Vem aí a inteligência artificial!

Será uma longa maratona, esta guerra das inteligências, com muitas ilusões e outras tantas alegrias

No passado dia 12 de dezembro, decorreu em Lisboa a II Conferência do Fórum Permanente para as Competências Digitais. Na ocasião, a Ministra da Presidência Maria Manuel Leitão Marques, em entrevista ao Público, anunciou que até ao fim do ano será lançado um concurso para mais 19 projetos de inteligência artificial.

Sem escamotear os riscos do desenvolvimento tecnológico e científico, assegurou que a ética tem de fazer parte da investigação e dos avanços neste domínio. É, pois, uma oportunidade para falarmos um pouco de inteligência artificial.

Um dos aspetos mais relevantes no grande universo da transformação digital diz respeito à inteligência artificial (IA), e mais especificamente ao desenvolvimento da sua conexão com a inteligência humana (IH). Nesta matéria, a literatura já consagrou a distinção entre uma “inteligência artificial fraca”, traduzida numa simples ligação mecânica à inteligência humana, e uma “inteligência artificial forte”, traduzida numa verdadeira hibridação com a inteligência humana e a caminho de uma outra filosofia da humanidade.

Em França, o debate sobre a revolução transumanista (Luc Ferry, 2016), o mito da singularidade (Ganascia, 2017) ou a guerra das inteligências (Alexandre, 2017), para citar apenas alguns autores mais conhecidos, está, agora, plenamente e intensamente no espaço público.

Mas, também, o relatório do deputado Cedric Villani sobre Inteligência Artificial, realizado a pedido do governo francês e apresentado ao público em março de 2018, assim como, no final de março, a apresentação pelo Presidente Macron, no College de France, da estratégia nacional da inteligência artificial para o quinquénio que termina em 2022.

Vejamos alguns aspetos mais relevantes desta agenda da inteligência artificial:

 

A inteligência artificial, a singularidade e o transumanismo

Vivemos o tempo das tecno-profecias, os dirigentes das grandes plataformas digitais são os profetas pregadores do nosso tempo. Nesta pregação, as fases do ciclo tecno-digital são conhecidas: os profetas apregoam as grandes promessas tecnológicas, o mercado das promessas converte-as em necessidade e transforma-se em mercado de inovações, a publicidade do futuro mitifica-se em singularidade e, logo de seguida, somos seduzidos e capturados pelo determinismo apoteótico das grandes plataformas, onde já reina a religião da longevidade e da eternidade.

E até já temos uma data quase mítica, 2045, denominada “o ponto de singularidade”, ou a passagem da IA fraca para a IA forte, para podermos afirmar no espaço mediático essa verdadeira apoteose que é a “passagem para a outra margem”, isto é, a transição para um outro universo, o universo do transumanismo e do pós-humanismo.

E porquê um futuro tecnológico tão sedutor e promissor acompanhado de um “bilhete de passagem” para a eternidade? Por que é absolutamente necessário continuar a alimentar a bolha das grandes capitalizações bolsistas em ordem a recuperar investimentos extraordinariamente volumosos e a convencer as sociedades de capital de risco de que é fundamental renovar os financiamentos e continuar a apostar no grande mercado tecnológico da inteligência artificial.

Nesta longa seta do tempo, e por todas estas razões, somos seres em transição. Na linguagem do transumanismo somos pura transição.

Eis, pois, a sequência na seta do tempo: da evolução natural passamos ao homem aumentado, do homem aumentado ao transumanismo (a via da inteligência artificial fraca), do transumanismo ao ponto de singularidade (a passagem para a inteligência artificial forte), do transumanismo ao pós-humanismo (uma nova espécie humana, um produto híbrido da biotecnologia). É como se a vida fosse uma categoria líquida onde o processo se sobrepõe à forma e à substância.

Nas palavras de Laurent Alexandre (A guerra das inteligências, 2017) estamos numa espécie de competição ou guerra das inteligências. Nesta corrida do produtivismo biotecnológico os humanos ficariam irremediavelmente para trás e a capacidade exponencial das máquinas não teria comparação com as limitações dos pobres seres biológicos que nós somos.

