A propósito do Coronavírus

O bioquímico e comunicador de Ciência António Piedade explica o que são os vírus

No geral, podemos definir um vírus como um agente infecioso de dimensões submicroscópicas (isto é, mil vezes mais pequenos do que um milímetro) constituído por uma “cápsula” de alguns tipos de proteínas que se encaixam umas nas outras, quais pedras numa calçada portuguesa, numa estrutura regular que lhes confere resistência, a qual guarda e protege o genoma viral.

O genoma, livro de instruções que definem, de certa forma, a história e o ciclo de vida do vírus, pode ser composto por ADN (exemplo, os adenovírus) ou ARN (exemplos são o HIV – vírus da SIDA, ou o influenza A sub-tipo H1N1 – vírus da gripe e os atualmente preocupantes coronavírus), mas nunca por ambos. Alguns vírus, de que o HIV é um exemplo, possuem uma bainha de lípidos à volta da cápsula proteica.

Como se sugeriu, o material genético que compõe o genoma viral contém todas as informações ou planos para a construção do seu “edifício”, instruções para a sua arquitetura proteica regular.

No entanto, precisam da “fábrica e maquinaria” bioquímica existente no interior das células vivas, para dar expressão, sentido e função aos seus próprios planos.

Isto é assim porque os vírus são caracterizados por não possuírem um metabolismo independente e por serem incapazes de se replicarem fora de uma determinada célula. Para além disso, vírus diferentes têm capacidade de invadir tipos de células específicos e diversos.

Por exemplo, os vírus que causam hepatite “escolhem” as células do fígado (que se designam hepatócitos e daí advém o nome da doença hepatite – infeção nos hepatócitos), os que causam a SIDA “preferem” um determinado tipo de células brancas do nosso sistema imunitário, enquanto outros, como os adenovírus e os coronavírus, “alojam-se” nas vias respiratórias, dando origem a faringites, pneumonias e outras infeções.

Esta propriedade de os vírus serem capazes de “escolher” um tipo específico de célula é determinada pela existência de algumas proteínas no exterior do vírus que interagem forte e especificamente com moléculas existentes na superfície das células do hospedeiro e que são marcadores “típicos” das células de um determinado tecido.

Por exemplo, o vírus influenza A, sub-tipo H1N1, possui no seu mosaico proteico duas proteínas: um tipo de hemaglutinina (H1) e um tipo de neuraminidase (N1).

Assim, devido a uma estratégia de reconhecimento molecular forjada e moldada no início da vida no nosso planeta e que evoluiu desde então através de variações do mesmo tema, o vírus “sabe” a que tipo de célula humana deve “atracar-se” para dar início à sua replicação.

Isto porque existem, na superfície de todas as células, recetores complementares das proteínas que estão na cápsula viral. Uma interação tipo chave na fechadura complementar abre a célula à invasão viral.

Uma vez encontrada a célula com a fechadura que a “chave” viral abre, os vírus “injetam” o seu genoma, o seu manual de instruções, no interior celular, ou são primeiramente internalizados integralmente: qual cavalo de Tróia, a célula engole a partícula viral, sem ter qualquer desconfiança sobre o que é que lhe vai acontecer.

Uma vez no interior da célula, os genes virais entram em ação, enganando a célula ao dar-lhe novas instruções. Como já se disse, os vírus necessitam da maquinaria bioquímica existente nas nossas células e nas bactérias (sim, também estas padecem com invasões virais).

Sem estes processos inerentes e essenciais à vida, não é possível “ler” os planos de construção codificados nos genes virais e “traduzi-los” para a forma funcional e estrutural que são as suas proteínas constituintes.

Esta tradução é efetuada em unidades de síntese e “montagem” proteica que são os ribossomas. Estes funcionam como “máquinas” de tradução da linguagem genética em proteínas e estão presentes em todas as células.

Mas os vírus não possuem ribossomas. Este é um dos aspetos fulcrais para a total dependência dos recursos interiores da célula. Qual atração “nostálgica” do citoplasma celular, este é destino incontornável no ciclo de replicação viral e fado fatal para a célula hospedeira. Percebemos, assim, porque é que os vírus necessitam das células para se replicarem. Ademais, a célula confere-lhes um ambiente seguro, recheado das matérias-primas e da energia necessária para a sua síntese.

Com o que atrás ficou dito, é mais fácil antever que a infeção de uma célula por um vírus faz com que o metabolismo daquela se desvie muito da sua atividade normal e vital, em direção à síntese das “peças” necessárias para fabricar novos vírus (nesta etapa designados por viriões).

A célula transforma-se assim numa autêntica unidade fabril de produção em série de inúmeras cópias idênticas (clones) do vírus que a infetou. “Obcecada” por esta atividade, a maquinaria celular é impedida de efetuar os processos normais necessários à sua própria manutenção, acabando por entrar em colapso ao fim de algum tempo.

Nessa altura, ou porque a célula não é mais capaz de garantir a sua integridade, ou porque o número de viriões por ela sintetizados é muito elevado, ocorre uma ruptura celular e os viriões são libertados para o exterior.

Cada um dos novos vírus passa a estar, desta forma, pronto para infetar uma nova célula reiniciando assim o ciclo e o processo infecioso.

Como os vírus não possuem metabolismo próprio, não é possível utilizar a estratégia intrínseca aos antibióticos que usamos para combater bactérias.

Algumas das estratégias da investigação nesta área tentam impedir que os vírus consigam reconhecer a sua célula hospedeira específica e se fixem nela. Outras linhas de investigação dirigem-se para a tentativa de evitar que os vírus dêem ordens de operação à célula para a sua síntese. Outras ainda intrometem-se numa etapa necessária à libertação dos viriões, travando a difusão do programa viral para outras células.

As vacinas atuam de outra forma: instruem o nosso sistema imunitário, “ensinando-o” a reconhecer e a “inativar” alguns dos vírus que nos visitam. Continua a ser a mais eficaz forma de defesa preventiva que conhecemos.

Contudo, alguns vírus sofrem mutações genéticas (alterações no genoma, por exemplo por deriva genética), no decurso da sua replicação, que lhes permite mudar de “aspeto” exterior e escapar à vigilância do nosso sistema imunitário previamente instruído pela vacinação.

É como se mudassem de disfarce entre visitas, tornando a sua identificação difícil, e ineficaz a preparação antecipada que a vacinação dá ao nosso próprio sistema de segurança interna contra estes agentes patogénicos.

 

 

Autor: António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

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