Do espírito Leader às iniciativas DLBC: uma leitura crítica da inteligência coletiva territorial

Há uma memória e uma inteligência coletiva territorial formadas entre 1991 e 2016 por ação dos vários programas aplicados

No universo do desenvolvimento local e rural, encontramos diversas estratégias coletivas, cooperativas, municipais e associativas e, em particular, salientamos as associações de desenvolvimento local (ADL) que lideram os grupos de ação local (GAL) no quadro dos programas nacionais de desenvolvimento rural.

Estas iniciativas em espaço rural revelam atributos interessantes em matéria de inteligência coletiva territorial (ICT).

Procuro ser um observador atento de alguns Grupos de Ação Local (GAL), das suas estratégias de desenvolvimento local e, em especial, das suas propostas de desenvolvimento local de base comunitária (DLBC) para o período 2014-2020.

Vejamos alguns aspetos mais particulares ligados com a emergência da inteligência coletiva territorial das ADL/GAL:

A história é bem conhecida. Nos últimos 30 anos, percorremos o caminho que nos trouxe do “Programa de Iniciativa Comunitária Leader até à abordagem Leader no quadro dos programas nacionais de desenvolvimento rural”.

O programa Leader nasceu em 1991, gerou 20 Grupos de Ação Local (GAL) no primeiro período entre 1991-1993, 48 GAL no segundo período entre 1994-1999 e 52 GAL no terceiro período entre 2000-2006.

Com o fim do programa Leader em 2006 seguiu-se a “abordagem Leader” no quadro da programação 2007-2014 e no âmbito do eixo 4 do programa de desenvolvimento rural.

Estamos no quinto exercício de programação e execução de fundos estruturais europeus (2014-2020). Na minha modesta opinião vamos cometer pela quinta vez consecutiva o mesmo erro de avaliação e planeamento estratégico em matéria de agricultura, desenvolvimento rural e administração do território. De facto, sem uma vigorosa política de desenvolvimento regional ao nível das NUTS II, faltará sempre um centro de racionalidade a uma escala suficiente para dar profundidade, espessura e continuidade a uma política integrada de desenvolvimento territorial.

Tudo o que fica abaixo desta linha de intervenção NUTS II, nos planos local, intermunicipal e sub-regional, não tem a consistência e a sustentabilidade suficientes para inverter a tendência pesada de abandono e desertificação que se verifica há décadas em muitas regiões e concelhos de Portugal. Para as câmaras municipais, porém, este “parece ser” o melhor dos mundos, pois ficam investidos em pivots de distribuição de fundos via associações de municípios, empresas e fundações municipais, associações de desenvolvimento local e comunidades intermunicipais. Por outro lado, estigmatizámos de tal modo a “questão regional” que qualquer evolução nessa direção se assemelha a uma “desmunicipalização perigosa”.

 

O período 2014-2020 e algumas dúvidas que permanecem

Para o período de programação 2014-2020 permanecem algumas dúvidas que, de resto, me foram confirmadas por alguns interlocutores ADL, eis as principais:

– Uma programação muito orientada para “maximizar gavetas de financiamento”;

– Uma excessiva municipalização das estratégias e dinâmicas de investimento;

– As novas orientações pró-agricultura não são facilmente apropriáveis pelas ADL;

– A desvitalização técnica das direções regionais de agricultura é um problema real;

– A repartição de tarefas entre atores associativos e institucionais não é muito clara;

– As ADL, elas próprias, assistem a uma desqualificação do seu quadro técnico;

– As parcerias locais são um simulacro de participação e precisam de ser dinamizadas;

– Os GAL/ADL precisam de mais criatividade para atrair atores exteriores às regiões;

– Os custos de contexto ligados à territorialização das políticas públicas são um labirinto.

Se tivermos presente, na nossa análise, este enquadramento policontextual pouco acolhedor vamos perceber mais facilmente a transição do “Programa Leader” para a “Abordagem Leader” e, em particular, a sua última fase, os programas denominados “desenvolvimento local de base comunitária” (DLBC) que visam promover, em territórios específicos, a concertação estratégica e operacional entre parceiros, focalizada no empreendedorismo e na criação de postos de trabalho.


