Teatro na serra e nas destilarias mostra porque é que «o fogo não tem quatro letras»

A nova vaga de programação do projeto Lavrar o Mar começa já este fim de semana em Monchique, no âmbito do 365Algarve

«Estas árvores atravessaram o inferno e agora ressuscitam», diz “Manuel Monteiro”, de rosto sofrido, que afirma ter «dois filhos e seis incêndios de vida». Manuel Monteiro é uma personagem de ficção, um dos dois fios condutores de «Medronho #1 – o fogo não tem quatro letras», o espetáculo que este ano abre a época de mais um «Lavrar o Mar», por terras de Monchique.

Mas Manuel Monteiro é, no fundo, um qualquer homem monchiquense. Podia até ser José Paulo, o dono da quinta da Lameira, onde esta quarta-feira, dia 7, teve lugar a apresentação do novo ciclo de programação, e que, no grande incêndio de Agosto, viu arder as suas plantações de medronheiros, o resultado de anos e anos de investimento e esforço.

«A quinta está viva e há-de continuar», tinha já dito José Paulo, ao receber os convidados da produção do «Lavrar o Mar» na ancestral casa da sua família, que escapou milagrosamente às chamas.

Estava dado o tom do que será a programação deste ano, dividida, como sempre, entre os concelhos vizinhos de Monchique e de Aljezur. O grande fogo de Agosto levou Giacomo Scalisi e Madalena Victorino, os pensadores deste «Lavrar o Mar», a mudar a perspetiva da programação, que agora, «por força das circunstâncias, começa convocando um elogio ao fim – falamos daquilo que termina como forma de falar também do que começa quando algo termina». Ou, como diz “Manuel Monteiro”, olhando pela janela para os montes negros de fogo, «quando ficar tudo verde, os pássaros hão-de voltar».

As apresentações de «Medronho #1 – o fogo não tem quatro letras» começam já neste fim de semana, dias 10 e 11 de Novembro, e continuam no seguinte, a 17 e 18, naquela mesma quinta da Lameira, entre os troncos negros das árvores queimadas e a erva que já desponta, com as primeiras chuvas.

E o que será este primeiro espetáculo? Giacomo Scalisi, o encenador, explicou que será a continuação da saga familiar que foi sendo construída ao longo destes três anos, «um Romeu e Julieta monchiquense» que saiu da imaginação do escritor Sandro William Junqueira.

Desta vez, a ficção coloca em cena um filho, Ezequiel (representado pelo ator Pedro Frias), e um pai, Manuel (o ator António Fonseca). «Cada um conta a sua história do fogo, fala desse grande luto que se vive na serra, dessa raiva. São duas vozes, duas histórias, duas versões. Quem vier ver o espetáculo, vai descobrir porque é que o fogo não tem quatro letras».

Mas há uma «má notícia»: apesar do tema voltar a ser o medronho, que até está no título, desta vez, neste espetáculo, «não vamos beber medronho», anunciou Giacomo. «Tudo ardeu e durante uns quatro anos não haverá aqui produção de aguardente de medronho», lamentou. E isso mesmo está traduzido na performance.

Na conferência de imprensa no armazém escuro onde está o alambique da quinta da Lameira, Madalena Victorino salientou, por seu lado, que «esta terceira edição do Lavrar o Mar dá-nos a possibilidade de aprofundar o trabalho» que tem vindo a ser feito. «Vamos avançar para um patamar, uma sensibilidade, que na vida quotidiana não é possível».

Para este «Medronho #1 – o fogo não tem quatro letras», recorda a encenadora, «o Sandro e o Giacomo palmilharam a serra à procura das palavras».

O projeto Lavrar o Mar, na temporada de 2018/2019, começa com este espetáculo ao ar livre (levar calçado confortável e roupa apropriada em caso de chuva), mas terá ainda mais meia dúzia de outras apresentações, até Maio próximo, que vão do teatro à música, dança e gastronomia (e as misturam) e ainda ao novo circo, em diversas vertentes. Volta a ser integrado na programação do 365Algarve, contando também com o apoio financeiro da Direção Geral das Artes, do CRESC Algarve 2020 e das Câmaras Municipais de Monchique e Aljezur.

