A quarentena das democracias

«Voltar ao mesmo é pouco, porque o que tínhamos não satisfaz»

Depois do 11 de setembro de 2001 e da crise financeira espoletada em 2008, a declaração de pandemia proferida pela Organização Mundial da Saúde, no passado dia 11 de março, marcou o início da terceira grande crise internacional deste século.

As duas primeiras tiveram como centro nevrálgico os Estados Unidos da América (EUA), provocando impactos em muitos outros locais do planeta, alguns dos quais ainda hoje se fazem sentir. A terceira começou na China e, em apenas poucas semanas, gerou um cenário devastador para a vida humana e para as economias.

Todas as crises de grandes proporções, como as aqui expostas, tendem a provocar efeitos nos regimes políticos, incluindo naturalmente as democracias.

Os atentados às Torres Gémeas, em Nova Iorque, adensaram os conflitos geoestratégicos, serviram de ignição para inúmeras ações terroristas em diferentes países, impuseram regras de segurança nas sociedades – com restrições à mobilidade e à vida quotidiana –, ampliaram a desconfiança e o ódio contra os imigrantes, entre muitas outras derivas pouco favoráveis às democracias.

A crise financeira iniciada em 2008 marcou uma época de austeridade em muitos países, com o recuo do Estado Providência, a imposição de cortes em direitos sociais, laborais e outros, o aumento da pobreza e das desigualdades, o reforço das privatizações de serviços essenciais, o acumular de tensões na economia mundial, as tentativas de interferência externa em eleições democráticas, entre muitos outros efeitos nefastos.

As democracias chegaram a esta pandemia em situação de desgaste, acumulando recuos nos seus princípios e sujeitas a uma gradual crise de representatividade e de falta de confiança nas principais instituições.

A situação é um pouco mais preocupante na medida em que o número de países considerados democráticos tem vindo a diminuir de forma ininterrupta ao longo da última década. Segundo o Instituto V-Dem, em relatório publicado em março deste ano, pela primeira vez desde 2001 os regimes autocráticos estão em maioria, abrangendo 92 países que representam cerca de 54% da população mundial.

Para agravar a situação, o novo coronavírus infetou todas as democracias do planeta, levando os seus decisores políticos a impor medidas sem precedentes. Pela primeira vez na história, os regimes democráticos sem exceção e numa lógica de cascata foram afetados por uma onda de regressão das liberdades individuais e coletivas, embora com geometrias e intensidades variáveis.

Dentro dos limites constitucionais, alguns Estados optaram por exercer a sua “autoridade democrática”, afirmando, no entanto, que os limites impostos são de caráter temporário ou transitório.

Outros estão a aproveitar esta crise para reforçar as derivas autoritárias já em curso, o que significa estabelecer fronteiras mais amplas e duradoras às liberdades individuais e coletivas, como é o caso de Israel e da Hungria, entre outros. Esta última é, aliás, o primeiro país não democrático a ser membro da União Europeia.

 

Sobre os dados da pandemia e os desafios que se colocam às democracias

Um olhar sobre o mapa da pandemia no mundo oferece a todos uma série de inquietações, surpresas e dúvidas. Em mim, gerou também a curiosidade de perceber como se distribui o vírus pelo planeta, tendo como variável o tipo de regime político em cada país, diferenciando apenas, para simplificar, entre os democráticos e os autocráticos.

Efetuadas as contas a partir dos dados da Organização Mundial de Saúde, a 20 de abril, constata-se que cerca de 84% dos casos e 91% das mortes por covid-19 foram registados em 75 países classificados como democráticos, sendo os restantes percentuais imputados a 92 países com regimes autocráticos.

Estamos em plena pandemia, pelo que pode ser precipitado retirar conclusões. Ainda assim, a monitorização que tenho vindo a realizar ao longo das duas últimas semanas permite aferir que a tendência registada tem sido a de crescimento dos valores percentuais associados aos estados democráticos.