Nesta corrida o ser humano seria uma espécie de máquina com distintos componentes e estruturas, um todo complexo que não é capaz de verdadeira liberdade, ou seja, um ser pré-determinado que, de resto, pode ser observado nos seus sistemas neuronais. Digamos que com este futuro tão promissor e performativo nada poderá impedir que tomemos o caminho de Deus em busca da eternidade.

 

O relatório Villani sobre inteligência artificial

Em França, o governo francês pediu ao cientista matemático e deputado Crédric Villani do Movimento em Marcha a elaboração de um relatório sobre a inteligência artificial. Esse relatório foi apresentado em março de 2018. Devido à relevância e oportunidade deste relatório, apresentamos aqui as suas principais conclusões.

– Uma nova política conduzida ao nível europeu, em redor da gestão de “dados abertos” no quadro de plataformas comuns de mutualização e portabilidade de dados,

– Uma investigação colaborativa conduzida numa rede de institutos interdisciplinares de inteligência artificial, tornando as carreiras mais atrativas e mais intensas as relações entre a universidade e a indústria,

– Controlar os impactos da IA sobre o trabalho e o emprego, promovendo a experimentação social e a inovação, a formação contínua e profissional,

– Favorecer a convergência entre a transição ecológica e o desenvolvimento da IA e criar uma plataforma para medir os impactos ecológicos da IA,

– Promover a ética da IA e realizar auditorias sobre os direitos coletivos e a privacidade pessoal e criar, para o efeito, uma comissão de ética da IA,

– Triplicar o número de estudantes nas fileiras digitais, desenvolver a mediação e a arbitragem digitais, abrir os bancos de dados em igualdade de género e incentivar a inovação social no acesso ao trabalho e ao emprego,

– Criar um supercomputador para apoiar as plataformas e as aplicações de IA em cinco áreas prioritárias: a política educativa, a saúde e a medicina, os transportes e a mobilidade, a agricultura de precisão, a defesa e segurança.

Por sua vez, o Presidente Francês na sua alocução de 29 de março ao College de France resumiu, assim, os aspetos essenciais da estratégia nacional de inteligência artificial. Em primeiro lugar, quatro eixos estratégicos principais: reforçar em França e na União Europeia o ecossistema da IA, promover uma política de abertura de dados, públicos e privados, em França e na União, adaptar o quadro regulamentar e financeiro, nacional e europeu, definir os desafios e os limites éticos e políticos da IA.

Em segundo lugar, e para dar concretização a estes eixos estratégicos, o Presidente aponta um programa com cinco pontos essenciais:

– Uma rede de 4 a 5 institutos interdisciplinares de investigação em IA,

– Um programa de cooperação universidade-indústria para a criação de start up denominadas deep technology,

– Uma política voluntarista de abertura de dados e de apoio a plataformas setoriais para a partilha de dados públicos e privados,

– Um programa de apoio a uma estratégia experimental para o veículo autónomo,

– Um programa de crédito público no valor de 1,5 mil milhões de euros para o quinquénio que termina em 2022.

 

As relações entre inteligência humana e inteligência artificial

Chegados aqui, e depois desta incursão vertiginosa pela inteligência artificial, é preciso regressar ao princípio da “justa medida” e tentar colocar as perguntas certas na relação entre inteligência humana e inteligência artificial que é, afinal, o cerne da questão.

A inteligência, tal como a entendemos, é, essencialmente, o fruto do cruzamento de uma base biológica com um complexo simbólico e cultural impossível de ser reproduzido artificialmente. O mito da inteligência das máquinas é, apenas, a sua capacidade para simular a inteligência humana, pois a autonomia técnica e lógica não se confunde com a inteligência racional e emocional dos humanos.

Somos nós que inventamos o código e é dentro de um determinado código de linguagem que as máquinas e a inteligência artificial trabalham. Podem aperfeiçoar mecanismos de aprendizagem e categorizar a informação, mas não alteram o código com que trabalham.

