Turismo, imobiliário, gentrificação, passes sociais

Por causa desta porta de dupla entrada, é fundamental criar um ator-rede que seja capaz de articular todas as valências de política urbana anteriormente referidas

Um simples número anunciado na comunicação social e as circunstâncias em que tudo aconteceu deixou-me à beira de um ataque de nervos e forçou-me a escrever esta nota para o Sul Informação: na freguesia de Santa Maria Maior, do concelho de Lisboa, o número de alojamentos locais (AL) passou de 60 em 2013 para 4.500 em 2019.

O sistema de vasos comunicantes em que todos vivemos nem sempre nos deixa ver os efeitos não intencionais ou não desejados das nossas decisões.

Neste sistema de vasos comunicantes, são especialmente relevantes os processos de turistificação, reabilitação urbana e alojamento, gentrificação social e mobilidade urbana, sempre intimamente associados e, como sabemos, um território muito fértil para a ocorrência de efeitos cruzados, muitas vezes indesejáveis e imprevistos.

Quer dizer, sem um bom quadro de regulação das suas manifestações mais gravosas, temos aqui um campo imenso de conflito de interesses para a governação pública e privada, nacional, regional e local.

Como sabemos, na presente conjuntura, o ciclo económico está numa fase positiva, a turistificação pressiona o setor imobiliário, este pressiona a habitação e o alojamento nas zonas mais centrais dos núcleos urbanos, os residentes mais vulneráveis sentem-se, eles também, mais pressionados e ameaçados, finalmente, o passe social de baixo custo democratiza a mobilidade urbana e coloca o perímetro urbano ainda mais afastado do centro das cidades.

Tudo isto a um tal ponto que a Câmara Municipal de Lisboa já fala em criar zonas de contenção e plafonamento de alojamento local nos principais bairros da capital.

Não quero forçar a nota, mas um dos efeitos não desejados pode ser, justamente, o facto de o passe social de baixo custo, recentemente aprovado, ser lido e interpretado como uma das traves mestras do sistema de realojamento nas grandes áreas urbanas, sendo que as famílias de baixos rendimentos, os estudantes e os idosos são especialmente visados no sentido de deixarem a “porta aberta” aos turistas de ocasião, às agências imobiliárias e aos futuros residentes com maior poder de compra.

Para lá desta conjuntura favorável e dos seus efeitos cruzados mais imediatos, o mais importante, a curto e médio prazo, é perceber se este ciclo económico positivo pode ser monitorizado e instrumentalizado na boa direção, de modo a criar um círculo virtuoso de desenvolvimento urbano, de política de habitação no quadro de uma economia de rede e aglomeração que ligue os vários círculos para onde a cidade se estende e ramifica.

Nesse sentido, as perguntas mais pertinentes para uma política urbana de fins múltiplos parecem ser as seguintes:

– Estamos a promover e a praticar uma “ética do cuidado” no que diz respeito à sociedade sénior e aos idosos que viveram toda a sua vida nessas comunidades de bairro, com tudo o que isso implica, por exemplo, em matéria de programas de envelhecimento ativo?

– Estamos a criar instrumentos de política de habitação social, públicos e cooperativos, que protejam os grupos de menores rendimentos e que coabitem pacificamente, por exemplo, com instrumentos claramente capitalistas como é o caso das sociedades de investimento e gestão imobiliária (SIGI)?

– Estamos a tomar as medidas necessárias para diversificar e estabilizar a economia local, reduzir a sua sazonalidade e criar uma pequena economia de rede e aglomeração a partir de estímulos a pequenos negócios locais de proximidade?

– Estamos a fortalecer os atores-rede locais, as juntas de freguesia, algumas IPSS, uma associação de desenvolvimento local, as comunidades de bairro, no sentido de prevenir e monitorizar, justamente, os efeitos mais imprevistos e danosos que podem sempre ocorrer?

– Estamos a cuidar devidamente dos serviços de transportes, da sua polivalência e itinerância, sabendo nós que a mobilidade precária é uma constante nestas comunidades seniores de bairros de acessibilidade muito reduzida?

– Estamos a criar um quadro regulatório apropriado para prevenir e amortecer os efeitos não desejados de uma bolha imobiliária que pode rebentar a qualquer momento, de mais uma crise de crédito malparado, de mais violência gratuita sobre os idosos nossos concidadãos, estamos, finalmente, a ser poupados de mais hipocrisia social a propósito da intervenção das autoridades?

Os países mais desenvolvidos são aqueles que tratam com mais cuidado os seus grupos sociais mais vulneráveis e desfavorecidos. O número que referi no início é de tal forma assustador que não sou capaz de imaginar a violência social inaudita que se abateu sobre alguns milhares de moradores que, entretanto, abandonaram a freguesia.

É evidente que há muitas situações diferenciadas e aproveitamentos muito distintos das diferentes circunstâncias criadas, muitas delas exteriores à própria freguesia. Mas eu estou a pensar sobretudo nos mais desprotegidos, aqueles que têm pouca mobilidade, os que foram despejados, os que perderam os serviços de proximidade e os cuidadores informais da comunidade dos vizinhos, bem como o conforto de uma simples saudação ou cumprimento.

Por todas estas razões, eu insisto. Se desistirmos dos nossos concidadãos mais vulneráveis, estaremos a desistir de nós próprios. Falo da utilidade social do respeito que devemos e prestamos aos nossos compatriotas mais desfavorecidos.

É um imperativo categórico, de ordem ética e moral, cuidar daqueles que já cuidaram de nós, reforçando as comunidades de vizinhos e fregueses e as juntas de freguesia respetivas. Não podemos permitir que os nossos avós e os nossos pais, devido à nossa incúria e negligência, sejam as vítimas privilegiadas de alguns predadores sem escrúpulos que, à boleia da turistificação, vão gentrificando as comunidades mais tradicionais das nossas cidades e delapidando o seu património natural e cultural e, bem assim, os valores essenciais de uma sociedade de laços humanos.

 

Nota Final

Termino como comecei. Na freguesia de Santa Maria Maior do concelho de Lisboa, o número de alojamentos locais (AL) passou de 60 em 2013 para 4.500 em 2019. Há qualquer coisa de errado nestes números ou será uma grande oportunidade que se abre?

Por causa desta porta de dupla entrada, é fundamental criar um ator-rede que seja capaz de articular todas as valências de política urbana anteriormente referidas.

A Junta de Freguesia é um bom território de partida, mas nada impede que se criem comunidades de bairro reticuladas entre si e que a partir delas se constitua uma outra economia de rede e, também, uma pequena sociedade de partilha colaborativa. Eu quero crer que um compromisso é possível.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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