A Comissão Independente de Descentralização

A valorização do interior nunca acontecerá se não pegarmos no assunto pelo lado da “política de coordenação e desenvolvimento” levada a cabo pelas CCDR

É no mínimo uma curiosa coincidência, a publicação da lei nº 50/2018 de 16 de agosto, que aprova o quadro de transferência de competências para as autarquias locais e comunidades intermunicipais (CIM), e a Lei nº 58/2018 de 21 de agosto que cria a Comissão Independente de Descentralização (CID) junto da Assembleia da República, com a missão de proceder a uma profunda avaliação sobre a organização e funções do Estado, aos níveis subnacional e supramunicipal.

No passado dia 4, fui convidado para comparecer nesta Comissão e participar no debate que aí teve lugar, em nome da Universidade do Algarve. O que se segue é uma pequena síntese da minha intervenção.

O despovoamento e a desertificação do interior, ao acontecerem num país tão pequeno, são a prova provada de que o nosso modelo de desenvolvimento territorial está errado há muito tempo.

Uma boa cobertura municipal, uma boa cobertura associativa e uma rede de ensino superior bem distribuída não foram suficientes para inverter este estado de coisas, para além, obviamente, do volume de recursos financeiros canalizado pelos fundos europeus para todo o país.

As causas são muito variadas e incluem opções erradas de política agrícola e florestal, a desvalorização continuada de serviços públicos fundamentais, o acantonamento municipal num localismo inconsequente, a ausência de um federalismo municipal efetivo, uma política fiscal e financeira muito tímida face ao interior, uma política de ambiente que nunca compreendeu o pagamento dos “serviços ambientais” como instrumento de desenvolvimento e, por último, um “regime de coordenação e desenvolvimento” das CCDR que sempre deixou muito a desejar.

Agora que, pelas piores razões, se volta a falar de interioridade e desertificação é meu entendimento que a valorização do interior nunca acontecerá se não pegarmos no assunto pelo lado da “política de coordenação e desenvolvimento” levada a cabo pelas CCDR, num registo e num regime que eu aqui designo por “regionalização conservadora ou minimalista”.

 

Uma regionalização conservadora

Estou convencido de que os Planos de Ação Regional (PAR) do nível NUTS II, depois de devidamente revistos, são uma plataforma adequada para fazer a arbitragem regional entre níveis de governo e administração e aprofundar as funcionalidades da “regionalização administrativa minimalista”.

O objetivo principal seria eleger o nível NUTS II como o lugar central de uma nova racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, para desenhar uma estratégia de governação e articulação multiníveis: de um lado, os municípios e as comunidades intermunicipais (CIM), do outro, os planos de ação regional, o programa nacional de reformas e os programas europeus de coesão.

O nível NUTS II (CCDR) é aquele que, em minha opinião, reúne maior centralidade e racionalidade para modernizar as várias administrações do território e levar a bom termo as missões de articulação político-territorial que se impõem.

É certo, existe o risco real de que o governo central use a administração regional como instrumento direto de ação política e de gestão macroeconómica, como uma espécie de guarda avançada das suas políticas públicas de racionalização e ajustamento económico-financeiro em face do elevado volume de dívida pública existente.

Por outro lado, existe, também, o risco de a administração local usar as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados e projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.

Se este risco se confirmar, os níveis NUTS II e NUTS III poderão ser transformados numa arena de verdadeira cacofonia territorial, onde freguesias, uniões de freguesias, associação nacional de freguesias, municípios, associações de municípios, comunidades intermunicipais, associação nacional de municípios e administração regional irão esgrimir argumentos cruzados em nome dos únicos atores verdadeiramente legitimados, os municípios e o governo central.

No sentido de pôr alguma ordem nesta cacofonia territorial, uma hipótese possível é aquela que aqui propomos.

 

Uma metodologia operacional CIM

– O país constituiu muito recentemente 23 comunidades intermunicipais (CIM), a maioria delas coincidente com as NUTS III (sub-regiões das NUTS II); trata-se de um nível de programação, planeamento e implementação de políticas muito relevante para reconsiderar todo o sistema de desenvolvimento do interior;

– O país tem praticamente em cada capital de distrito um instituto politécnico ou universidade cujas áreas de influência e ação integram as CIM, as NUTS III e os Grupos de Ação Local do Programa de Desenvolvimento Rural; estas instituições precisam urgentemente de refrescar e renovar a sua missão e de ganhar um suplemento de legitimação num tempo histórico de grande exigência para o país;

– No mesmo âmbito territorial, o país tem associações empresariais, parques industriais e grupos empresariais que precisam urgentemente de fazer a sua prova de vida, de se recapitalizar e demonstrar que não são meros simulacros empresariais, mas verdadeiros projetos empresariais;

– A triangulação entre estas três entidades – as comunidades intermunicipais, os institutos politécnicos e universidades e as associações empresariais – pode e deve estar na origem de um “contrato de desenvolvimento” para as CIM para o próximo período de programação 2020-2030;

– O contrato assinado com a administração central firmaria os termos desse projeto de desenvolvimento territorial; para levar a cabo o projeto de desenvolvimento seria criada uma “estrutura de missão” com competências executivas no território da CIM/NUTS III;

– No mesmo contrato de desenvolvimento, ficariam os três promotores obrigados à apresentação de uma “proposta de reforma da administração pública intermunicipal” e de uma nova “cartografia de bens e serviços comuns” para o território-rede em formação;

– No âmbito desta filosofia de contratos de desenvolvimento para territórios-rede de nível NUTS III. o governo central apresentaria um quadro legal e financeiro de estímulos para o investimento empresarial, uma via verde para a cooperação e a extensão empresariais vocacionada para o desenvolvimento territorial do interior do país;

 

Transformar as CCDR em conselhos executivos regionais

No contexto descrito, o nível NUTS II seria considerado a sede apropriada para uma nova centralidade, racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, através da formação de um Conselho Executivo Regional, com a mesma lógica de funcionamento de um conselho de ministros e assente numa nova arquitetura para os serviços regionais, tendo como principais interlocutores as estruturas de missão das CIM/NUTS III. Um conselho de concertação regional completaria este quadro de governação territorial.

Esta é uma proposta minimalista, que poderá ser desencadeada ou despoletada sem grande turbulência legislativa, por exemplo, por intermédio de uma Resolução do Conselho de Ministros ou um simples decreto-lei. Trata-se, portanto, de uma proposta conservadora que vai buscar a sua justificação a uma forma de legitimidade funcional já existente.

Mas, obviamente, outras vias existem, baseadas, por exemplo, em procedimentos mais vinculativos de legitimidade político-eleitoral, como são a eleição indireta do presidente do conselho executivo em colégio eleitoral regional ou a sua eleição em sufrágio universal regional. Não foi, porém, aqui essa a opção.

 

Nota Final
Infelizmente, palavras de ordem como interioridade, desertificação, desenvolvimento, modernização, coesão, sustentabilidade, são, quantas vezes, mera publicidade enganosa que apenas visam criar um caldo morno de cultura de obediência e acomodação.

Os programas, os planos, as estratégias de todo o tipo não visam, muitas vezes, criar coerência e sentido nas intervenções territoriais, visam, antes, e insidiosamente, criar conformidade e condicionamento por razões que têm a ver com a nossa própria “conformidade e condicionamento” junto das autoridades de Bruxelas e Frankfurt e de outras capitais onde repousam as nossas dívidas públicas e privadas.

As restrições são tantas ou mais que os objetivos e a nossa margem de discricionariedade muito pequena. Para tranquilidade dos nossos credores.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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