O objetivo é levar as artes a estes territórios de baixa densidade, envolvendo a comunidade local, mas criando também uma programação cultural que os torne atrativos. Um dos objetivos, explicou Madalena Victorino, é «dialogar com os turistas», mas com «uma ideia de turismo que não seja banal».

«Aqui não temos um teatro, mas temos a natureza». E é esse o palco privilegiado do Lavrar o Mar.

Rui André, presidente da Câmara de Monchique, manifestou a sua «enorme satisfação» pela continuação do projeto e recordou como foi importante, quando ainda nem havia o dinheiro do 365Algarve, a sua autarquia e as vizinhas de Aljezur e até Odemira terem decidido «apoiar estes dois criativos, estas pessoas fantásticas».

O objetivo, acrescentou o autarca, é «fazer deste evento uma âncora para outros projetos», que tornem a cultura um «veículo para o desenvolvimento local».

«Este projeto tem sido muito mais do que simples espetáculos, a que assistimos, vamos embora e não fica quase nada. Isto fica nas pessoas que assistem e fica sobretudo na comunidade, que participa», garantiu.

Rui André fez ainda votos que «estes momentos culturais possam reforçar a ligação com o nosso património e os nossos produtos», de modo a «criar uma ligação emocional junto das novas gerações, para que não seja só fazer um produto como o medronho e seja antes um ato de amor».

José Gonçalves, presidente da Câmara de Aljezur, para onde a programação rumará no fim do mês de Novembro, a propósito do Festival da Batata-Doce, começou por salientar que, «se o Lavrar o Mar acabasse amanhã, já teria valido a pena». Mas fez votos para que continue e por muito tempo.

«Estes nossos territórios são privilegiados: temos problemas, mas temos coisas que não há em mais lado nenhum». E é dessa matéria prima que o Lavrar o Mar vive.

O que acontece nos concelhos de Aljezur e Monchique, de Outubro a Maio, já pelo terceiro ano consecutivo, mostra «que as coisas boas não acontecem só em Lisboa ou em Faro, também acontecem neste território», acrescentou José Gonçalves.

Fátima Catarina, vice presidente da Região de Turismo do Algarve, salientou a «parceria inédita entre Turismo e Cultura» que o programa 365Algarve permitiu, um aspeto que viria depois a ser realçado de novo pela secretária de Estado da Cultura, que também esteve presente nesta original conferência de imprensa de apresentação do Lavrar o Mar.

«O 365Algarve é um programa fantástico, que conjuga turismo e cultura em territórios de baixa densidade», sublinhou secretária de Estado Ângela Carvalho Ferreira, acrescentando que o Lavrar o Mar é «um projeto muito importante para a não desertificação destes territórios, para que todos possamos criar uma ligação mais emocional, mais terra a terra com o seu saber fazer», seja o da arte da produção da aguardente de medronho, seja o da batata-doce e das suas receitas.

Para começar, será mesmo o medronho (ou a sua ausência) o mote para o primeiro espetáculo, que, pela voz de dois atores, leva o teatro à serra e às destilarias, este ano estranhamente silenciosas e frias.

O ator António Fonseca falou ao Sul Informação sobre este espetáculo diferente, «feito numa serra, ao ar livre». «Isto faz-se na serra, em diálogo com o que está lá, o concreto: ar árvores, as cinzas, as pedras, mas também as histórias». Será, explicou o ator, «um espetáculo com a serra e não na serra».

 

«Medronho #1 – o fogo não tem quatro letras»

10 . 11 . 17 . 18 de Novembro – Monchique
11h00 e 14h30

Direção Artística: Giacomo Scalisi
Textos: Sandro William Junqueira
Interpretação: Pedro Frias e António Fonseca

Ponto de encontro: Heliporto de Monchique
Preço: 10 euros (inclui refeição ligeira)
Recomendação: levar calçado confortável e roupa apropriada para a chuva

Clique aqui para comprar bilhetes
Bilhetes também à venda em:
Monchique: Biblioteca Municipal
Aljezur: Casa Lavrar o Mar – Rua João Dias Mendes
Odeceixe: CTT

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Comentários

pub