Medronho, o drama da serra de Monchique que até resiste ao fogo, agora é livro

Um livro, que tal como o medronho que o motiva, tem «49 a 52º % Vol. Alc.»

«Nesta serra passa-se este drama não burguês: duas famílias equidistantes em terras e riqueza, inimigas em medronho, impulsionadas por um terrível incêndio continuam a exercer o ódio e a praticar o rancor. Foi o fogo que ampliou a antiga discórdia». Estas palavras, escritas por Sandro William Junqueira, são de Filomena Capote, encarnada pela atriz Rita Rodrigues, no espetáculo «Medronho – A Noite das Facas Longas, Tudo numa noite», que se estreou a 31 de Março de 2017, na destilaria Lagar, no Alferce.

«O medronho faz todos iguais, os ricos e os pobres, faz os homens caminhar de gatas como cães e não teme ninguém. Ataca gordos e magros, vence guerreiros e apanha cobardes. O medronho derrota todos os homens. Entra-lhes na garganta como uma palavra ao contrário, seca-lhes o esófago queimando tudo à sua passagem e enquanto desce para as tripas sobe para a cabeça». Aqui é Afonso Cruz que escreve, para o espetáculo «Medronho – Mulheres da Serra #3, Tapa-me com os teus olhos fechados», que se estreou a 22 de Março da 2018, na Casa do Medronho, em Marmelete, com interpretação de Marta Gorgulho.

Estes são apenas dois excertos dos textos escritos por Sandro William Junqueira e Afonso Cruz para o ciclo de espetáculos «Medronho», promovido ao longo de três temporadas pelo projeto Lavrar o Mar, no concelho de Monchique, e integrado na programação do 365Algarve.

As palavras dos dois escritores foram agora editadas no livro «Medronho – Teatro no Alto da Serra de Monchique e nas Destilarias», uma edição cuidada produzida pela empresa algarvia (de Aljezur) 1000olhos, com fotografia de João Mariano, que acompanhou a par e passo todas as representações. A edição foi paga pela Câmara Municipal de Monchique.

O livro foi lançado na passada sexta-feira, dia 21, no Monte da Lameira, entre Monchique e Alferce, que, há menos de um ano, foi em grande parte devastado pelo terrível incêndio de Agosto de 2018, deixando miraculosamente quase intactas as já seculares casas da quinta.

Para o lançamento, no grande edifício onde funciona a destilaria e que foi palco das representações, o espaço, apesar de amplo, foi pequeno. Naquela sala enorme, iluminada apenas pela luz dos candeeiros a petróleo, ao cair da noite, estavam mais de 70 pessoas e houve mesmo gente que ficou de pé, para ter o privilégio de receber um dos exemplares do livro, obter autógrafos dos dois autores e falar com eles.

De tal forma que Sandro William Junqueira brincou: «vou passar a fazer os lançamentos dos meus livros aqui, porque em Lisboa nunca vai tanta gente».

 

Sandro William Junqueira e Afonso Cruz

«Este livro é o resultado de três anos de trabalho», começou por dizer Giacomo Scalisi, diretor artístico do ciclo «Medronho». «Ontem à noite tinha o livro nas mãos e, quando o li, as palavras tinham a voz daqueles atores», recordou, sublinhando o trabalho do grupo que, ao longo de três temporadas, deu corpo às personagens do «drama não burguês», daquela espécie de Romeu e Julieta da serra de Monchique, sobre os Capote e os Monteiro, as tais « duas famílias equidistantes em terras e riqueza, inimigas em medronho».

«Muita gente nunca tinha entrado numa destilaria», antes destas representações de «Medronho». «Acabámos por criar um público muito fiel, que nos acompanhou ao longo destes anos».

O livro apresenta todos os textos que foram sendo encarnados pelos atores Estêvão Antunes, Leonor Cabral, João de Brito, Rita Rodrigues, Pedro Frias, Marta Gorgulho, Conceição Gonçalves, António Fonseca e Neusa Dias. Todas essas palavras foram também traduzidas para inglês, já que a obra é bilingue. E essa tradução foi «um trabalho titânico», porque se trata de «textos difíceis», como salientou Giacomo Scalisi.