O mesmo se diga em relação ao Big Data. É certo, faz-se antecipação com base numa correlação assente sobre um axioma de regularidade, mas o futuro muito raramente respeita as previsões e o progresso é frequentemente convulsivo, pouco atreito a determinismos, sobretudo se pensarmos na desmesura da imaginação e do determinismo tecnológico em redor da singularidade transumanista.

Não obstante, o futuro não pode ser confiscado pela promessa tecnológica e a política não pode ficar acantonada por este determinismo sociotécnico. Uma vez que há muitas outras promessas no horizonte, façamos, então, as perguntas que se impõem (a nós) nas relações entre inteligência humana e inteligência artificial:

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, quais são os limites e as complementaridades que se impõem entre uma IH consciente e uma IA logicamente subordinada?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, como repartir, com justiça e equidade, o valor criado pela IA em termos de riqueza e emprego?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, como impedir que os “erros e a estupidez artificiais” originem acontecimentos fortuitos e danos colaterais graves?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, como impedir que algumas formas de IA se convertam em cúmplices do cibercrime e da insegurança de indivíduos, povos e nações?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, como evitar que o espaço público seja tomado pelo medo e a desesperança quanto ao seu próprio futuro e a partir do momento em que todos somos ou acreditamos ser eternos e imortais?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, como impedir que a governação algorítmica e a administração do Big Data provoquem mais discriminação, enviesamento e exclusão sociais, uma verdadeira guerra civil das inteligências?

– Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, a coabitação entre várias formas de IA precisa de um enquadramento institucional apropriado, donde a necessidade de um forte contencioso de responsabilidade perante órgãos arbitrais, instâncias regulatórias e judiciais.

 

Notas Finais

Numa sociedade humana eticamente responsável e politicamente avisada, os melhores princípios ainda são a prudência e a moderação perante um futuro cada vez mais performativo no que diz respeito à tecnologia.

Somos seres conscientes dotados de intenção, intuição, reflexão e sentimentos e, no plano ético, os limites da consciência e a consciência dos limites é a nossa norma-padrão e, também, a regra base para lidar com as relações entre IH e IA.

No limite, a inteligência artificial até pode simular algumas destes atributos, mas a possibilidade de cair no ridículo é ainda mais iminente. O mesmo se diga em relação à autoregulação de sistemas automáticos ou mesmo autónomos, onde o risco e o perigo espreitam a cada momento.

As dúvidas, porém, perseguem-nos a todo o momento. E se nesta sociedade humana ser eticamente responsável e politicamente avisado for, mesmo, o caminho mais difícil? Como podemos nós enfatizar as virtudes da prudência e da moderação quando nos propõem, em contraponto, a esperança infinita da longevidade, eternidade e imortalidade?

E se a base democrática das instituições em que assentam aquelas virtudes estiver perigosamente ameaçada por movimentos inorgânicos, populistas e democracias duras e iliberais?

E se, neste contexto, a sociedade humana optar por escolher o caminho mais curto, aquele que nos levará até à “cidade dos anjos” com passagem pelo transumanismo e a pós-humanidade, então teremos de perguntar qual é a máquina inteligente que mais nos convém, aquela que nos tornará feliz e nos acompanhará para a vida inteira?!

Será uma longa maratona, esta guerra das inteligências, com muitas ilusões e outras tantas alegrias. Se for possível transformar a inteligência artificial (IA) em assistência inteligente (AI) e algoritmo inteligente (AI) já será uma grande vitória

Seja com for, se quisermos uma regulação ética e uma ética da regulação, não nos podemos deixar abater pela guerra das inteligências, pela morte da morte, pela edição genómica da humanidade ou pelos implantes nos interfaces cérebro-computacionais.

Não temos alternativa. Teremos de ir para o campo de batalha e em nome da “estranha ordem das coisas” (Damásio, 2017) recriar a teoria do agir comunicacional no espaço público, pois a nossa vantagem continua a ser essa interação favorável e desfavorável de sentimento e de razão que levou os seres humanos a criar a cultura, arte, sistemas morais, justiça, ciência, economia política e governação. E depois de todas estas perguntas e dúvidas, só nos resta recomeçar de novo.

 

Nota do Autor: Este artigo é uma versão revista de um artigo publicado no jornal Observador.

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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