Turismo cultural, uma forma de turismo menosprezada?

A cultura viva, o artesanato, a culinária, as festas e as festividades, associados ao património construído são oportunidades de qualificação e enriquecimento

A “Grand Tour” do século XVIII era uma experiência cultural e educacional para uma elite europeia. Temos hoje uma panóplia alargada de “produtos culturais institucionalizados”, baseados sobretudo no património monumental. Sabemos que o turismo patrimonial é mais do que uma oportunidade económica, pois possibilita a reconstrução e a valorização pessoal da narrativa e da identidade coletiva.

Os “trendsetters” têm dado uma particular atenção ao turismo cultural a nível europeu e em termos internacionais. O seu desenvolvimento dá-se crescentemente em matérias diferentes e específicas, incluindo o turismo étnico, literário, criativo, culinário, industrial, imaterial… e associando estes nichos a instrumentos importantes para a capacitação económica e social, e política das comunidades.

Os impactos económicos e culturais do turismo devem ser assumidos. Sabemos que, tal como as demais, também o Turismo não é uma indústria “neutra” – vejamos desde logo os efeitos do anunciado fecho de uma base de low cost em Faro prevista para o próximo ano, a possibilidade de um Brexit sem acordo, que já está a mexer com o principal mercado do destino turístico Algarve (Britânico), a estabilização de mercados concorrentes, as próprias alterações e perturbações climáticas que incluem a falta de água na região, ou mesmo a previsão de retração económica e da assumida redução da procura turística no espaço europeu, que já estão a mexer connosco e a fomentar análises com algum dramatismo.

Aquelas visões mais negativas de uma monocultura intensiva e especulativa do “sol e praia” foram dando lugar a um turismo de nichos, em que a natureza, a cultura e o património emergem como os tais elementos diferenciadores dos destinos, atraindo novas audiências (ou públicos, ou consumidores, como desejarem).

O consumo cultural pelo turista é uma das formas que pode ser utilizada para a construção de pontes identitárias. Em alguns lugares, tem também determinado a viabilidade económica de práticas e técnicas tradicionais, ou até o resgate de memórias e de lugares em vias de extinção, pelo contributo dado para o seu registo e inventário, para a sua conservação e para a sua salvaguarda.

Mesmo em situações aparentemente de condenar, pela dimensão de perturbação das comunidades indígenas, alguns perspetivam o turismo com base na cultura, como uma experiência educativa, porque é um momento de autenticidade.

Outros autores, mais críticos, defendem que a cultura popular de um número expressivo de nações europeias, nas suas formas atuais, formou-se através de processos altamente ideológicos e políticos ao longo dos séculos XIX e XX e também da vaga de colecionismo e representação que ocorreu nestes períodos.

Certo é que os turistas procuram, na atualidade, destinos culturais e ambientais, onde o lugar e a identidade sejam as caraterísticas mais evidentes da estrutura social.

No caso do Algarve, sabemos que a dimensão “monumental” é insuficiente como força de atração principal. A cultura viva, o artesanato, a culinária, as festas e as festividades, associados ao património construído são oportunidades de qualificação e enriquecimento das nossas vidas.

É verdade que voltamos ao passado e a afirmações já feitas, mas também ao presente e à definição de um rumo (futuro?). Sim, a cultura é um elemento de criatividade e de inovação principal e temos hoje uma panóplia de instrumentos que nos podem suportar a demonstração deste valor que incluem: um hardware – infraestruturas, equipamentos, monumentos; e um software – eventos, histórias e imaterialidades, espaços multifuncionais, projetos. Temos gente com vontade, mas persistem algumas falhas e um défice de estruturação e de maior cooperação.

 

Ameno e Doce Algarve de todo o ano (1)

Esta reflexão trouxe-me vontade de recuperar o texto que uma amiga me fez chegar, com a data de 1964, que diz assim: “A indústria turística só é completa e pode ser duradoira quando acompanhada pela finalidade duma consciência e duma cultura esclarecida”. Esta afirmação é de Augusto de Castro, Diretor do Diário de Notícias naquela altura, e que ainda afirma: “o turismo não é um maná que caia do céu” e que as “circunstâncias geográficas e os atrativos do clima, as belezas naturais e artísticas são condições que, de per si só, não bastam e precisam de ser aproveitadas e valorizadas para se tornarem elementos não apenas de atração mas de fixação”.