Inteligência coletiva territorial, algumas conclusões muito preliminares

Das conversas que mantive com muitos GAL em todo o país, o que se pode recolher desde já pode ser descrito e resumido do seguinte modo:

1) Há uma municipalização do “sistema GAL/ADL”, mais evidente a norte, menos evidente a sul, o que condiciona as estratégias de desenvolvimento local,

2) Há uma periodização do ciclo de vida dos GAL/ADL que acompanha a sucessão dos diferentes programas Leader, com mais autonomia até ao Leader + e menos autonomia com os “programas nacionais” de desenvolvimento rural;

3) As contribuições são modestas na sua expressão quantitativa ou financeira, mas o valor imaterial supera de longe o valor material da “produção local”, uma contribuição nem sempre reconhecida;

4) As parcerias locais são “um quebra-cabeças”, mais um ritual para cumprimento de formalidades deliberativas e menos “um ambiente acolhedor” para a ICT, não obstante se reconhecer uma liderança colegial inter pares;

5) As lógicas de integração complementar entre programas são aquelas que os regulamentos em vigor, os recursos humanos e os meios financeiros disponíveis autorizam; de resto, não é possível fazer e aplicar programação plurianual com instrumentos frequentemente descontinuados;

6) O ADN dos “territórios GAL/ADL” está muito ligado aos recursos imateriais, em especial, a animação, formação e promoção, por um lado, as marcas, os eventos e o touring, por outro; os sinais distintivos territoriais têm cada vez mais a ver com estes valores intangíveis;

7) No que diz respeito às “limitações inerentes” ao associativismo local e territorial no período 1991-2016, as referências são quase unânimes: uma persistente “autonomia sob tutela ou condição”, uma subsidiação excessivamente institucionalizada, uma baixa qualidade do capital social disponível, um baixo efeito aglomeração das ADL, uma baixa empresarialização das ADL, uma baixa territorialização das políticas públicas regionais (o baixo efeito complementaridade e integração);

8) No que diz respeito à capitalização do “sistema GAL/ADL”, as referências são mais variáveis: a tutela municipal é um arranjo de conveniência, a empresarialização do GRUPO ADL não é uma ideia feita, o ajustamento do sistema GAL/ADL é necessário, mas o associativismo do 2º grau para criar musculo e mais centralidade não é ainda uma ideia adquirida, a imaginação criativa para operações inovadoras de engenharia financeira não é ainda uma prática comum;

9) Quanto ao futuro, as dúvidas prendem-se com a sustentabilidade do “sistema GAL/ADL/DLBC”, uma vez que o ajustamento operado durante o programa da Troika não é corrigido pela programação 2014-2020, onde se incluem as DLBC;

10) Finalmente, “o sistema GAL/ADL/DLBC”, apesar da preocupação com o empreendedorismo, o emprego e a inclusão social padece dos mesmos vícios que já antecipámos nas conclusões antes referidas.

 

Notas Finais: acerca da inteligência coletiva territorial (ICT)

Há, indiscutivelmente, uma memória e uma inteligência coletiva territorial (ICT) formadas entre 1991 e 2016 por ação dos vários programas aplicados: falamos de uma imagem de marca associada ao território LEADER/GAL/ADL, uma cumplicidade entre os parceiros GAL/ADL, um modelo LEADER/GAL reconhecido pelas populações e autoridades, alguns projetos emblemáticos que são o testemunho vivo dos programas aplicados, atores locais que são a memória viva desses programas, uma inteligência coletiva territorial que é testemunhada amiúde pelos herdeiros desses programas. Finalmente, para a ICT existem quatro riscos maiores que será preciso acautelar:

– Em primeiro lugar, a falta de aliados externos para formar uma “rede de assistência técnica” às DLBC a partir dos contributos das associações de agricultores, da administração regional da agricultura e dos institutos politécnicos e universidades; precisamos de um ator-rede dotado de ICT para este efeito;

– Em segundo lugar, precisamos de evitar a todo o custo a “descontinuação da política de coesão territorial”, sobretudo no que diz à integração/complementaridade dos seus diversos instrumentos e medidas de política; mais uma vez precisamos de um ator-rede dotado de ICT para o efeito;

– Em terceiro lugar, precisamos de evitar a todo o custo a “cacofonia territorial e o fracionamento dos interesses” que poderão advir de um congestionamento territorial formado por municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, GAL/ADL, CCDR/NUTSII, NUTS III, DLBC, AIDUS, etc; neste caso, precisamos de um ator-rede prestigiado que resista e minimize esta cacofonia territorial;

– Finalmente, precisamos de um “centro de racionalidade territorial” ao nível NUTS II que seja competente para pôr ordem no ruído territorial; é esta ICT do ator-rede NUTS II a chave para o sucesso das intervenções sub-regionais DLBC e é a este nível que é possível mobilizar uma capitalização própria para a “economia GAL/ADL”, com o contributo dos programas nacionais e do programa operacional regional e a intermediação de um conselho empresarial ao nível NUTS II; sem essa capitalização própria, o ator-rede subregional corre o sério risco de ser capturado pelo “ecossistema municipal”.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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