Crónica do Sudoeste Peninsular: Inteligência Urbana

O professor António Covas fala sobre cidades e territórios inteligentes e criativos

No passado mês de Novembro (13 e 15), realizou-se em Barcelona a exposição mundial das cidades inteligentes, com a presença de uma delegação da associação nacional de municípios portugueses (ANMP) que tem na sua orgânica uma secção de cidades inteligentes.

No preciso momento em que é constituída uma comissão técnica independente na Assembleia da República para acompanhar de perto o processo de transferência de atribuições e competências para os municípios, vale a pena refletir sobre as relações futuras que a descentralização administrativa irá manter com as cidades e os territórios inteligentes.

 

A emergência do negócio digital

Estamos na era da transformação digital. Porém, que ninguém se surpreenda. O negócio digital tomará a dianteira e aumentará o apetite do capitalismo mais voraz que aproveitará a oportunidade para extrair as mais-valias que se formam na fase ascendente do ciclo económico digital. Para ilustrar este negócio digital, basta pensar nas transações vertiginosas e na valorização em redor das start up.

Ora, a inteligência urbana em especial, e a smartificação do território em geral, são áreas privilegiadas de negócio que explodirão completamente quando a “internet dos objetos”, ela própria, estiver em pleno funcionamento. Isto significa que as entradas para o negócio digital são muitas e muito variadas:

– Uma primeira entrada diz respeito aos sistemas gerais de informação, privados e públicos, aos bancos de dados e à análise de dados; de resto, o Big Data já aí está em pleno funcionamento e em constante evolução tecnológica.

– Uma segunda entrada diz respeito à agricultura de precisão e, de uma maneira geral, aos sistemas automáticos das atividades industriais e dos serviços, com uma presença crescente dos processos de robotização.

– Uma terceira entrada diz respeito à inteligência urbana (Smart City), desde os sistemas de transporte convertidos em sistemas de mobilidade até aos sistemas mais clássicos de distribuição em rede em matéria de equipamentos e infraestruturas.

– Uma quarta entrada diz respeito aos sistemas automáticos no âmbito da “internet das coisas” (IOT), onde praticamente nada escapa aos dispositivos de monitorização, sejam sensores, chips ou câmaras de vigilância; neste caso em concreto, podemos dizer que a nossa rastreabilidade é praticamente total e o Big Data uma ameaça permanente à nossa privacidade individual.

– Uma quinta entrada diz respeito às alterações climáticas e às profundas transformações nos ciclos vegetativos tal como resultavam, até aqui, da normal sucessão das estações do ano; o ajustamento no ciclo vegetativo e as operações de mitigação e adaptação obrigam a usar sistemas de aviso e monitorização cada vez mais sofisticados. Os episódios como o fogo, a seca e a chuva torrencial serão, doravante, uma presença constante que necessita de ser antecipada e monitorizada.

– Uma sexta entrada diz respeito aos sistemas vivos e aos planos verdes, se quisermos, à “smartificação verde da paisagem global”, na linha dos planos verdes do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles; trata-se essencialmente de monitorizar a condição dos sistemas vivos desde a linha de água e a vegetação ripícola até à unidade de paisagem, com passagem pelos corredores verdes e os mosaicos paisagísticos.

– Uma sétima entrada diz respeito à modernização digital das organizações administrativas, com uma ênfase especial nas autarquias locais; neste caso, a desmaterialização e a desintermediação irão alterar a relação entre o back office e o front office do município que, a breve prazo, estará cada vez mais próximo de uma loja do munícipe; ao mesmo tempo, a interação digital fará germinar uma nova geração de utilities municipais.

– Finamente, a última entrada diz respeito à formação de comunidades de auto-governo (os territórios-rede), nascidas de uma história comum, mas, também, e cada vez mais, de comunidades virtuais criadas por plataformas colaborativas e que, em determinado momento, decidem converter uma comunidade online numa comunidade territorial offline. Esta é, em minha opinião, uma linha de trabalho muito promissora que o federalismo autárquico e os territórios-rede poderão desenvolver.

Como se observa, a margem de progresso do “negócio digital” nos próximos anos é deveras extraordinária e tanto mais quanto, em cada empreendimento, formos capazes de distinguir entre a transformação digital que opera em benefício de interesses particulares e aquela que zela pelos valores e bens comuns da inteligência urbana e do ordenamento do território.