Esta publicação de 1964 da Casa do Algarve em Lisboa propunha a criação do Conservatório Regional do Algarve e inclui factos muito interessantes para a história contemporânea do Algarve. O seu prefácio termina reconhecendo a “necessidade e urgência da criação no Algarve, de um Conservatório Regional, com sede em Faro (2), Conservatório onde, além da Música, se ensinem também a Arte de representar e a Dança, dado que todas as modalidades artísticas são necessárias para o fomento de diversões que prendam o turista culto”.

Uma visão que tem uma época e contexto; note-se que o primeiro grande hotel do Algarve – o Vasco da Gama, em Monte Gordo – data de 1960, o Aeroporto Internacional de Faro só viria a ser inaugurado em 1965, e que só em 1979 é tomada a decisão de criação da Universidade do Algarve.

Mas o destaque maior que, nesta publicação, gostava de evidenciar está na comunicação do Dr. António Quadros, no I Colóquio Nacional de Turismo, intitulada “Turismo e Cultura”, de onde, conhecendo a visão propagandística de então, citamos a primeira frase e outros excertos que vale a pena conhecer: “Entre os aspetos turísticos que mais convirá desenvolver nos próximos anos, figura em primeiro plano o cultural. (…) não são os hotéis, nem as estradas, nem as facilidades alfandegárias, mas sim aqueles centros de interesse que levarão pessoas de distantes terras a deslocar-se até junto de nós”.

Numa comparação com outros países, reconhece que “o nosso Inverno nada tem de aliciante, como se verifica pelo desolador espetáculo dos nossos hotéis vazios e das nossas estâncias de repouso mortas de inação. (…) Se o turismo não é meramente uma indústria, é justamente porque propicia uma irradiação intelectual que sem dúvida o transcende”.

Nem todas as ideias e conceitos farão sentido hoje, mas leia-se e reflita-se com as devidas adaptações: “aumentemos (…) a projeção da nossa cultura e do nosso espírito, revelando-a visivelmente perante os estrangeiros e perante nós próprios através dos meios que o substrato económico do turismo proporciona. Neste nível, turismo não é apenas indústria: é mais do que isso, é missão nacional e humana”.

Recordando a crónica extraordinária sobre os “Três Museus”, de António Barreto do jornal Público de dia 1 de Setembro, o debate público sobre estas questões não pode ficar refém de instituições, ou espartilhado entre políticos, técnicos ou académicos.

As instituições têm de ser espaços abertos que incitem à aproximação das pessoas, das suas histórias, das suas memórias e que partilhem emoções, para que, além de promotores de experiências e “vendedores de sonhos”, possam ser facilitadores de resolução de problemas e estrategas para os desafios que continuam a colocar-se.

Foram dados grandes passos no desenvolvimento local do hardware e alguns na testagem de novos softwares, mas há sempre novos caminhos a trilhar num mundo em constante mutação, onde persistem velhos problemas, mas onde todos os dias surgem novos.

 

Notas:

(1) Depois da Feira Medieval de Silves, das Calçadas de S. Brás de Alportel, dos Dias Medievais de Castro Marim, da Noite Branca de Loulé, entramos em setembro com a Feira da Dieta Mediterrânica em Tavira e o Festival F em Faro, entre tantos outros, sendo impossível referir todos. Em outubro é retomado o 365Algarve. Um calendário e uma programação que se deseja e espera que tenha uma crescente estruturação e comunicação cada vez mais regional.

(2) O Conservatório Regional só viria a ser criado oficialmente em 12 de novembro de 1973, por iniciativa de Maria Campina.

 

Autora: Alexandra Rodrigues Gonçalves
Professora Adjunta da ESGHT/Universidade do Algarve e Investigadora integrada do CinTurs

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