31 de Janeiro, um dia sombrio para a Europa

António Covas reflete sobre o Brexit e as suas consequências

No dia 31 de Janeiro o Reino Unido sai formalmente da União Europeia e, assim, uma saída acontece pela primeira vez de acordo com o artigo 50º do tratado da União Europeia.

É bem verdade que para muitos britânicos e muitos europeus é, antes, um dia luminoso, porque, finalmente, “se livram” dos europeus do continente e dos ingleses das ilhas. Agora, falta saber se esta saída do Reino Unido é suficiente para criar uma “teoria do precedente” com suficiente poder para amparar outras saídas ulteriores.

Tudo isto acontece no preciso momento em que o mundo assiste ao regresso em força da geoestratégia e da geopolítica nas relações internacionais, em grande medida, para ocupar o espaço deixado vazio pela retirada do “polo atlântico e ocidental”.

No preciso momento em que precisava de mais união política para afirmar os seus interesses no mundo multipolar, a União Europeia recua nessa ambição e não segura o parceiro atlântico.

A história recente do Reino Unido na UE

Não vou fazer a história recente do Reino Unido como estado membro da Europa Comunitária, que remonta ao ano de 1973, vou apenas registar alguns factos mais relevantes, pois, como sabemos, o Reino Unido nunca morreu de amores pelas Comunidades Europeias e menos ainda pela União Europeia.

O Reino Unido aderiu às Comunidades Europeias no ano de 1973 depois de duas tentativas mal sucedidas em 1963 e 1967, devido à recusa do presidente francês General Charles De Gaulle.

Em 1973 entrou conjuntamente com a Irlanda e a Dinamarca e logo em 1975 realizou um referendo sobre a permanência nas Comunidades Europeias por iniciativa do partido trabalhista. Este facto mostra bem as convicções dos britânicos a propósito do projeto europeu.

Passados 47 anos sobre a data de adesão do Reino Unido, talvez possamos resumir a participação britânica da seguinte forma:

– Em bom rigor, o Reino Unido nunca foi um membro de pleno direito da União Europeia. Basta, para tanto, pensar nas inúmeras cláusulas de derrogação e exceção aos tratados, por exemplo, a moeda única, o espaço Schengen de liberdade de circulação ou o” rebate” orçamental (devolução de uma parte da contribuição britânica para o orçamento comum);

– Por várias vezes, os dois maiores partidos britânicos, o conservador e o trabalhista, ameaçaram fazer consultas populares para sair das comunidades europeias, instrumentalizando, assim, a sua participação europeia por razões de política doméstica;

– Sabemos, também, que o mal-estar britânico subia de tom sempre que se falava de mais Europa, mais federalismo ou integração política, em particular durante a revisão dos tratados europeus;

– Sabemos, ainda, que o regionalismo independentista no interior do Reino Unido saiu reforçado pela política de coesão territorial e pelos fundos europeus e que essa relação direta com Bruxelas nem sempre era politicamente apreciada pelo governo de Londres;

– Sabemos, finalmente, que o espírito soberanista e o internacionalismo liberal do “império britânico” nem sempre casaram bem com o espírito federalista e burocrático da integração europeia.

Neste contexto, a saída do Reino Unido da União Europeia visa, de forma sintética, um triplo objetivo, a saber: recuperar o controlo da fronteira, do orçamento e da legislação nacional.

Em abono da estratégia britânica podemos mesmo dizer que o projeto europeu já atingiu um patamar de integração suficiente entre os países membros e que se trata, agora, de recomeçar, com as mãos livres, a partir desse patamar de integração. Doravante, e com base na política de cooperação com a União Europeia, o Reino Unido agirá, em cada momento, segundo o seu próprio interesse, sentido de oportunidade e conveniência política sem estar sujeito ao labirinto institucional da União Europeia.

 

Um dia sombrio para a Europa

 

No dia 31 de Janeiro o Reino Unido deixa de ser oficialmente membro da União Europeia e até ao dia 31 de Dezembro de 2020 decorrem as negociações visando fixar os termos do futuro relacionamento entre o Reino Unido, país terceiro, e a União Europeia a 27.

Entretanto, até ao dia 30 de Junho de 2020, as duas partes deverão confirmar que existem as condições políticas para terminar as negociações até ao último dia do ano.

Não vou fazer qualquer prognóstico sobre os próximos episódios. Em vez disso, vou apresentar algumas razões ponderosas que explicam e justificam a minha afirmação de que se trata de um “dia sombrio para a Europa”.

