A crónica que não queria escrever

Será que vamos voltar ao que “era dantes”?

No dia 17 de Março, fez 18 anos que nasceu o meu primeiro filho. Que maneira de celebrar a maioridade…fechado em casa.

Estivemos juntos e unidos, com um bolo caseiro e cantámos os parabéns na companhia da avó materna, mas, sem a reunião habitual de toda família que sempre nos caracterizou. Fez também no mesmo dia um mês que o meu pai, Jorge Roque, faleceu subitamente. Experimentei há dias a sensação de passar pela primeira vez pelo dia do pai sem a sua presença física.

Já se falava neste vírus à data das suas cerimónias fúnebres que juntaram centenas de pessoas, familiares e amigos. Agradeço assim a todos os enormes tributos e homenagens que lhe foram feitos como homem de Faro, do Turismo e do Sporting Clube Farense. Até isso hoje não seria possível. Preferia-o cá a passar por isto connosco, mas sei que seria um tormento para ele sujeitar-se a este isolamento. Importa que permanece vivo entre nós.

Já desde há alguns dias que estou em isolamento, ainda que tenha procedido ao recolhimento e a uma mobilidade limitada desde há mais tempo.

Vivemos o caos organizado. Procuramos manter alguma serenidade e estamos em teletrabalho, sem prazo para o fim. O que era verdade há horas, deixou de ser agora.

O planeamento e a organização a que nos habituámos e para a qual toda a sociedade nos conduz está totalmente condicionada. Aprendemos o significado de novas palavras: contingência, alerta, calamidade e emergência. Percebemos que, por um lado, estamos longe de sistemas desenvolvidos de apoio em algumas áreas, mas também que, por outro lado, temos acesso e disponibilidade de ferramentas potentes, que nos ajudam neste recolhimento necessário.

Muitos serviços vão desaparecer por se terem tornado desnecessários, mas a criatividade e o engenho humano estão a fazer nascer oportunidades para alguns.

Na direção de uma Escola do Ensino Superior pública, procura-se manter o ensino à distância e com base nos meios informáticos, adaptando-nos rapidamente a esta nova situação.

A resposta foi muito positiva de colegas das mais variadas áreas. Alguns no dia imediatamente seguinte à limitação de aulas presenciais, conseguiram dar resposta a partir de casa, com aulas baseadas na plataforma Zoom, outros estão ainda a testar e a adaptar conteúdos. Compraram câmaras, microfones e estão a tentar manter-se ativos e disponíveis.

Chegam-nos muitas dúvidas de colegas, alunos, colaboradores não docentes a toda a hora…como vai ser a avaliação? Uns estão mais apreensivos, outros muito abertos a estas práticas, a que há dias chamávamos “inovação pedagógica” e “novas metodologias de ensino-aprendizagem”.

Hoje, tenho muitos mais emails para responder. Recebemos informação nova a toda a hora. Tomamos decisões constantemente que comunicamos por email.

Os filhos estão em casa e a receber também, tarefas para desenvolver. Não há cantina na Escola para comerem e portanto, estamos a fazer as refeições todas em casa.

Acresce que as tarefas domésticas estão todas a ser feitas sem recurso a terceiros, nem lavandaria, nem passa-a-ferro, nem limpeza… O marido continua a trabalhar e a empresa de portas abertas. Sai pelas 8h30 e volta depois das 19h30, não trabalha na saúde, nem em ramo alimentar… Isto faz-me pensar muito nas condições das casas de cada um e das suas famílias e angustia-me.

Proliferam ofertas de como ocupar o tempo em casa e fazer atividades com os filhos. Eu própria tenho partilhado imensa coisa sobre visitas virtuais a museus e monumentos, livros grátis para fazer download e outras tantas ferramentas que agora estamos a descobrir por força das circunstâncias.

Gostava de ter oportunidade de as explorar, mas tenho prazos a cumprir e documentos a preparar. Um dos quais o Plano de Atividades de 2020 com todas as incógnitas que este ano nos está a colocar e na certeza que muito ficará por cumprir.

Ouvia o comentador internacional Nuno Rogeiro a sugerir, na televisão, para registamos por escrito o nosso quotidiano deste período, para que no futuro possamos reler. Certamente, muitos estão já a fazê-lo e os testemunhos mundialmente terão semelhanças, mas também diferenças. Esta crónica é assim um testemunho. Não partilho hoje uma análise de carácter científico, nem procuro dar um contributo na partilha de conhecimento.

Temos visto, nestes dias, alguns filmes onde a ficção apresentava cenários deste género. As guerras nucleares, químicas, mas também o desenvolvimento de vírus laboratoriais para dizimar nações, que, ao longo de décadas, têm feito parte da fantasia cinematográfica.

Neste momento, nada disto interessa. O bem-estar global e a nossa sobrevivência é o que está em causa, e isto afeta-nos todos e cada um. Este é o maior teste à Humanidade que já experimentámos nas nossas vidas, e todos temos que contribuir para exterminar um inimigo invisível.

Esperamos que tudo isto passe, para fazer uma festa e voltarmos a celebrar a vida como “era dantes”. Procuremos a serenidade possível, o cumprimento dos comportamentos de prevenção determinados e o desenvolvimento de técnicas que nos permitam desenvolver a atividade profissional à distância, para que se cumpra com o estabelecido.

Inspirem-se em exemplos de resiliência e partilhem-nos. Vamos sobreviver a esta prova.

Será que vamos voltar ao que “era dantes”?

Autora: Alexandra Rodrigues Gonçalves é diretora da Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve

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