 

Cidades e territórios inteligentes e criativos

A inteligência urbana não é apenas um problema de eficácia e eficiência próprias de uma economia de recursos escassos. Para lá da inteligência racional, as comunidades humanas movem-se, sobretudo, pela inteligência emocional.

Ora, na sociedade da informação e do conhecimento o meu pressuposto é simples: todos os territórios têm uma inteligência coletiva tácita ou implícita que os seus principais representantes podem explicitar e desenvolver se forem capazes de resolver os seus principais défices de conhecimento.

Não há, portanto, nenhum fatalismo ou determinismo especial com um território, simplesmente, na sociedade do conhecimento a origem dos problemas reside no défice de conhecimento e no potencial de conhecimento que tem à sua disposição.

Doravante, a grande questão reside no seguinte: enquanto a inteligência racional pode ser adquirida no exterior da cidade via negócio digital, em matéria de inteligência emocional queremos saber até que ponto um determinado território é um “território-desejado” que mobiliza entusiasmo e adesão para um projeto de futuro.

Se o território onde vivemos for percebido como um mero recipiente ou recetáculo, um continente sem conteúdo, a inteligência emocional e a inteligência racional nunca se encontrarão para um grande projeto de futuro, isto é, não haverá inteligência coletiva territorial suficiente e capaz de reduzir os défices de conhecimento já conhecidos. Nestas condições muito dificilmente conseguiremos um território inteligente e criativo.

Neste contexto, a conexão digital e a intensidade-rede das redes sociais podem revestir-se de alguma dose de ilusão e mesmo confusão. Por um lado, a conexão digital reduz a invisibilidade do problema, trá-lo para o espaço público, faz ruído à sua volta, chama a atenção do poder político.

Nessa exata medida, o poder político fica confrontado com as suas próprias responsabilidades. Por outro lado, as comunidades online assim constituídas precisam ainda de fazer prova de vida, isto é, não podem tratar a realidade como um mero epifenómeno, como uma série de eventos que se consome com grande voracidade. Dito de outro modo, as comunidades virtuais devem sair do “modo representação” ou do “modo performativo” se quiserem que o seu protesto virtual seja convertido em ação real e efetiva.

Há, portanto, um lado mais benevolente e promissor do problema e que diz respeito à formação de territórios inteligentes e criativos a partir de uma judiciosa utilização das tecnologias da informação e comunicação. Neste caso, a economia digital, os recursos intangíveis e a produção de conteúdos que lhes está associada serão os fatores decisivos para editar os territórios inteligentes e criativos, por exemplo, do grande país do interior.

Este é, digamos, o lado mágico da economia digital, a saber, a criação de ambientes e ecossistemas inteligentes de acolhimento que nos conduzem até ao universo da digitalização criativa, mais interdisciplinar, transversal e imaginativa.

Por outras palavras, esta é uma descentralização que não se obtém por transferência de cima para baixo, mas por produção própria a partir de recursos tangíveis e materiais que são depois transformados em ecossistemas inteligentes de aprendizagem, conhecimento e recreação.

 

A inteligência urbana e a coesão digital como política pública

As cidades inteligentes caminham a várias velocidades, o pelotão da frente segue numa lógica de integração de serviços e já usa vários aplicativos, a seguir um pelotão com um ou outro aplicativo, por último, um terceiro pelotão que ainda nem sequer despertou para a digitalização dos serviços municipais. Acrescente-se o défice de cobertura GSM e fibra ótica e teremos no interior de Portugal um verdadeiro problema de coesão digital que põe em causa alguns aspetos importantes da política de descentralização.

Seja como for, na fase atual, é ainda o negócio digital que marca o ritmo dos territórios inteligentes. Na próxima fase, que é já hoje, trata-se de promover o casamento entre as cidades, as empresas e o sistema científico e tecnológico através do desenvolvimento de plataformas colaborativas no seio desta união a três.

Falta-nos, porém, e claramente, uma política pública de coesão digital para acelerar, na boa direção, a inteligência urbana e a smartificação do território.

De resto, a agenda da coesão digital como promessa de política pública já pode ser observada no quadro do roteiro que a secção de cidades inteligentes da ANMP realizou durante 2018, através de um conjunto de seminários smart city em sete cidades portuguesas.

