A ponte de Tavira

O município tem sempre ao dispor a arma da consulta pública

Eu, pessoalmente, sou muito mais municipalista que regionalista, porque em Portugal não temos, nem nunca tivemos a prática das regiões.

Temos regiões geo-ecológicas bem acentuadas, mas nunca houve suficientes diferenças étnicas ou religiosas entre as populações que justificassem a reivindicação de identidade própria e o desejo de autonomia e gestão de regiões como autarquias.

Somos um país etnicamente homogéneo na diversidade cultural de cada “região natural”. É facilmente reconhecível o carácter cultural e certos usos, costumes e tradições que marcam as populações do nosso território, desde a continentalidade de Trás os Montes ou das Beiras, a atlanticidade das populações das regiões do extenso litoral, as características culturalmente tão vincadas dos alentejanos e do seu ondulado espaço vital, ainda as indiscutíveis idiossincrasias das populações do Algarve, de tão acentuada mediterraneidade.

Mas, desde o berço da nacionalidade, tivemos o Governo da Coroa e a governança local dos forais e municípios, sem outro patamar administrativo.

O município foi sempre a grande instituição do povo, que, de resto, a monarquia apoiou desde o alvor da portugalidade, pois foi nos municípios e nos forais que a Coroa se apoiou e se defendeu de poderes económicos e políticos que emanariam da nobreza, como classe possidónia e de objetivos hegemónicos.

A longa tradição municipalista esteve na origem de grandes episódios, por vezes heróicos, da existência deste pequeno país como território independente, entre borrascas que assolaram a História, século após século.

Por isso, e contrariando muito boa gente que pensa de forma oposta à minha, gostaria de ver uma forte descentralização administrativa assente nas associações de municípios e em áreas metropolitanas, sem todos aqueles encargos e dispendiosa orgânica inerente à criação de Regiões (e cuidado com os caciques, de que já vimos exemplos por aí…)

Hoje, a partidarização da democracia, se bem que indispensável e inevitável, também tem o lado adverso da luta pelo partido ser muitas vezes mais importante que os reais interesses do povo – seja de que quadrante ideológico se trate.

Mas o município tem sempre ao dispor a arma da consulta pública e, dessa forma, pode agir de acordo com a vontade geral – mas raramente isso acontece, o que é pena.

Vem isto a propósito da nova ponte rodoviária que a Câmara Municipal de Tavira assumiu como desígnio da sua ação em prol da cidade e supostamente em prol da população tavirense.

Sob o ponto de vista urbanístico, além de grupos de cidadãos informados que protestam contra aquela ponte, também já arquitetos e outros técnicos de reconhecida capacidade e conhecimentos da prática urbana, se têm pronunciado desfavoravelmente face àquela construção.

Na verdade, com outras pontes rodoviárias existentes a poucas centenas de metros da que é agora motivo de discórdia, não se pode, em boa verdade e com bom senso e prudência, insistir em eventuais vantagens que possam vir para Tavira com mais esta travessia.

Se ela for uma travessia pedonal, isso sim, faz todo o sentido! Agora trazer mais viaturas para um centro urbano já tão congestionado, com uma estrutura viária antiga e limitada, o maior afluxo de automóveis só irá piorar a qualidade de vida das pessoas e em nada traz benefícios para a cidade.

O Executivo camarário tem legitimidade democrática para determinar a política da cidade, mas, face a tanta contestação, mais uma vez o bom senso e a prudência deviam aconselhar a fazer uma auscultação à população – esse é que é o verdadeiro espírito do municipalismo, o espírito autárquico, a tradição dos homens livres governarem a cidade, a polis. Os gestores da polis são os seus habitantes, os políticos.

Não sei se maioritariamente a população estará a favor ou contra; excelente oportunidade para uma consulta pública determinar e ajudar a Câmara a seguir o caminho mais consensual.

Para os técnicos que se interessam e estudam a política urbana e o sentido de otimização do uso do espaço urbano e a sua melhor fruição, é evidente que uma ponte rodoviária a atravessar Tavira é um enorme contra-senso.

Mas dê-se a palavra ao povo, livremente, sem manipulação de qualquer lado e o povo dará a sua razão – a vontade geral, que já Rousseau desejava que fosse escutada.

 

Autor: Fernando Santos Pessoa é arquiteto paisagista

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