«A serra [de Monchique] é um lugar muito particular, onde há este ritual alquímico que é muito antigo, muito forte. E foi isso que tentámos ir buscar para estes espetáculos, mas sem desnaturar o ritual alquímico do medronho, sem criar um voyeurismo», explicou o diretor artístico.

«Era Dezembro, um sábado à tarde, com sol, quando o Giacomo me telefonou». É assim que Sandro William Junqueira recorda o convite que lhe foi feito para escrever para este projeto. Depois, «debrucei-me sobre este território, conheci pessoas maravilhosas, foi uma aprendizagem muito grande, que me fez sair daqui mais rico», acrescentou.

«Lembro-me da nossa primeira visita aqui, em todas as destilarias bebemos um medronho…». «Não sei como te lembras disso!», comentou Afonso Cruz, arrancando uma gargalhada ao auditório.

«Depois, aconteceu o incêndio. Voltar aqui depois foi muito duro, falar com o Márcio, com o Zé Paulo…»

Afonso Cruz concordou: «a segunda leva foi mais complicada, por causa da tragédia do fogo. As pessoas ficaram muito revoltadas, o que é natural».

«Há quem diga que a ficção é um escape para a crueldade da vida. Não concordo nada. Nós, na verdade, passamos a maior parte do dia a ficcionar, a imaginar. Alguma rezão deve haver para isto, até porque se morre mais nos livros do que na vida», começou por dizer Afonso Cruz.

«O que aconteceu com o fogo foi a verdade. Quando as coisas começam a arder, a verdade salva-nos, e para nos salvarmos temos de imaginar, de ficcionar o que é que pode acontecer. Para sobreviver à tragédia e sobreviver à verdade».

Também Afonso Cruz admitiu ter-se rendido «ao mundo fascinante da destilação do medronho». No entanto, para o escritor, «mais do que saber fazer, é muito melhor bebê-lo, e é ainda melhor escrever sobre ele».

 

Giacomo Scalisi

Na mesa, estavam também alguns dos atores que foram dando voz e corpo às personagens deste Romeu e Julieta monchiquense. Lá estava João de Brito, que participou na primeira edição, na Adega do Lagarto, bem como Rita Rodrigues. «Sou atriz, mas vivo há oito anos no Algarve, no campo, e por isso para mim foi muito bom existir o Lavrar o Mar».

Rita, que foi Filomena Capote, a Julieta monchiquense, recordou: «apaixonei-me pelo texto. E pensei: tenho de tornar meu este texto. Foi isso que tentei, no trajeto entre Monchique e Barão de S. Miguel», dos ensaios para casa.

Leonor Cabral, que participou na primeira e na segunda edição, em Alferce e em Marmelete, confessou detestar aguardente…«e quando cá estive bebi muitos medronhos». Mas «o mais incrível foi descobrir que o medronho é uma bebida para ser partilhada. O medronho tem tudo o que é de bom, de mágico, de misterioso e até de mau, aqui da serra».

Conceição Gonçalves apresentou-se como «algarvia e fiel espectadora da primeira edição». «Um ano mais tarde, o Giacomo convida-me para me juntar a eles e fazer o texto do Afonso Cruz. Não, já não consigo decorar! Eu, que me tinha afastado das andanças do teatro, disse-lhe que não. Mas o Giacomo teve a sensatez de me dizer: respondes-me depois».

E a resposta acabou por ser positiva: «foi um desafio muito grande». Conceição Gonçalves diz que, «além do encontro com estas mulheres», guarda na memória «as mãos do destilador, que são pergaminho. Era a vida toda que estava impressa naquelas mãos».

João Mariano tem sido o fotógrafo encarregado de registar, em imagens, os momentos vividos nas destilarias e nos outros espaços por onde passou o projeto «Medronho». Para ele, foi «um privilégio muito grande ter podido acompanhar este projeto» e ter podido fotografá-lo, «em condições muito difíceis», nas destilarias iluminadas apenas pela luz ténue dos candeeiros a petróleo e das velas ou sob a chuva. Mas o trabalho daí resultante e que se pode ver agora no livro faz jus à qualidade imensa do que se passou naquelas representações.

