Com a imprevisibilidade de um espirro, tudo mudou.
Num momento histórico de contornos surreais, iniciado por um vírus à solta que está a levar muitos a viverem meses inusitados de uma quarentena forçada na própria casa, sem fim à vista, impõe-se uma reflexão sobre o habitar.
A Casa adquire, neste contexto, uma conotação totalmente nova: ocupamo-la em regime de exclusividade, intensivamente e sem alternância com o escritório, a escola, o restaurante, o cinema ou a cidade.
A ela pede-se agora que, para além de abrigo, seja também escritório, escola, restaurante e cinema, sendo que não se lhe pode pedir que seja cidade ou espaço de encontro com os outros, porque é essa exatamente a razão pela qual estamos em casa; a interação com terceiros perdeu a dimensão física e ficou agora relegada para os canais digitais, sempre a partir de Casa.
O Porto Seguro de onde partir e onde chegar acumula funções e vê-se agora mais como o Quartel General de comando de todas as operações do quotidiano: dormir, lavar-se, cozinhar, educar e trabalhar, aceitar e tolerar, o centro de isolamento ou de convivência, partilha ou escape, pelo menos, até onde a casa o permitir.
Poderá ser sobretudo um palco onde aprender, ler, escrever, consertar, organizar, fazer tudo aquilo que sempre dissemos, com maior ou menor convicção, que um dia haveríamos de fazer se tivéssemos tempo: pois agora, esse, magicamente, dilatou-se. As deslocações que fazíamos diariamente acabaram, e isso significa, matematicamente, que vai haver mais tempo para dedicar em Casa.
E aqui estamos nós, a humanidade em bloco, confinada nos seus abrigos, que se irão revelar, à medida que a pena descontada aumenta, mais ou menos acolhedores, mais ou menos terapêuticos, mais ou menos capazes de responder à intensidade com que estão a ser solicitados.
Mas talvez o efeito mais universal que esta reclusão domiciliária irá provocar na sociedade seja o questionar sobre o sítio onde moramos, o local escolhido (ou não) para proteger a nossa existência, neste momento de vulnerabilidade extrema.
E a reflexão será espontânea porque o lar, à medida que as semanas passarem, irá revelar-se generoso com alguns e limitado com muitos outros.
Resistirão ao escrutínio os estúdios T0 que proliferam nos centros das cidades? E as generosas caves de estacionamento onde poderia existir um quintal ou um jardim privado?
Olharemos de outra forma para as varandas encerradas para aumentar a lavandaria? Continuaremos a considerar a hipótese de partilhar uma casa com desconhecidos? Ou, pelo contrário, tornar-se-á insuportável a ideia de se viver só? Consideraremos com maior apreço a importância do comércio de bairro?
A única certeza que temos neste momento é que a normalidade, quando esta for possível, será diferente da que conhecíamos até aqui, avivada pela memória recente dos acontecimentos e dos seus impactes físicos, emocionais e económicos nas nossas vidas.
O período de clausura que hoje atravessamos não vai durar para sempre. Vamos voltar a frequentar espaços públicos e a exercer atividades em grupo de trabalho ou de lazer, talvez com algumas nuances relativamente aos tempos pré Covid-19.
Mas a Casa está em julgamento! Daqui para a frente, adivinha-se uma profunda revisão das expectativas que temos para o nosso lar.
Perspetiva-se um questionar legítimo da resiliência das nossas cidades e economias urbanas “renovadas” na última década: como resistir ao confronto com a necessidade de adaptação rápida a cenários imprevistos?
Autor: COLETIVO OITOO, formado no Porto no fim de 2017, é um atelier constituído pelos arquitetos Laura Lupini, João Machado, Diogo Zenha Morais e Nuno Baptista Rodrigues, cujo âmbito de trabalho se foca fortemente nos temas de reuso e reativação de espaços e territórios.
Os membros do Coletivo oitoo estão envolvidos ativamente na prática e ensino da arquitetura e em publicações de carácter científico sobre temas concretos, como por exemplo “yellowred, on reused architecture”.
Estão a desenvolver em parceria com o gabinete Campos Costa Arquitetos o Plano Urbano da Operação de Loteamento da Foz do Arade, em Portimão, recentemente premiado com o 2º Prémio de Planeamento Urbano dos Urban Design and Architecture Design Awards de 2019.
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