Smart City, um novo metabolismo urbano

Volto ao tema da cidade inteligente ou smart city que, sem qualquer sombra de dúvida, marcará a agenda política, urbana, […]

Volto ao tema da cidade inteligente ou smart city que, sem qualquer sombra de dúvida, marcará a agenda política, urbana, social e tecnológica da próxima década.

Perante as grandes transições em curso – digital, ecológica, demográfica e laboral – trata-se, em minha opinião, de abordar um conceito mais compreensivo e abrangente de cidade inteligente, se quisermos, um novo metabolismo urbano para a smart city.

 

Smart City, a cidade tecnológica e digital

 

A inteligência territorial e as cidades inteligentes estão na ordem do dia. Os territórios inteligentes são, como sabemos, uma espécie de novo emblema das políticas do território e da sociedade em rede. Atualmente, prevalece, claramente, a versão tecnológica, digital e gestionária de smart city.

Com efeito, já hoje existe um pacote de serviços urbanos muito variado que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia e a eficiência energética, a gestão dos bairros inteligentes, as conexões e a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, o ambiente e os indicadores de qualidade de vida, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos e dos sistemas em ação na smart city.

A iniciativa “Smart Cities Tour 2019” da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) é um bom exemplo desta abordagem urbana de inteligência territorial, baseada, essencialmente, numa abordagem performativa e de otimização de recursos virada para a prestação de serviços públicos.

Nesta abordagem mais tecnológica e digital, muitas cidades portuguesas irão fazer convergir a sua política de inteligência urbana em três blocos de medidas de política, de dosagem variável e com reflexos diferenciados no seu processo de transformação digital: a virtualização de serviços convencionais numa ótica vertical de serviço-utente, a criação de plataformas digitais made in numa perspetiva mais horizontal e colaborativa interpares e, por fim, uma lógica mais individualista, de urbanauta conectado, numa perspetiva de cidade uberizada com sistemas GPS, drones e inúmeros aplicativos.

Mas há outros conceitos de cidade inteligente e de metabolismo urbano que, de resto, podem coabitar com os conceitos mais tecnológicos e instrumentais, se, para tanto, a inteligência humana ajudar. Vejamos, por exemplo, o que nos diz o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT).

 

A cidade orgânica e o metabolismo urbano segundo GRT

 

“As ideias que presidem à criação da nova cidade devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urbanismo-ecologia. O homem de hoje tende a deixar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, também, as atividades. O conceito de paisagem global tende a informar todo o processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo” (Telles, 2003: 334).

Como facilmente se observa, há diferentes escalas e níveis de complexidade para cumprir e fica claro que vai uma longa distância entre a simples provisão inteligente de serviços públicos de uma smart city e a criação de um ecossistema digital integrado no quadro de uma estratégia de desenvolvimento territorial mais compreensiva, complexa e dilatada no tempo.

O arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT) transporta-nos para o outro lado da inteligência, a inteligência humana como inteligência orgânica e biofísica. Sabemos que a cidade se artificializa à medida que cresce e que, pelo caminho, ficam algumas vítimas.

Em primeiro lugar, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os subúrbios inóspitos e agressivos, em segundo lugar, os ecossistemas naturais, cada vez mais poluídos, fragmentados e degradados e, por último, os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais, filhos bastardos de heranças desencontradas e políticas públicas ausentes, onde apenas ficam alguns serviços públicos e os elementos monumentais mais significativos.

Sabemos, também, que o processo de desenvolvimento urbanístico no nosso país tem quase sempre menosprezado a morfologia do território e os sistemas ecológicos indispensáveis à sustentabilidade do espaço, já para não falar dos valores culturais das paisagens tradicionais que são, também, desprezados ou menosprezados.

Entretanto, a cidade densa urbanisticamente torna-se energetívora. Por outro lado, ao crescer, as cidades urbano-industriais alargam as suas áreas de influência, tornam-se verticais, vão penetrando sucessivamente o território e a sua dimensão é cada vez mais regional, em anéis sucessivos que se estendem do suburbano e do periurbano até ao rural de proximidade e ao rural remoto.