«Este projeto é a revisitação de meu projeto de 1997, “Alambiques & Alquimistas”», recordou ainda João Mariano, cuja empresa 1000olhos foi a responsável pelo design do livro. «Temos como ponto de honra trabalhar para a região». E fazem-no muito bem.

José Paulo, dono do Monte da Lameira, sublinhou, por seu lado, que ser palco de alguns dos espetáculos «é mais um marco na história deste monte», onde já se produz medronho há mais de um século. «O primeiro apontamento que descobri é de 1893, da venda de almude e meio de aguardente de medronho, por 7 reis e 60 centavos». A casa «tem à volta de 100 anos de construída».

«Daí para cá, a Lameira tem sido sempre uma referência» na produção da aguardente de medronho. Aliás, ainda recentemente a quinta tinha sido palco de uma inovação, o plantio de medronheiros clonados. Mas o incêndio de Agosto passado deu um rude golpe na produção, queimando tudo. Só que José Paulo não baixou os braços: «os medronheiros queimados já estão todos limpos. Daqui a dois, três anos, estaremos a recomeçar».

É esta resiliência, esta capacidade de olhar a besta nos olhos e recomeçar, que passa pelos textos de Sandro William Junqueira e Afonso Cruz, agora editados em livro. «Estas árvores atravessaram o inferno. E agora ressuscitam. Ali ao fundo. Conseguem ver? O preto erguido pelo simples esforço da erva. É simples. A natureza faz as coisas porque pode. Depois a vida encontra sempre uma maneira. Preto e preto e preto para depois ficar tudo verde (…) Quando ficar tudo verde os pássaros hão de voltar».

 

«Estas árvores atravessaram o inferno. E agora ressuscitam»

Rui André, presidente da Câmara de Monchique, entidade que tem apoiado o projeto «Lavrar o Mar» desde o início, «ainda antes de haver o dinheiro do 365Algarve», e que agora paga a edição do livro, agradeceu a Giacomo Scalisi e a Madalena Victorino o facto de terem tornado a sua terra «um destino cultural a nível nacional, o que era impensável há uns anos».

O autarca salientou que «estes territórios têm de ser vividos o ano todo» e os espetáculos do Lavrar o Mar é isso mesmo que promovem, para mais porque envolvem a comunidade, «os idosos e os mais jovens».

Voltando-se para os dois escritores, Rui André disse: «tudo o que escreveram tem, feliz e infelizmente, pouco de ficção». A serra é mesmo assim. «No tempo dos fogos, os velhos morriam muito mais, não porque perdessem a vida, a vida física, mas tudo o que construíram. Se eram poupados pelas chamas, era apenas para assistirem à destruição de tudo aquilo em que transformaram a sua carne, o fruto do seu trabalho», escreveu Afonso Cruz e disse-o Marta Gorgulho, em Marmelete, em Março deste ano, já depois do grande incêndio.

E este livro é «de ficção, mas também um documento histórico».

«Este é o fim de um ciclo, mas é também o início de outro. O Giacomo e a Madalena já estão a fervilhar de ideias!», anunciou Rui André. E assim será. Em Outubro próximo, logo se verá o que o quarto ciclo do Lavrar o Mar irá trazer à serra de Monchique e a Aljezur.

Como salientou Anabela Afonso, comissária da programação 365Algarve, «o Giacomo e a Madalena conseguem sempre surpreender-nos com o trabalho que fazem». Depois dos espetáculos, agora é o livro que bem o demonstra. Um livro que, como disse Madalena Victorino, «é a fixação daquilo que vocês viveram e que agora está tão bem traduzido aqui».

O livro «Medronho – Teatro no Alto da Serra de Monchique e nas Destilarias» pode agora ser comprado na Câmara Municipal de Monchique e ainda na loja da 1000olhos, a loja Aljezur SW Portugal (junto ao mercado municipal aljezurense), por 15 euros.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação e Lavrar o Mar

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