mecanismos de ação da CQ e da HCQ na Covid-19 foram demonstrados in vitro, revelando que a HCQ, embora seja menos potente que a CQ, é menos tóxica. Nesta pandemia pelo mundo fora, está a ser utilizada a HCQ no combate à covid-19 em doentes selecionados.

 

 

Tanto quanto podemos verificar, a esta data, o panorama dos Hospitais mudou muito. Existem outros circuitos, as salas foram rearranjadas, o staff tem outros equipamentos.

Vivemos entre algum cansaço e a vitalidade da juventude das equipas de saúde, que, de facto, têm outras coisas nas cabeças, somos dotados de uma natureza em que enfrentar a doença não nos assusta ou paralisa. E no Algarve, aparentemente, estamos ao nível do resto do país.

Esta crise que estamos vivendo teve algumas consequências muito positivas: tornou evidente a todos a existência do Algarve Biomedical Center (ABC). Desta vez, quando se fala do Algarve e da pandemia, o que se ouve e lê já não é pela falta de profissionais ou de algo que não correu bem. Antes pelo contrário, é porque o Algarve está a fazer isto ou aquilo.

Existe uma realidade muito recente e que está a fazer uma diferença total, este ABC que arregaçou as mangas, com competência e espírito solidário, meteu as mãos na massa, o que neste caso passou pelo reforço de meios a muitos níveis.

Com uma assinalável mobilização de voluntariado, com elementos que foram para os laboratórios, para despiste de eventuais infectados etc., temos assistido quase de forma diária, na comunicação social, ao desenrolar das suas iniciativas.

A título de exemplo assinale-se que a recolha das amostras e as análises estão a ser efectuadas por equipas multiprofissionais do Algarve Biomedical Center (ABC), sendo da sua iniciativa a verificação dos lares.

Com o ABC, foram criadas condições para desenvolver e produzir zaragatoas e meios de preservação na região e as análises que actualmente faz à Covid-19 rondam as 300 por dia.

Assinale-se que, nestas análises, há uma tecnologia complexa que envolve a extração do RNA viral e a sua ampliação pela técnica de PCR quantitativa que foi necessário montar e com a qualificação do CBMR, Centro de laboratórios da Universidade do Algarve, Centro que integra o ABC, esta técnica complexa para a Covid-19 foi rapidamente disponibilizada entre nós.

Ainda é cedo para elementos muito conclusivos acerca desta pandemia, mas o terminar deste artigo com esta nota positiva é uma evidência que a todos ressalta e que deve ser motivo de orgulho para o Algarve.

 

Autores:
Daniel Cartucho é médico, cirurgião geral do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) e membro do Conselho Diretivo do ABC – Algarve Biomedical Center
Isidoro Duarte é médico, especialista em medicina interna do Centro Hospitalar Universitário do Algarve

 

 

 

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