“Sou Quarteira”: o movimento que quer mudar a cidade e criar «os Dinos de amanhã»

Sul Informação entrevistou os quatro mentores do projeto

Na mente de muitos ainda estará a ideia, aparentemente irrefutável e imutável, de uma Quarteira que rima com delinquência e vandalismo. Foi essa a fama que a cidade ganhou, nos anos 80 e 90 e que jamais desapareceu. «Ficámos com isso nas veias, mesmo sem querer», confessa Dino d’Santiago. Ele, o quarteirense que é hoje um cantor e músico famoso, juntou-se a mais três jovens para mudar de vez este paradigma. E assim nasceu o “Sou Quarteira”, um movimento que quer desenvolver a cidade através da cultura. 

É de coração aberto que Dino recorda o “seu” Bairro dos Pescadores. Foi lá, naquela que era considerada uma das zonas com pior reputação em Quarteira, muito associada ao tráfico de droga, que o cantor cresceu. «As casas eram desde ali até aqui», diz, apontando.

Os anos passaram, Dino tornou-se um dos principais músicos da sua geração e até o Bairro dos Pescadores mudou. Ou melhor: desapareceu, por completo, após ter sido demolido.

Como uma fénix que renasce das cinzas, será, também a partir dali, que, até de forma simbólica, começará a transformação da “Nova Quarteira” que este movimento tanto deseja.

«Quando acabou o bairro, o meu sonho era ter uma casa aqui ao pé. Não a tenho, mas vamos ter um festival no local onde era o ponto mais crítico da cidade. E vamos fazer uma coisa de elevação para Quarteira!», diz Dino d’Santiago, em conversa com o Sul Informação.

 

Edição do ano passado, o ano 0 do projeto – Foto: Nash Does Work

 

O Passeio das Dunas, que deu lugar ao Bairro dos Pescadores, vai acolher o Festival “Sou Quarteira”, que começa esta sexta-feira, 16 de Agosto, e dura até sábado, dia 17. Pelo palco, vão passar nomes como Branko, Jimmy P, Plutónio, Mayra Andrade, Mundo Segundo & Sam The Kid ou o quarteirense Sacik Brow.

Mas este festival é apenas uma ínfima parte de todo o movimento “Sou Quarteira”.

Por exemplo, desde o passado domingo, quem passear pela cidade pode ser surpreendido por retratos de pessoas, colados em grandes cartazes, nas paredes.

São 15 “Heróis” de Quarteira, escolhidos pela população, fotografados por um quarteirense (Mike Ghost) e que mostram os rostos de pessoas que se notabilizaram – e que tanta gente conhece tão bem.

Elas são, por exemplo, Hélder Rita, pescador e fundador da Quarpesca – Associação de Armadores e Pescadores de Quarteira, o senhor Cunha, emblemático porteiro da Escola São Pedro do Mar, a professora Carla Candeias, que tantos jovens inspirou nas suas aulas de História, e até Anselmo Pereira, um ex-futebolista brasileiro que ganhou a Copa Libertadores, pelo Flamengo, e acabou a trabalhar em Quarteira.

«Na exposição, que está espalhada pela cidade, pensámos: vamos convidar as pessoas a descobrir outras partes de Quarteira a que, normalmente, não vão, como o bairro da Asa Branca. A ideia é que todos possam descobrir estes recantos. Ontem sentei-me a observar e vi como as pessoas passavam e paravam para ver as fotografias», conta Inês Oliveira, também da organização do “Sou Quarteira”, ao Sul Informação. 

Ela, que se considera uma «filha adotiva de Quarteira», nascida em São João da Madeira, recorda como, quando se fez os convites a estas pessoas para participar na exposição, a reação foi curiosa. «Achavam que era demais, que não mereciam tanto reconhecimento», diz.

 

 

Naomi Guerreiro, outra das organizadoras, complementa: «o Dino foi ter com o senhor Cunha para lhe dizer que era um dos selecionados. Recordo-me tão bem de que ficou extremamente emocionado».

Mas, e como surgiu todo este projeto? O “Sou Quarteira” nasceu de onde? Essa parte da história é contada por Miguel Jacinto, o único membro da organização que falta apresentar.

«O projeto surge de vários ângulos. Houve algumas conversas entre mim e o Dino, onde chegámos à conclusão de que era bom retribuir à cidade o que esta nos deu e construir uma plataforma criativa em Quarteira. Entretanto houve uma música criada por ele, chamada “Sou Quarteira”, que teve logo sucesso, e percebemos a unificação em torno desta máxima», explica o quarteirense, amigo de infância de Dino d’Santiago, ao Sul Informação.

«Depois, há dois anos organizámos uma passagem de ano aqui em Quarteira. Juntámo-nos, com as nossas diferentes capacidades, para criar algo mais sério. Apresentámos o nosso projeto e tudo arrancou assim», acrescenta, de sorriso no rosto.

Em todo este processo, houve uma grande lacuna – um «problema mesmo» – que encontraram.

