Sustentabilidade e segurança hídrica do Algarve

Precisamos mesmo, e o quanto antes, de pensar, estudar e começar a implementar um verdadeiro Plano para a Sustentabilidade e Segurança Hídrica do Algarve

Ponto prévio:
1) Os personagens desta história são ficcionais;
2) Este escrito foi produzido no momento em que saímos da depressão Elsa e entramos numa outra, o Fabien, e em que a meteorologia, no que respeita à ausência de precipitação, alivia um pouco, pois não devemos opinar sob pressão máxima dos acontecimentos já que tende a condicionar-nos a objetividade.

Dois amigos, A e B, encontram-se como é seu hábito à mesa do café de bairro, enquanto lá fora a chuva e vento trazidos pela Elsa se fazem sentir.

É um desses cafés iguais a tantos outros, locais privilegiados para debate dos principais temas da atualidade. Entre uma bica pingada e um descafeinado, decorre o seguinte diálogo.

A: Bom, parece que com aquilo que já choveu e que ainda vai cair, a seca no Algarve já era. Vamos ter as barragens novamente cheias e já não há risco de ficarmos sem água nas torneiras.

B: Mesmo assim, acho que ainda não vai ser suficiente para repor as reservas quer nas barragens, quer nas águas subterrâneas. Já sabes que sou um curioso destas matérias e ainda hoje consultei o site do IPMA.
Todo o território do Algarve ainda se encontra em seca meteorológica severa e inclusive uma parte do Sotavento permanece em seca extrema.
Pelo menos, o teor de água no solo já aumentou, com toda a região acima dos 20% e nalguns casos mesmo dos 50%, quando há poucas semanas, em partes significativas do território, esse índice estava inclusive abaixo do Ponto de Emurchecimento Permanente, ou seja nessas zonas nem a vegetação espontânea ou as culturas de sequeiro tinham as disponibilidades mínimas de água para sobreviver, pondo mesmo em causa a própria biodiversidade natural.

A: E as barragens? Como estão as suas disponibilidades?

B: Continuam bastante abaixo das médias históricas de armazenamento, tanto no sistema do Barlavento como no do Sotavento, nalguns casos ainda com valores inferiores a 30% da capacidade.

A: Pelo que me dizes, ainda não é suficiente para ficarmos descansados! Ou seja, precisamos mesmo de fazer algo verdadeiramente significativo se queremos deixar de estar sempre com o “credo na boca”.

A: Nem mais! É absolutamente crítico avançarmos com um Plano Integrado de Segurança Hídrica para o Algarve, sob pena de, se nada fizermos, podermos estar a hipotecar a nossa sustentabilidade ambiental e económico-social.
E para isso, todas as opções têm de ser equacionadas, estudadas e submetidas a uma rigorosa e imparcial avaliação custo-benefício.
Nenhuma alternativa deve ser descartada a priori sob pena de desvirtuarmos a tal solução integrada. Duas coisas são no entanto factuais: sem água não é possível levar a cabo atividades económicas competitivas no Algarve, seja na agricultura, no turismo, etc.
Mesmo as tradicionais culturas de sequeiro, hoje em dia, com o agudizar do impacte das alterações climáticas, têm de ser ajudadas pela rega que mais não seja nos primeiros anos de crescimento.
Por outro lado, por mais demorada que seja a implementação destas eventuais medidas mitigadoras, qualquer ano a mais que demoremos a decidir é mais um ano que tardamos a concretizar.

B: E achas que mesmo a construção de novas barragens, como por exemplo as de que tanto se ouve falar (nas ribeiras da Foupana e do Alportel), são investimentos a equacionar?
Se não chove o suficiente, como vão encher esses reservatórios, para já não falar dos inevitáveis impactes ambientais negativos associados?
Tens ouvido por certo falar na interrupção que originam no fornecimento de sedimentos e nutrientes às zonas costeiras e que tanta falta fazem à recarga dos areais e para a alimentação de espécies marinhas, entre outros.

