O Brexit, a Europa, Portugal e a Espanha

António Covas olha para algumas nuvens negras que pairam sobre o projeto europeu e em relação às quais o Brexit é apenas mais um sinal preocupante

Não vou pronunciar-me sobre os últimos episódios do Brexit, nem farei qualquer prognóstico sobre os próximos episódios.

Perante um espetáculo político-parlamentar pouco edificante, estamos cada vez mais próximos da linha vermelha do Hard Brexit, passados que são três anos sobre o referendo proposto pelo antigo primeiro-ministro britânico David Cameron, de má memória.

Em vez disso, prefiro olhar para algumas nuvens negras que pairam sobre o projeto europeu e em relação às quais o Brexit é apenas mais um sinal preocupante. Eis alguns tópicos que considero muito relevantes nesta altura.

1. A desvalorização geoestratégica das relações transatlânticas: a questão mais relevante é a de saber se nos encontramos num plano inclinado que irá colocar em causa a centralidade do mundo atlântico e ocidental ou se se trata apenas de uma conjuntura infeliz associada a maus protagonistas, digamos, uma crise passageira que as próximas eleições irão recolocar na direção certa;

2. A periferização de Portugal no quadro desta desvalorização geoestratégica: se esta má conjuntura se confirmar, a nossa zona económica exclusiva alargada, um trunfo muito importante para as nossas ambições, sofre imediatamente uma desvalorização ou, então, na melhor das hipóteses, teremos de redefinir, no plano bilateral, a nossa política marítima com os aliados transatlânticos;

3. A continentalização do projeto europeu e a maior centralidade da “Europa do Meio”: esta tendência parece irrecusável e a pressão constante que chega do lado leste, quer dos países de Visegrado (Polónia, Hungria, Eslováquia e república Checa), da Rússia, da Turquia e do Medio Oriente não deixa muito espaço para os “pequenos problemas transatlânticos” do mundo desenvolvido;

4. A grande linha vermelha da União Europeia, a repartição de recursos escassos entre política interna e política externa: esta relação está numa situação crítica e resulta ainda mais agravada pela eventual saída do Reino Unido, não apenas por razões orçamentais, mas, sobretudo, por se tratar de um parceiro fundamental em matéria de segurança e relações exteriores; este impasse tem um impressionante efeito de ricochete na política doméstica como é bem visível no caso da política de imigração e refugiados;

5. A geopolítica europeia em matéria energética não está ainda consolidada e pode gerar muitos equívocos: lembremos os fornecedores russos e os gasodutos que alimentam a Europa Central, os países do Médio Oriente, também alguns países da Africa do Norte (Argélia e Líbia), e agora, também, os EUA com os seus xistos betuminosos, além das energias renováveis que visam descarbonizar a economia mundial.
Lembremos que a Argélia abastece a península ibérica de gaz que atravessa o mediterrânico e entra em Portugal pelo interior de Espanha.
A continentalização da política europeia terá tendência para esquecer a política transatlântica também nesta matéria;

6. A geopolítica peninsular pode sofrer mudanças significativas, por duas razões: sem a presença do Reino Unido e a marginalização da vertente atlântica a política peninsular pode tornar-se menos melancólica e mais agressiva, tudo dependendo da evolução da situação político-partidária nos dois países; por outro lado, eventuais conflitos entre o Reino Unido e a Espanha por causa de Gibraltar pode causar a Portugal alguns embaraços e prejudicar as nossas relações conjuntas, por exemplo, na política latino-americana;

7. A pulverização do espetro político-partidário: as situações regionais ligadas ao independentismo, ao separatismo e ao autonomismo podem criar graves equívocos, e pode ser, mesmo, o Brexit a desencadear este movimento político com referendos na Escócia e nas duas Irlandas e com repercussões que são difíceis de antever em outros países europeus;

8. O mercado único digital e a guerra fria informática e cibernética: os factos recentes anunciam-nos a chegada iminente de uma guerra fria informática e cibernética e, a este propósito, esperamos que a política de relações transatlânticas nos poupe ao espetáculo triste de uma divisão profunda no universo ocidental acerca do cibercrime e da segurança coletiva europeia; a União Europeia joga aqui uma das suas cartas mais importantes para a continuação do projeto europeu;

9. A triangulação Portugal-Espanha-Reino Unido pode ser a fonte de alguns equívocos: se se confirmar a saída do Reino Unido podem irromper alguns acontecimentos menos agradáveis por razões que se prendem com a obtenção de vantagens futuras no relacionamento com o Reino Unido; as relações históricas entre Portugal e o Reino Unido podem não ser bem recebidas pela Espanha e por um efeito de ricochete “problemas menores” que permanecem, como Almaraz, os transvases, a poluição dos rios, a jurisdição de algumas ilhas, mesmo o estatuto de algumas cidades de fronteira, podem regressar inopinadamente.
Já para não falar do turismo, dos aeroportos que servem “os dois algarves” ou até de alguns benefícios preferenciais para atrair a sede de empresas que saem do Reino Unido por causa do Brexit;

10. A desafeição político-emocional do cidadão europeu acerca do projeto de União Europeia: a poucas semanas das eleições europeias o espetáculo do Brexit é de uma pobreza franciscana e é um mau cartão de visita para quem vai votar pela primeira vez.
O projeto europeu foi um empreendimento elitista, concebido de cima para baixo, que nas primeiras décadas beneficiou do apoio das classes médias, mas que hoje, face ao envelhecimento e empobrecimento de franjas importantes dessas classes, está, ele também, em crise profunda de afirmação.
A falta de líderes políticos acreditados é, porventura, a face mais visível do problema europeu.

Nota Final
Escrevo no dia das mentiras, dia 1 de abril. Tudo o que eu escrever a propósito do Brexit não deve ser, pois, levado a sério. Aliás, o cansaço é recíproco e compreensível.

O Reino Unido, que nunca morreu de amores pela União Europeia, merece uma ausência prolongada e nós, também, descansar da sobranceria do Reino Unido.

Todos, porém, parecem sofrer da mesma síndroma de fadiga institucional quando se invoca a imponência majestática do edifício europeu.

A poucas semanas das próximas eleições europeias o Parlamento Europeu prepara-se para receber, porventura, o maior contingente de deputados antieuropeus. Um facto absolutamente delicioso. Mas hoje é 1 de abril.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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