Com orgulho e paixão se trabalha para recuperar o lince ibérico

O Sul Informação esteve no CNRLI situado na serra de Silves para falar com quem lá trabalha

Créditos: CNRLI/ICNF

É «um equilíbrio fino» e uma tarefa de grande responsabilidade, que nunca pára, mas basta falar por alguns minutos com um trabalhador do Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico (CNRLI) para perceber o orgulho e paixão que sente por estar a contribuir para o salvamento de uma espécie.

Afinal, o CNRLI é um local especial. Este é um dos polos de uma rede transfronteiriça que está a trabalhar para recuperar o lince ibérico, uma espécie de felino que esteve muito perto da extinção e que ainda se encontra severamente ameaçada.

Em Portugal, os rostos deste programa de recuperação do lince são as cerca de duas dezenas de pessoas que trabalham no centro situado na freguesia de São Bartolomeu de Messines, no concelho de Silves, o único do género em território nacional e sob gestão do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

«Por regra, temos 16 a 18 pessoas aqui a trabalhar, entre funcionários e voluntários. Se incluirmos os vigilantes que estão ali à porta, que realizam um trabalho muito importante, são mais quatro pessoas», disse ao Sul Informação Rodrigo Serra, diretor do CNRLI, que nos seus dez anos de existência deu um contributo muito importante para a recuperação do lince ibérico.

 

Rodrigo Serra – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Rodrigo Serra lidera este centro e é um dos elementos da equipa de médicos veterinários que ali trabalha. Os outros «pilares» do trabalho de recuperação desta espécie feito no Algarve são os etólogos e tratadores.

A equipa de etologia, o estudo do comportamento animal, é «composta por etólogos profissionais e por voluntários, a quem damos acesso, para que possam aprender com o que cá se faz. Como sabem, este é um centro que não permite a visitação, até pela natureza do trabalho que realizamos. A única janela que temos para treinar pessoas e lhes mostrar o que fazemos é através destes programas de voluntariado, que são de âmbito europeu».

Neste momento, o CNRLI está, de resto, a aceitar candidaturas de quem queira trabalhar, como voluntário, no centro.

«Também temos uma equipa veterinária, que trata de tudo o que diz respeito à sanidade e à alimentação dos linces. E depois há a equipa de tratadores, que faz toda a gestão e maneio dos animais lá em baixo nos cercados, desde o enriquecimento ambiental, às limpezas, ao treino e à libertação», acrescentou Rodrigo Serra.

Cada uma das equipas tem «tarefas diferentes, embora todas se toquem».

«O tratador não pode estar lá em baixo a fazer maneio sem que os etólogos vejam aqui nos monitores [do sistema de vídeo interno] e lhe digam que os animais estão aqui ou ali, neste cercado ou fora dele, para que saiba se pode entrar ou não. Também não saberia se o animal já comeu ou não, se a etologia não lhe dissesse. O veterinário, por seu lado, não daria conta de que há um problema sanitário se os tratadores não notarem qualquer coisa de estranho ou os etólogos não detetarem alguma coisa através das câmaras», resumiu o diretor do centro.

Ou seja, «todo o trabalho tem pontos de contacto e são estes três pilares que garantem o funcionamento do centro 24 horas por dia, 365 dias por ano». Ou 366 dias, em anos bissextos, como o atual de 2020.

 

Andreia Grancho – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Uma das etólogas do CNRLI, que ali trabalha há mais de oito anos, desde 2011, é Andreia Grancho. «A nossa função consiste na observação dos linces, através de videovigilância. Eles estão 24 sobre 24 horas sob observação comportamental e para gestão aqui do centro. Avaliamos o que se passa com cada um dos animais, a diferentes níveis».

Segundo explicou ao Sul Informação a funcionária do CNRLI, a relação dos etólogos com os linces «é muito indireta. Eles não sabem quem somos [risos] e nós raramente os vemos [a olho nu]. Mas também não é esse o objetivo, são animais selvagens».

«Há uma vantagem de estar oito horas por dia a olhar para eles e para cada passinho que dão. Vamos conhecendo cada vez mais as personalidades e temperamentos de cada um. São todos muito diferentes uns dos outros, apesar de serem todos da mesma espécie», acrescentou Andreia Grancho.

A jovem funcionária do centro algarvio de Reprodução do Lince Ibérico trabalha há muito com animais, mas a sua formação é noutra área. «A etologia, o estudo do comportamento animal, sempre foi uma área que me interessou bastante. Sou psicóloga, mas o meu percurso foi nesse sentido precisamente por gostar muito. Assim, fui-me voluntariando na área. Passei por outros projetos, com outras espécies. As oportunidades foram surgindo e tudo se foi encadeando. Agora, trabalho há oito anos aqui no CNRLI», contou.

