O estranho caso dos carrinhos de supermercado

Gostava mais de acreditar, como o nosso imortal Padre António Vieira, que «a boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor»

Não precisa ser Verão para que aconteça, mas a probabilidade, na verdade, aumenta na mesma proporção em que cresce o número de pessoas que passam a residir por estas terras do sul.

De repente, numa qualquer fila de supermercado, começam a aparecer carrinhos sozinhos, mas anafados e completos, recheadinhos até ao topo de todo o tipo de pacotes e pacotinhos, latas e afins. Ninguém os acompanha. Ficam ali, em fila, à espera que tudo ande e avance e que, num qualquer passe de magia, todos esses víveres saiam de dentro de si, pulem para o tapete da caixa e uma sorridente (ou não!) funcionária os registe, para poderem ser pagos.

O problema é quando aparece alguém que empurra o seu carrinho, na ânsia de que o mesmo não se sinta abandonado e quer, no seu afã, despachar-se e pagar as suas compras. Aí, sim, podem acontecer diversas coisas estranhas e complicadas.

Por exemplo, pode subitamente aparecer o “dono” das compras do carrinho abandonado na fila, que surge do nada, como se nele se despertasse um instinto de autopreservação e, num ápice aí está, a colocar a sua mercadoria depressa, depressinha em frente à operadora, sorrindo confiante, porque o seu carrinho, certamente tendo ganho alma e coração e cérebro, ali estava, com procuração para o representar.

E então, a restante fila das duas, uma: ou se cala, porque o calor é muito, as noites são longas e as caipirinhas estão à espera e amanhã, para quem está de férias, o sol brilha novamente na praia; ou há alguém, cansado do seu dia de trabalho (que nunca ninguém sabe se é doce ou amargo), saturado das filas no trânsito que aumentaram, já se sabe, das dificuldades para estacionar, para comprar pão, para ser atendido nos hospitais, para se sentar num qualquer lugar público, para ir ao seu restaurante favorito, que agora nem mesmo com reserva é possível frequentar, há esse alguém que resolve argumentar: «Olhe, desculpe, mas esse carrinho estava sozinho quando cá cheguei!»

E aqui começa a carga dos trabalhos, como se diz em bom português! Se os interlocutores forem acalorados como a meteorologia algarvia, o tom sobe e revela num instante a falta de paciência que vai ganhando espaço entre os que por cá vivem e a necessidade dos que apenas nos visitam de mostrarem que chegaram.

E há argumentos para tudo, que na maioria dos casos não batem certo com a realidade visível e comprovável: «Eu estava mesmo aqui ao lado (Onde, se o carrinho estava abandonado e só?)! Tenho o meu filho pequeno e tenho prioridade (E o filho está sentadinho, muito feliz, ao colo do avô, a comer um gelado no café que fica na entrada do supermercado…)! Eu tenho tanto direito como o senhor de estar aqui (Onde? Não se via em lado nenhum…)!».

Pois é, e onde fica a funcionária da caixa, que lá está para representar a instituição que lhe dá emprego e que ganha o dinheiro do lucro resultante de todas aquelas compras que rolam pelo tapete ao som da discussão?… Fica calada. E se for questionada responde muito solícita e cheia de razão: «Não tenho ordens para intervir! Se quiser, chamo alguém!»

E as compras passam, passam, passam e daí a nada, o carrinho de supermercado, que antes estava abandonado na fila, é de novo largado, mas no lugar onde novos compradores o irão buscar para o voltar a encher e ele ser feliz, como qualquer carrinho de supermercado que se preze, cujo objetivo é abarrotar-se, atafulhar-se, preencher-se até ao topo.

E o remate é muitas vezes o mais perfeito de todos: depois de tudo pago e arrumado nos sacos (que na maioria das ocasiões são de plástico, claro está, que cuidar do ambiente é muito importante e fica mesmo bem é na televisão), com o carrinho já no seu novo posto, o seu dono de há minutos comenta enfadado e ofendido: «Estes algarvios são mesmo antipáticos! E deviam era estar calados, porque nós é que lhes damos o dinheirinho todo para eles viverem!». E ali vão eles, novamente sorridentes e felizes, para mais um tempo de ócio passado no Algarve.

Silêncio.

Robert Louis Stevenson, quando escreveu o seu O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde em 1886, apesar de o ter centrado na questão da dualidade de personalidade, de ter feito descrições que levam os leitores a perceber os contrastes, de ter criado uma história com um ritmo magnífico e que permanece como um ícone da cultura pop, nunca imaginou que, num qualquer supermercado, mais de cem anos depois de a ter editado, ela permaneceria atual e passível de ser aplicável a muitas leituras e análises a propósito de filas e de carrinhos de compras: será que também nestas histórias o bem e o mal não podem ser separados, antes se intercetam, mesclam, ganhando nuances e contornos que não são nem pretos, nem brancos?…

Serão os donos dos carrinhos como o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, numa hora calmos e pacientes e noutra seres irados e estridentes, ou serão os próprios carrinhos objetos com um lado perverso e outro brincalhão, que gostam de ver o supermercado pegar fogo?….

Diderot dizia que «quanto mais um povo é civilizado, educado, menos os seus costumes são poéticos», o que pode trazer para este estranho caso dos carrinhos de supermercado uma dimensão filosófica importante, pois pode ser que seja necessário darmos permanente conta do nosso lado mais “selvagem” para mantermos e vivermos a riqueza que é a arte e a poesia e o bom humor.

Mas eu gostava mais de acreditar, como o nosso imortal Padre António Vieira, que «a boa educação é moeda de ouro. Em toda a parte tem valor».

Se assim fosse, era possível que vivêssemos num verdadeiro, genuíno amor pela poesia e pela arte e uns pelos outros, pois que as boas maneiras e o protocolo simples, que nos permitem relacionarmo-nos em harmonia, seriam fonte de inspiração suficiente para existirmos felizes. E os estranhos casos dos carrinhos de supermercado e outros que tais não seriam jamais inspiração para textos como este.

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira
É licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Universidades de Lisboa e Algarve e mestre em “La Educación en la Sociedad Multicultural” pela Universidad de Huelva.
Desempenha as funções de coordenadora do Gabinete de Informação e Relações Públicas da Câmara Municipal de Silves e é assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, com quem colabora, integrando também a equipa da Pastoral do Turismo.

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