«As pessoas viam Quarteira só como destino balnear ou tinham uma imagem errada da cidade e pensámos: como podemos trazer atividades culturais que venham mudar esta imagem? Este é o ano 1 do projeto, mas temos um plano de atividades anual e um modelo a três, cinco anos. A nossa ideia será, no futuro, conseguir criar outras atividades que não sejam só durante o Verão para que as pessoas venham à cidade devido a outros projetos», explica Inês Oliveira.

Em conversa com o Sul Informação, os quatro criadores do “Sou Quarteira” fazem questão de realçar o apoio inestimável da Câmara de Loulé, uma parceira que «desde sempre acreditou».

«Até nos disseram que foi o melhor projeto que já lhes apresentaram», diz Dino d’Santigo, orgulhoso.

É que este é um movimento que quer mesmo mudar a cidade e que até já fez uma previsão ambiciosa. E se Quarteira se tornasse um género de capital da cultura urbana daqui a 10 anos?

«É esse um dos nossos objetivos… Falamos de uma cidade mais desenvolvida, também com um turismo diversificado, cultural e com uma imersão social mais intensa», explica o cantor Dino d’Santiago.

Para isso, Quarteira joga com um fator muito favorável.

«A grande riqueza da cidade é juntar tantas culturas. Eu sou exemplo disso: os meus pais são de Cabo Verde. Em Quarteira, nunca senti racismo. Poderia haver divisões, mas relacionadas com gostos – eu sou mais do rap, tu mais do rock ou do punk. Nunca existiu aquele separatismo racial de outras cidades», conta Dino.

São, todavia, as vivências e as experiências das grandes metrópoles que os quatro organizadores do movimento “Sou Quarteira” trazem para a cidade algarvia. Miguel e Inês moram em Londres; Dino e Naomi, em Lisboa, mas a verdade é que nunca perderam as ligações à sua cidade, seja de nascimento ou de coração.

«Temos que nos lembrar de que Quarteira é fruto destas misturas. São as pessoas que vêm, as que vão. Há cá tantas culturas… Só que, quem só vive aqui, não consegue infelizmente desenvolver tanto a cidade. Parece que ficas preso a estas fronteiras, entre o mar e as Quatro Estradas. As visões externas é que vão levar Quarteira a ir para a frente e é isso que nós também trazemos», considera Dino.

Outra das iniciativas neste arranque do projeto é a produção de um documentário sobre Quarteira. Um excerto já foi apresentado, na passada quarta-feira, mas, a nível nacional, o lançamento será em Outubro.

Ao longo da película, mostra-se a «diversidade de talentos que há em Quarteira» para dar o exemplo de como existem forças vivas na cidade. Gente com saber e de saberes.

 

 

«No documentário, mostramos as diferentes perspetivas de Quarteira, pela voz dos locais, que criam a própria narrativa. Há Quarteira num lado mais do que uma cidade de Verão, com os pescadores. Também abordamos a questão de como é crescer nesta cidade, o sentido de liberdade, de mistura e de que maneira isso forma as pessoas e as influencia», conta Miguel Jacinto.

No fundo, com tudo isto, o grande objetivo é mostrar que é possível criar ideias em Quarteira. De raiz. «Quatro pessoas um bocadinho malucas foram para a frente com isto e só queremos que sirva de exemplo», diz Inês Oliveira, para riso geral.

«Há um sentido de urgência em Quarteira. É uma cidade que caiu no esquecimento, mas que precisa de amor e de uma nova dinâmica. Isso é partilhado por todos os quarteirenses e, por isso, quando veem um projeto chamado “Sou Quarteira”, até podem estranhar ao início, mas depois aceitam e juntam-se ao movimento», realça, por sua vez, Miguel Jacinto.

E nada melhor do que Dino d’Santiago – quiçá um dos mais ilustres quarteirenses de sempre – para tomar o pulso ao que é ser-se desta cidade.

«Lutamos, somos bairristas e muito persistentes. O quarteirense tem de ser mimado, mas, se te abre as portas, nunca mais as fecha. Tem que se ir devagarinho, com muita dedicação, mas, com este projeto, acho que vamos conseguir abrir essas portas», atira.

Miguel Jacinto não tem dúvidas: «este movimento é sangue novo para a cidade. O impacto já é notável, pela quantidade de reações, de conversas. O impacto a longo termo, então, nem se fala».

«Este é um processo educativo que demora tempo. Transformar a imagem da cidade já o estamos a tentar fazer. Diversificar as experiências de Quarteira, idem. Dinamizar as instituições locais, dar-lhes as ferramentas para realizarem os seus sonhos é o mais difícil, mas estamos a começar. Precisamos do povo connosco. “Sou Quarteira” é uma transformação de baixo para cima, para criar novas oportunidades», acrescenta.

Olhando para o amigo de infância, que embarcou com ele em mais uma aventura, desta vez de dinamização da cidade de ambos, Miguel conclui.

«Isto pode ser um ponto de partida para os Dinos de amanhã».

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