Tal deve-se, em parte, à enorme concentração de casos em países como os EUA (com cerca de 32% do total mundial), a Espanha, a Itália, a França, a Alemanha e o Reino Unido. As tendências de agravamento da situação no Brasil e na Índia, regiões muito populosas, poderá reforçar a propensão verificada até ao momento.

Podemos confiar nestes dados? Serão as democracias mais permeáveis à propagação do vírus? Creio que ninguém terá respostas definitivas para estas questões, embora seja possível ensaiar alguns raciocínios sobre a matéria.

Talvez nunca venhamos a saber os números exatos desta pandemia. Dentro das margens de erro que sempre existirão, os países democráticos, obrigados a cumprir normas de transparência e escrutinados de forma permanente por mecanismos de autorregulação, estarão a cumprir da melhor maneira possível o seu papel na contabilização das situações que os afligem.

Pelo seu lado, os países autocráticos, onde o controlo, a filtragem e a manipulação da informação por parte do Estado são práticas permanentes e de autodefesa das elites políticas, tenderão a minimizar os casos, procurando propagandear uma imagem de eficácia na contenção da pandemia.

Existem ainda outras variáveis que tornarão impossível a contabilização real dos números desta crise, como a dos países com sistemas de saúde muito deficitários, para não dizer inexistentes, onde a ausência de meios de diagnóstico e de outros serviços do Estado tornarão inviável qualquer política efetiva de monitorização e controlo da doença.

O órgão de comunicação “The Economist” publicou recentemente informações que indicam que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos, ficando esse facto a dever-se à liberdade de informação e à livre circulação da mesma, o que permite conter com mais eficácia a propagação dos vírus por intermédio de medidas preventivas. Veremos se a atual pandemia confirma ou não esta tendência. De momento, os números publicados parecem indicar o contrário.

Para já, os dados que temos sobre a covid-19 são os oficiais e eles colocarão enormes desafios às democracias. Os baixos níveis de satisfação que estas enfrentam derivam, em parte, da perceção da opinião pública sobre a incapacidade do regime de resolver alguns dos principais problemas que enfrentamos.

Se a isto acrescentarmos os dados atuais da pandemia no mundo, esse julgamento crítico poderá sair reforçado. A forma como vier a ser gerida a crise económica e social resultante das políticas de emergência influenciará de igual modo as apreciações que possam vir a ser efetuadas.

Face ao exposto, é fácil compreender que as democracias enfrentam redobrados desafios no momento em que a “saúde” destes regimes vinha acumulando enfermidades e insatisfações diversas.

 

O apelo às lideranças fortes e o oportunismo populista em tempos de crise

Todas as crises são terreno fértil para a emergência de fenómenos políticos diversos, entre os quais uma certa atração pelos poderes e lideranças fortes, que sejam capazes de resolver rapidamente os problemas que afligem a sociedade, mesmo que tal implique um recuo dos direitos democráticos. Esta é uma tendência antiga e que se mantém na atual crise sanitária, embora com contornos ajustados à situação.

É aproveitando esta deriva que os populistas gostam de se afirmar como sendo a solução salvífica. A estratégia destas lideranças políticas é clara: criar a sensação de unidade do “povo”, como entidade honesta, trabalhadora, orientada por princípios éticos incontestáveis e moralmente irrepreensível, que vive com sacrifícios e sendo explorada pela elite que assume os cargos de governo, normalmente corrupta, incapaz e focada em servir os seus próprios interesses.

Este posicionamento populista visa capitalizar a seu favor a insatisfação dos cidadãos comuns, ao mesmo tempo que a alimenta e reforça, procurando daí retirar dividendos políticos e eleitorais.

É, no entanto, necessário dizer que o populismo é bem mais do que esta crítica popular às elites. Ele representa também um ideal diferente de democracia, muito mais musculada. Em posição de poder quer materializar a ideia de um povo governado por uma liderança forte e carismática, que fala e age em sua representação. As consequências são evidentes: centralismo, autoritarismo e enfraquecimento das instituições democráticas, acompanhados de intolerância ideológica, religiosa, sexual e étnica como método de governo.