Pela sua importância ficam aqui registadas as temáticas desses seminários:

– Cidade plataforma (Albufeira): gestão integrada, internet dos objetos, dados abertos, transformação digital, segurança pública, planeamento territorial, gestão de sistemas urbanos.

– Mobilidade (Ponta Delgada): gestão de tráfego, gestão de estacionamento, gestão de frotas, uso de bicicleta, partilha de veículos, veículos ecoeficientes, sistema de mobilidade integrado.

– Resiliência (Portalegre): prevenção de riscos, deteção de catástrofes e monitorização, plataformas de gestão, segurança pública, emprego verde, inclusão digital, soluções de proximidade.

– Sustentabilidade económico-financeira (Guimarães): atividade urbanística do Estado, infraestrutura financeira, reforma da administração pública, finanças públicas, transparência financeira, sustentabilidade financeira ambiental.

– Turismo (Funchal): Novos modelos de publicidade, realidade aumentada, dados abertos, indução de novas visitas, plataformas de gestão, transparência, legislação, indicadores e métricas.

– Edificado (Seixal): edifícios inteligentes, regeneração urbana, planeamento territorial, eficiência energética, gestão de sistemas urbanos, gestão de águas e resíduos.

– Inovação (Viseu): cocriação, cultura e criatividade, incubadoras temáticas, empreendedorismo e emprego, captação de investimento, city branding, internacionalização.

 

Notas Finais

A inteligência urbana não pode ser dissociada da política de descentralização, por maioria de razão, agora que se discute o pacote da descentralização.

Com efeito, já lá vai a primeira geração de políticas de descentralização associada á despesa pública com equipamentos e infraestruturas de primeira necessidade.

Estamos hoje num duplo registo e a duas velocidades. Em primeiro lugar, a manutenção e requalificação dos equipamentos e infraestruturas da 1ª geração, o que implica uma elevada despesa pública.

Em segundo lugar, é fundamental preparar a grande transição energética, digital e ecológica que nos levará até à descarbonização, energias alternativas, mobilidade, infraestruturas verdes, inteligência urbana, combate contra a desertificação, recomposição de habitats e unidades de paisagem, abastecimento alimentar de proximidade, mercados locais e regionais de emprego e trabalho, jovens empreendedores e investimento, o que implicará, igualmente, uma elevada despesa pública.

É aqui que surgem os grandes conflitos e contradições da política de descentralização. Com divida pública e privada muito elevada nos próximos anos, sem capital próprio suficiente, e com regras de condicionalidade europeia cada vez mais apertadas, o país corre o risco de gerir mais restrições do que objetivos e a sua política de descentralização ser uma variável endógena muito dependente da discricionariedade financeira e política de cativações do ministro das finanças.

Numa aceção ampla de política de descentralização, a formação de economias de aglomeração no interior de redes de cidades e vilas será um objetivo essencial. Tudo depende, doravante, do modo como estas redes territoriais se relacionam com as cadeias de valor e esta tarefa não se compadece com uma visão limitada e restritiva de política de descentralização administrativa.

A inteligência urbana, racional e emocional, exige a formação de ecossistemas inteligentes com uma cultura organicista da paisagem global e do território-identidade.

Neste registo, é imprescindível um investimento-rede mais substancial que vai desde as infraestruturas digitais de fibra ótica até às novas infraestruturas verdes, isto é, a política de descentralização requer mais meios numa fase inicial para aumentar a conexão inteligente de todos os sinais distintivos territoriais em presença.

Como dissemos, na eleição de um território-desejado o nexo implicativo e a criação de sentido coletivo são fundamentais. Eis alguns exemplos de sinais distintivos: um campo arqueológico, uma linha de água, uma mata ou um bosquete, um mosaico agroecológico, um endemismo local, uma área de paisagem protegida, um ou mais percursos de natureza, uma denominação protegida, indicação geográfica ou marca coletiva, uma paisagem literária, a arte e o canto, uma cooperativa agrícola, uma associação de desenvolvimento local, um centro de investigação.

São exemplos de sinais distintivos territoriais que, pela sua conexão cognitiva, irão servir para forjar a identificação do território-desejado e criar uma iconografia narrativa que seja representativa e na qual todos se reconheçam.

Conceber o imaginário de um território-desejado é, só por si, uma tarefa de grande fôlego. Tudo pode começar no universo virtual e tudo pode ser deveras surpreendente.

Por que não tentar?

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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