Esta é, por isso, também, uma grande oportunidade, pois o restabelecimento da conexão entre áreas urbanas e paisagens rurais está ao nosso alcance. É, também, por isso que se deve substituir um urbanismo espartilhado em zonas independentes, sustentáveis artificialmente, por um urbanismo de base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulem com o facies edificado da cidade. É esta diversidade espacial que hoje deve presidir à cidade-região (Telles, 2003: 333).

Nesta estratégia de cidade-região e de conexão cidade-campo, parece imprescindível uma nova arquitetura biofísica e paisagista. Nesta estratégia e nesta arquitetura, o plano verde, a estrutura ecológica e a rede de corredores verdes podem e devem desempenhar um papel fundamental.

No final, “a cidade monolítica está condenada, pois é preciso recriar a unidade da urbe-ager-saltus-silva. O desenho da cidade não se pode circunscrever a traçar zonas que definam as transformações do espaço edificado ou a edificar, mas, pelo contrário, deve comportar a integração da ecologia no urbanismo e estabelecer um sistema espacial definido por circunstâncias geográficas, ecológicas e culturais inter-relacionadas” (Telles, 2003: 334).

 

Notas Finais: tópicos sobre o futuro da smart city

 

As fronteiras da cidade foram já ultrapassadas e os perímetros urbanos alargados, surgiram os anéis suburbanos e periurbanos, as infraestruturas rasgaram o território envolvente e as barreiras naturais em todas as direções, a alteração do uso dos solos promoveu a especulação e a irracionalidade urbanísticas.

Nesta sequência desordenada desapareceu a unidade espacial da urbe-ager-saltus-silva, no tempo em que a cidade era um ponto no meio do campo e em que a cultura da cidade era comum à cultura do campo.

Mais perto de nós, a cidade foi rigidamente desenhada a régua e esquadro, uma cidade-zonada com zonas para a construção ou recuperação de áreas já edificadas. A cidade tipológica do mundo urbano-industrial é a cidade do automóvel e das grandes densidades urbanísticas, cuja massa e volumetria se sobrepõem à morfologia e aos valores culturais do território.

A cidade inteligente e criativa do futuro só pode ser um espaço socialmente construído para o exercício da cidadania plena, se quisermos, a provisão de um cadinho de humanidade. Por isso, a minha tese para o futuro da smart city assenta num princípio de prudência e bom senso, a saber: as tecnologias digitais tornam a cidade mais inteligente, mas é o urbanismo nas suas várias dimensões que torna as tecnologias digitais muito mais inteligentes, humanas e criativas. É esta transação fundamental que não podemos nunca perder de vista.

A terminar, deixo uma grelha de leitura para o futuro próximo da smart city sob a forma de seis eixos de reflexão estratégica:

– E1: Não há nenhum determinismo tecnológico, a Cidade Inteligente não se confunde com a Cidade Digital, ou seja, não existe auto-realização por via tecnológica e digital;
– E2: Vamos assistir a uma hibridação das inteligências, humana e artificial, e à formação de novas inteligências coletivas territoriais;
– E3: Os impactos tecnológicos sobre a cidade e a sua pegada ecológica irão condicionar a engenharia das infraestruturas, a arquitetura urbana e o metabolismo da cidade;
– E4: A cultura digital criará uma outra estética urbana, isto é, uma cidade inteligente e criativa com uma cenografia e coreografia muito próprias;
– E5: As plataformas made in, os aplicativos e os smartphones estarão na base de uma coprodução da cidade e de um novo contrato social com os cidadãos;
– E6: Uma pequena revolução na governação política da cidade inteligente, face a face duas cidades, a cidade centralizada e a cidade coproduzida.

Em cada um destes eixos nós acrescentamos metabolismo urbano à cidade inteligente que, assim, se torna mais compreensiva e complexa e, também, mais humana. Em síntese, tecnologia e transformação digital, ecologia e paisagem global, criatividade e cultura, estas são as várias facetas da cidade inteligente e criativa do século XXI. Voltaremos mais vezes ao assunto.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

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