Em tempos de pandemia têm sido muito evidentes os diversos posicionamentos populistas. Quando na oposição, servem-se da crise para alimentar a crítica e o ódio às elites governantes, criando um clima reiterado de censura, desinformação e suspeição. Quando no governo, optam por criticar a ciência, a comunicação social e as organizações internacionais, ao mesmo tempo que abrem guerras estéreis com todos os que têm uma opinião diferente, incitando a bipolarização e utilizando todos os argumentos para mascarar o insucesso das suas políticas.

Poderá o vírus infetar e fragilizar os populismos? A resposta mais sensata é “depende”. Em alguns contextos poderemos vir a assistir a uma regressão, como nos EUA, no Brasil e no Reino Unido, mas noutros poderá reforçar-se, como em França e em Espanha, entre outros.

Em qualquer dos casos, o populismo utilizará esta crise para reforçar os seus propósitos, alimentando crises diárias, reforçando teorias da conspiração, preferindo as redes sociais aos órgãos de comunicação como palco para propagandear notícias falsas e incendiar as democracias.

 

Sobre o futuro incerto

Diante dos nossos olhos, de espectadores de um filme trágico fechados em casa, assistimos à desordem e à distopia. No que respeita à cooperação política internacional, vemos as “pontes” a serem substituídas por “muros”.

As práticas de pirataria de Estado sobre produtos essenciais eclodem em diferentes locais do planeta. Acusações e suspeições são “jogadas” diariamente no espaço mediático, criando um clima de conflito, adensando a incerteza e o medo.

As economias sofrem um abalo gigantesco. A despesa e o endividamento dos Estados disparam. O desemprego cresce em todo o mundo. O trabalho reinventa-se. As organizações internacionais revelam a sua ineficácia no momento em que o mundo mais precisa delas. A criatividade e a solidariedade social emergem como de costume nos momentos mais difíceis. As pessoas não saem de suas casas.

O ambiente agradece esta “paragem consumista”. As democracias não foram suspensas, mas estão ventiladas nos cuidados intensivos.

Diante de tudo isto e muito mais, o futuro é incerto, como sempre foi, mas hoje revestido de uma imprevisibilidade ainda maior. Como sairemos desta situação? Ainda não há respostas: esta é uma crise sem manual de instruções.

Como será a democracia depois desta crise? Muitos responderão que será a mesma que tínhamos antes da pandemia, sendo tal feito apresentado como uma vitória e um sinal de robustez das instituições e do regime.

Não nego que assim seja. Acrescento, no entanto, que tal resposta é cómoda e revela pouca ambição transformadora. O meu desejo é que a democracia se democratize ainda mais. Gostaria que o ímpeto político que viabilizou a adoção de medidas inéditas, num curtíssimo espaço de tempo, fosse mantido no que à reforma de democracia diz respeito.

Precisamos de uma vaga democratizadora que mobilize e reúna no espaço público a energia que se concentrou nas janelas, nas varandas e nos pátios. Precisamos combater a abstenção eleitoral. Necessitamos de abrir novos espaços de participação cidadã nas políticas públicas.

Carecemos de instrumentos mais efetivos de combate à corrupção. Precisamente alargar o nosso ideal democrático, em que o regime é vivido com maior intensidade nas práticas quotidianas, nos bairros das cidades, nas assembleias de vizinhos, na gestão das autarquias, dos governos regionais e do Governo da República.

Voltar ao mesmo é pouco, porque o que tínhamos não satisfaz. Sairemos desta crise com muito por reconstruir, com muitas peças por reunir, com inúmeras energias dispersas que devem convergir. Utilizemos, pois, a força da democracia para fazer esse trabalho.

 

 

Autor: Nelson Dias é sociólogo e consultor do Banco Mundial

 

 

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