A: Têm necessariamente de ser também tomadas em linha de conta. O Algarve, e a sua ocupação populacional e económica, não é todo igual, logo este plano como o próprio epíteto “integrado” indica, tem de contemplar mais do que um tipo de medidas.
Por exemplo, sabias que a bacia hidrográfica das Ribeiras do Algarve se caracteriza maioritariamente por regimes torrenciais, ou seja, tanto ficam praticamente sem água quando não chove, como enchem rapidamente, como aliás agora já estamos a observar com estas chuvas recentes.
E esse regime torrencial tende a acentuar-se com as alterações climáticas.
Logo, se não reforçarmos o nível de aprovisionamento dessa água, fazendo como a formiga que amealha nas alturas de maior abundância para acautelar os períodos de maior carestia, estaremos muito vulneráveis à ocorrência de episódios cada vez mais frequentes de défice hídrico.
Temos de estudar, sopesar e só depois decidir… por outro lado, como bem sabes, existe também a possibilidade de implementação de medidas de minimização e mitigação dos eventuais impactes ambientais negativos associados a essa construção.

B: E a utilização de águas residuais tratadas, i.e., o esgoto tratado pelas ETARs e que é rejeitado sem qualquer aproveitamento para o meio natural, a dessalinização da água do mar (e tanta que nós temos!)?

A: Tudo hipóteses a contemplar. As águas residuais das ETARs, principalmente as de nova geração que já dispõem de sistemas mais eficientes de tratamento, e que necessariamente hão-de requerer outros adicionais para corrigir a elevada condutividade elétrica (os sais em excesso) e os níveis bacteriológicos de patógenos – como coliformes fecais- para parâmetros mais consentâneos com os legalmente exigíveis para estes usos, com um adequado investimento na construção de redes dedicadas para a sua distribuição, serão necessariamente uma boa alternativa para a rega de campos de golfe (aliás já temos um no Algarve a ser regado desta forma) e de jardins públicos, para a limpeza de ruas, etc..até mesmo para a rega de culturas permanentes, como as árvores de fruto (abacateiros, laranjeiras,.., se bem que neste caso há que ponderar o elevado custo energético associado à elevação desses caudais desde o litoral, onde estão situadas essas ETARs, até ao barrocal, onde se pratica a maior parte da agricultura de regadio no Algarve).
A água residual devidamente tratada pode inclusive ser também usada para a recarga artificial dos aquíferos. E isto, meu amigo, é que é fazer acontecer a tão falada Economia Circular.
O mesmo raciocínio se aplica às centrais de dessalinização da água do mar, ainda por cima quando os últimos leilões de energia solar tiveram um abaixamento de preço tão significativo e temos uma capacidade fotovoltaica tão elevada no Algarve, podendo assim promover dessalinização recorrendo a fontes de energia renováveis, logo menos impactantes.
Por algum motivo, somos tão conhecidos no mundo inteiro enquanto destino turístico de sol e mar.

B: Concordo contigo. E a estas medidas estruturais de reforço de aprovisionamento, temos de acrescentar, igualmente, as relacionadas com o combate às perdas de água nos sistemas de distribuição em baixa geridos pelos municípios (na ordem dos 25%), na remodelação dos aproveitamentos hidroagrícolas, alguns ainda da década de 60 do século passado, e que apesar dos investimentos já realizados, em curso ou projetados, para redução das perdas, ainda necessitam de melhorar a respetiva eficiência da distribuição, bem como na sensibilização dos consumidores para o uso racional e parcimonioso de um recurso cada vez mais escasso como a água (não te esqueças que Portugal é o 2º país da Europa com maior consumo médio per capita, mais de 190 litros/dia -o que é mesmo muita água! – sendo que o Algarve, por via da população flutuante associada ao turismo, ultrapassa os 240 litros/dia/habitante), começando logo nas escolas – “é de pequenino que se torce o pepino” – mas também apostando em códigos de boas práticas e na monitorização dos consumos reais por grandes grupos de utilizadores; e quando a simples sensibilização não chegar, há que fiscalizar e penalizar os menos responsáveis.
Não há dúvida, precisamos mesmo, e o quanto antes, de pensar, estudar e começar a implementar um verdadeiro Plano para a Sustentabilidade e Segurança Hídrica do Algarve.
Para deixarmos de estar tão reféns da aleatoriedade (ou da Divina Providência, se preferires) e podermos encarar o futuro com maior dose de previsibilidade.


Autor:
Pedro Valadas Monteiro é engenheiro agrónomo e diretor regional de Agricultura e Pescas

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