A descarbonização da economia e a mudança de paradigma

Doravante, a política pública do novo paradigma não pode ser ideologia, retórica, racionalidade fria e instrumental

Está aí, no espaço público, através dos respetivos membros do governo, o roteiro da neutralidade carbónica 2050 e o plano de transição da energia e clima 2030. Na Universidade do Algarve, houve ontem, dia 27, uma sessão de apresentação destes dois programas.

Sendo este o pretexto, vejamos, mais de perto, o contexto em que tudo isto acontece. Estamos na fase discursiva do problema, enunciando e anunciando programas, planos e roteiros. Eis, em minha opinião, algumas questões principais.

1. As grandes transições

Estão em curso quatro grandes transições. A transição climática, por virtude do aquecimento global, uma nova era climática que alguns cientistas designam de “Antropoceno”.
A transição energética em direção a um novo mix de energias renováveis e limpas. A transição para a era digital por via da desmaterialização de processos e procedimentos em praticamente todas as áreas.
Finalmente, a transição demográfica por via do crescimento natural e das migrações na grande aldeia global em que todos coabitamos.

2. A descarbonização da economia

A descarbonização da economia será acelerada pela transição digital (otimização de recursos) e acontecerá em todas áreas: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na descarbonização da administração pública e das cidades.

3. A nova economia da era digital

A descarbonização será acessível através da nova economia da era digital: na cidade inteligente, na rede de energia inteligente, na economia circular, na economia da biodiversidade e dos serviços ambientais, na economia verde e a alimentação, na economia azul, na economia da habitação e da bioconstrução, na economia da saúde e dos cuidados primários e na economia da proteção civil e da biossegurança.

4. A “guerra das inteligências” e a reconfiguração das políticas públicas

Para descarbonizar a economia é, também, necessário “descarbonizar o processo político” e chegar a uma nova composição de políticas públicas, ou seja, é necessário obter um consenso acerca do mix de três processos inteligentes: a inteligência racional e abstrata por via da governação algorítmica, a inteligência artificial por via da robotização e a aprendizagem automática, por último, a inteligência emocional, seja por via da abordagem da infoexclusão e iliteracia digital ou a diferenciação do destinatário final.

5. A ética do cuidado e o modelo de sociedade

É fundamental “descarbonizar as relações humanas”. As grandes mudanças enunciadas anteriormente não chegam a lado nenhum se não existir um consenso acerca de uma ética mínima, no plano da economia dos comportamentos e da vida de relação: saber cuidar, com empatia e compaixão, saber receber, com hospitalidade e boa convivência, saber respeitar e partilhar, saber cooperar, ser responsável e solidário.
Uma ética do cuidado para um novo modelo de sociedade.

Notas Finais

A mudança de paradigma significa que é preciso superar a “visão industrial” das políticas públicas, homogeneizante e normalizadora, geralmente dirigida a um destinatário abstrato e universal. Doravante, a política pública do novo paradigma não pode ser ideologia, retórica, racionalidade fria e instrumental, propaganda política, mera gestão de recursos e resultados.

Há, porém, um risco enorme neste exercício de grande alcance, a saber, os micro e pequenos projetos devem inscrever-se numa linha de coerência de médio e longo prazo sob pena de perdermos investimentos fundamentais. Este é o maior risco, a descontinuidade do esforço por razões que se prendem com crises financeiras de Estado ou por razões que têm a ver com a gestão do ciclo político-eleitoral.

Doravante, é um imperativo de sociedade passar da racionalidade fria e instrumental da governação algorítmica para o plano de uma ética prática do cuidado, de si, dos outros e da mãe-terra. Há um quotidiano para as pessoas concretas, tem de existir, igualmente, uma expressão concreta e material das políticas públicas do novo paradigma para este nível de cuidado e responsabilidade.

Uma última palavra para a “escola nova” do novo paradigma. A escola nova terá de contemplar e acolher as novas prioridades de cultura e civilização e dar corpo às três formas de inteligência antes mencionadas.

Por um lado, as ciências e a racionalidade analítica que lhe é inerente, por outro, a revolução digital e a transformação da racionalidade instrumental que é própria da inteligência artificial, finalmente, as artes e a cultura, mas, também, a ética do cuidado e o sentido da vida que são inerentes à inteligência emocional.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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