Há lágrimas que só os elefantes entendem

Se acreditasse na reencarnação (não acredito) gostaria de voltar como um elefante

Naquele dia, o meu coração transformou-se. Era o coração pequeno de uma miúda que ainda não tinha cinco anos, mas ficou nele uma marca que permanece há quase cinco décadas.

Sentada numas escadas, num lugar cujo nome não lembro, mas onde estava com a minha mãe que lá fazia os exames da antiga 4ª classe, vi ao longe uma mancha escura que se aproximava do centro da pequenina vila, perdida no interior de uma imensa Angola. Olhei e não percebi e, claro, perguntei: «O que é aquilo?». A minha mãe também nunca tinha visto tal coisa e sentou-se ao meu lado, bem atenta e, pude perceber, tão extasiada como eu. – «São os elefantes», disse-me.

Devagar, majestosos, ordenados, passaram à minha frente e eu quase não respirava. Atravessaram a vila como faziam habitualmente naquela estação do ano, em que migravam por ali, buscando os seus habituais sítios de permanência.

À frente a grande fêmea, a matriarca que guia a manada e a orienta em tudo, a líder do grupo, sempre atenta a qualquer perigo que possa surgir e a que todos se mantenham unidos e seguros. As fêmeas com as crias, que brincavam a seu lado, os machos jovens e menos jovens, que garantiam a vigilância da retaguarda seguiam no fim da ordenada fila.

Aquela grande família de irmãos, primos, tios e outros, sem laços de sangue, mas ligados pela vida, pelos muitos percursos feitos na savana africana, pelas paixões que geraram novos elementos para o grupo, seguiam ali à minha frente, com uma imponência que jamais vi ou verei repetida. Uma família real e com um real sentido de realeza.

A minha mãe deve ter respondido a dezenas de perguntas, feitas com entusiasmo e repetido tudo o que me podia dizer sobre elefantes nos dias que se seguiram. Eu, sempre que pude, a partir daquela hora, procurava nos livros de histórias, nos livros sobre a natureza, mais tarde nos documentários e outros suportes, tudo o que poderia saber sobre esta maravilhosa espécie animal.

E aprendi coisas que consolidaram a visão que formei naquele dia: os elefantes não vivem sozinhos, mas em grupo. Respeitam a sua líder, sempre fêmea, até que esta morre e é substituída por outra, habitualmente sua filha. Respeitam-se uns aos outros e aos papéis que cada um desempenha no grupo, para o bem do mesmo. E quando um deles adoece e sabe que vai morrer, todos o acompanham e ele procura um sítio onde outros poderão já ter morrido e ali fica.

Esses locais são tão importantes para os elefantes, que eles, nas suas rotas migratórias, quando passam num lugar onde um dos seus morreu, param e aí permanecem por alguns momentos, como que recordando a vida dos que fizeram parte da sua família. E choram. Não esquecem e daí virá a expressão que tantos usam sem saber porquê: têm memória de elefante. Não dividem para reinar, como se diz popularmente, não diminuem o outro que está ao seu lado, pelo contrário: entreajudam-se e substituem-se, por exemplo, no cuidado das crias, se alguma fêmea morre.

São verdadeiramente fraternais e entendem a hierarquia, não como laços de poder e submissão, mas de organização e de delegação de responsabilidades, laços que estão associados à idade, à sabedoria, ao coração. São seres sensíveis e simpáticos. Mas capazes de uma fúria sem tamanho, quando têm de defender os seus. Individualmente são seres imponentes, mas coletivamente são muito mais que uma manada.

Tenho a certeza que, agora, após a minha descrição, alguns leitores já se identificarão com estes animais e poderão até pensar: mas eu também sou assim e é assim que vivo. E sei que muitos o farão de verdade. Mas pergunto-me: não diremos, tantos de nós, que somos desta maneira, leais e simples e, na verdade, agimos como os elefantes apenas e só em algumas circunstâncias, em momentos muito específicos, esquecendo que quem está connosco pertence à nossa espécie e que a todos os deveriam ligar laços fraternais?

Não penso sequer em situações extremas de guerra, de violência entre grupos, de violência doméstica – que ainda consegue ser algo mais distante do que os elefantes alguma vez fariam -, mas de circunstâncias comezinhas, que no dia-a-dia afetam o nosso ânimo, a nossa motivação e que, se tivéssemos a gentileza de um elefante nunca repetiríamos.

Não choramos como os elefantes, com emoção pura e memória infinita. Choramos sim e muitas vezes as dores que criamos. Choramos, não porque somos parte desta família que é a Humanidade, mas porque egoistamente queremos estar sempre na frente da manada, sempre impondo o passo e não percebendo qual é verdadeiramente o nosso espaço e que todos temos a mesma importância. Choramos, porque não somos humanos de verdade, como os elefantes são elefantes de verdade.

Os olhos pestanudos e grandes de um elefante visto de perto, no seu ambiente natural, são de uma intensidade imensa. E com os nossos olhos humanos bem abertos e a curiosidade de uma garota pequena rapidamente somos capazes de ver uma verdade indiscutível: há lágrimas que só os elefantes entendem.

Se acreditasse na reencarnação (não acredito) gostaria de voltar como um elefante. O único medo que teria era de nós, humanos, que os perseguimos e dizimamos, como a tantas outras espécies, sem percebermos que o cuidado da natureza é a única garantia que teremos de nos manter como espécie.

A todos um Santo Natal e um excelente 2020! Se nos encantarmos pelos elefantes, talvez o ano nos traga surpresas grandes e majestosas! E sei que assim será!

 

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira
É licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Universidades de Lisboa e Algarve e mestre em “La Educación en la Sociedad Multicultural” pela Universidad de Huelva.
Desempenha as funções de coordenadora do Gabinete de Informação e Relações Públicas da Câmara Municipal de Silves e é assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, com quem colabora, integrando também a equipa da Pastoral do Turismo.

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