Por paradoxal que possa parecer, entendo que as perspetivas e as dúvidas britânicas acerca do projeto europeu introduziram maior realismo, pragmatismo e moderação na política europeia dos pequenos passos.

Eis alguns tópicos que considero muito relevantes nesta altura e onde a participação do Reino Unido poderia ser determinante:

– Em primeiro lugar, um segundo mandato de Donald Trump torna a saída do Reino Unido muito mais problemática, pois a União Europeia deixa de ter um interlocutor acreditado para lidar com os EUA em matéria de geopolítica atlântica,

– Em segundo lugar, sem a presença do Reino Unido o diretório franco-alemão fica praticamente sem contrapoder e essa liberdade pode precipitar propostas e soluções mais integracionistas, que dividem em vez de unificar as nações europeias, e essa tentação pode acabar por balcanizar a política europeia;

– Em terceiro lugar, sem a presença do Reino Unido há uma desvalorização geopolítica das relações transatlânticas e um reforço correlativo da Europa do Meio; esta tendência parece irrecusável e a pressão constante que chega do lado leste, quer dos países de Visegrado, mas, também, da Rússia, Turquia e Medio Oriente, não deixa muito espaço para os “pequenos problemas transatlânticos” da periferia europeia;

– Em quarto lugar, a periferização de Portugal no quadro desta desvalorização geoestratégica pode afastar-nos progressivamente da política europeia, sobretudo se, por causa da nossa zona económica exclusiva alargada no Atlântico, formos empurrados para os braços dos nossos aliados transatlânticos tradicionais;

– Em quinto lugar, sem a presença do Reino Unido há menos recursos orçamentais para enfrentar os novos desafios da União Europeia; esta evidência cruza uma linha vermelha fundamental, qual seja, a descontinuação eventual da política de coesão e da política agrícola de que Portugal tanto beneficia;

– Em sexto lugar, sem a presença do Reino Unido a geopolítica europeia em matéria de segurança e defesa no mar mediterrânico e no atlântico sul fica mais fragilizada, seja no plano energético, no plano da imigração e dos refugiados ou no plano da cooperação e segurança coletiva regional onde também se incluem problemas de jurisdição territorial como é o caso de Gibraltar;

– Por último, esperemos que a futura política de relações transatlânticas nos poupe ao espetáculo triste de uma divisão profunda no universo ocidental acerca do cibercrime e da segurança coletiva europeia; a cooperação entre o Reino Unido e a União Europeia nesta área é fundamental para a continuação do projeto europeu.

Estas são algumas das nuvens que pairam sobre a Europa e que, além disso, são acompanhadas por uma desafeição político-emocional do cidadão europeu acerca do projeto de uma União Política Europeia.

O baixo crescimento económico e as desigualdades sociais, que empobreceram e radicalizaram uma parte das classes médias, bem como a falta de líderes políticos acreditados, são as faces mais visíveis do problema europeu e o descontentamento nas ruas das capitais europeias é um mau cartão de visita para quem, por exemplo, vai votar pela primeira vez.

 

Notas Finais

 

As relações futuras entre o Reino Unido e a União Europeia podem seguir três modelos de cooperação: o “modelo norueguês” que segue, na prática, o relacionamento hoje prevalecente, o modelo do “país terceiro” que remete o Reino Unido para fora da União e para as regras estabelecidas pela Organização Mundial de Comércio e o “modelo Canadá”, um modelo comercial intermédio, pragmático e ajustável de relacionamento.

Em relação ao próximo futuro, talvez possamos dizer que se trata de escolher o nível de contencioso bilateral que as partes estão dispostas a tolerar. O modelo norueguês não é um modelo de saída, é mais um modelo de entrada.

O modelo OMC sendo um modelo de saída não é, porém, um modelo inteligente.

Resta, por isso, o modelo realista, pragmático e ajustável que, não obstante, não eliminará os inúmeros problemas de concorrência desleal no futuro, mesmo que o acordo preveja mecanismos e regras de arbitragem para o efeito durante um período de transição.

Se a União Europeia leva vantagem nas matérias relativas ao mercado único, o Reino Unido sabe que pode capitalizar as matérias high politics de segurança, defesa e energia nuclear por contraposição aos argumentos da low politics e obter, por essa via, algum ganho de causa.

Importa acrescentar que ao Reino Unido interessa sobremaneira recuperar margem de liberdade na política comercial face a terceiros países e que esse esforço diplomático e comercial ocupará, doravante, uma parte substancial do seu trabalho político.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

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