 

Vanessa Requeijão – Foto: Hugo Rodrigues | Sul Informação

 

Também funcionária do centro desde 2011 é Vanessa Requeijão, que exerce a função de tratadora.

«Nós somos quem lida todos os dias com os animais. Somos seis e rodamos o trabalho por todos. Trabalhamos por turnos, 365 dias por ano. Ao contrário dos etólogos, nós estamos com os animais. Elas passam 24 horas a observá-los e veem o comportamento puro, sem presença humana. Nós somos os que nos diferenciamos um bocado. Somos nós que alimentamos, que limpamos, etc.», explicou ao Sul Informação.

Também são os tratadores que manuseiam os animais, em caso de necessidade. «Se nós ou elas [as etólogas] detetarmos algum problema, falamos com os veterinários e, a partir daí, agimos como um grupo, o centro todo. Conversamos e tentamos achar a melhor solução».

«Há dois tipos de animais. Por um lado, temos os reprodutores, que são os que irão ficar a vida toda em cativeiro, portanto têm que se habituar a nós. Até porque, se tiverem medo de nós, isso pode criar uma situação de stress prolongado, que é prejudicial para os animais e para a reprodução, que é um dos objetivos principais do programa», acrescentou Vanessa Requeijão.

Depois, há as crias para reintrodução. «Essas sim, têm de ter o mínimo de contacto possível connosco. É óbvio que é impossível que não nos vejam. Uma vez por semana, temos de lá entrar para limpar. Também lhes pregamos sustos. Neste caso, são alimentadas de forma a que não nos vejam diretamente».

 

Créditos: CNRLI/ICNF

 

Como se percebe, dentro deste centro, onde vivem atualmente 29 linces, há realidades muito distintas. Aliás, cair na rotina dificilmente será um dos riscos ocupacionais, nesta área de trabalho.

«O trabalho num centro deste tipo não tem uma rotina muito consistente, pois acompanha o calendário de reprodução do lince ibérico. A cada três meses, a função do CNRLI especializa-se numa determinada área e a rotina altera-se consoante a fase que vivemos», ilustrou Rodrigo Serra.

Atualmente, está a decorrer a época de reprodução. Em Novembro, o enfoque foi dado ao treino de reintrodução das crias, que deverão ser libertadas na natureza entre Fevereiro e início de Março.

«Aqui privilegiamos a tranquilidade e o não contacto com humanos dos linces a serem reintegrados e o trabalho de avaliação comportamental desses animais, para perceber se estão ou não aptos para ser soltos», enquadrou o diretor do centro.

Entretanto, em Dezembro, foi feito o emparelhamento, tendo em vista a nova época de reprodução. Os animais reprodutores foram anestesiados e capturados, já que «de três em três anos temos de os apanhar para controlo sanitário». No final do mês, começaram as cópulas e iniciou-se o novo calendário de reprodução.

 

Créditos: CNRLI/ICNF

 

Todo este trabalho tem de ser feito com cuidado. «É um equilíbrio fino. Por um lado, não queremos perder os comportamentos naturais, tudo o que permite que as crias aprendam com os pais, de modo a sobreviver na natureza. Ou seja, não podemos intervir demasiado. Mas, ao mesmo tempo, temos animais com problemas naturais de comportamento que resultam da sua manutenção em cativeiro, que não é um estado natural para o lince ibérico», resumiu Rodrigo Serra.

O responsável pelo CNRLI salientou que, quando começou o projeto de recuperação do lince, que envolve Portugal e Espanha, «não existiam linces em cativeiro em nenhum Zoo. Ou seja, foi preciso extrair da natureza linces feridos ou que estavam ameaçados de desaparecimento. Foram esses que foram utilizados para fundar o programa e mantêm-se muito selvagens».

«Nós temos aqui a Artemisa e o Madagáscar, para dar dois exemplos, que nasceram em meio selvagem e foram incorporados para poder trazer a sua genética para o programa. Ou seja, o comportamento deles ainda é muito selvagem», lembrou.

Isso, por um lado «é bom e para manter», mas, por outro, requer uma atenção especial. «Quando confinamos um animal destes a mil metros quadrados, surgem problemas comportamentais que é preciso tratar, através de trabalhos de enriquecimento ambiental e por aí fora».

«Mas essa é uma das grandes riquezas que este programa têm: são animais que são originais, em termos comportamental, e eu creio que essa é uma das principais raízes do sucesso do projeto», concluiu Rodrigo Serra.

O CNRLI está sob gestão do ICNF e é financiado, em grande medida, pela empresa Águas do Algarve, que, além de ter construído o centro, há dez anos, como medida de compensação pela construção da barragem de Odelouca – na sequência de uma forte pressão feita por associações de defesa do Ambiente – contribui com 300 mil euros por ano para o funcionamento do centro. O resto da verba necessária é garantida pelo ICNF, um instituto público, e por Fundos da União Europeia.

 

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação e CNRLI/ICNF

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