Percurso pela história e património levou portugueses e franceses à descoberta de Ferragudo

Este foi o primeiro evento cultural e de animação turística promovido pela associação Vicentina no concelho de Lagoa

Mares revoltos, céus escuros, barcos quase a soçobrar nas ondas enormes…e a intervenção milagrosa de Nossa Senhora da Conceição. Esta é, em resumo, a história dos ex-votos patentes nas paredes da sacristia da Igreja Matriz de Ferragudo, transformada num pequeno núcleo museológico.

O mais antigo ex-voto ferragudense, pintado em madeira, data de 1774 e é mesmo um dos mais ancestrais deste tipo, conhecidos em todo o país, como revelou Susana Santos, guia do grupo de portugueses e franceses que, no sábado passado, participou no evento «Compromisso Marítimo», promovido em Ferragudo pela associação Vicentina, no âmbito da programação do 365Algarve.

Estes quadros, pintados sobre madeira (os mais antigos) ou tela, mostram momentos de aflição dos homens do mar, dos quais se salvaram, acreditam eles, graças à intervenção divina, no caso de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Ferragudo.

São imagens naïf, carregadas de cores e cenas dramáticas, que demonstram bem a fé dos mareantes. São também, como explicou Susana Santos, um exemplo do modo de vida e da forma de pensar desta comunidade, há séculos ligada ao mar, que ainda hoje, apesar do apelo de vidas mais fáceis, resiste na vila de Ferragudo, no estuário do rio Arade.

E foi para lembrar e celebrar esse “compromisso” com o mar que decorreu este evento, num final de tarde e noite frio e muito ventoso. Pelas ruas estreitas da antiga terra de pescadores, de outros mareantes e de conserveiras, foram-se ouvindo as histórias de um povo que sempre retirou do mar o seu pão.

Na muralha de Ferragudo, ou seja, no longo cais junto ao rio, ainda hoje há homens do mar a preparar as redes ou os aparelhos de anzóis para a pesca. Nas águas do rio, que vai subindo e descendo com as marés e às vezes chega a invadir a baixa da vila, como sempre fez desde tempos imemoriais, estão atracadas duas embarcações de madeira, à vela e a remos, salvas pelos Escuteiros Marítimos, que recordam tempos mais difíceis em que tudo tinha de ser feito à força de braços ou aproveitando o vento.

Mas Ferragudo não parou no tempo e há hoje marcas de modernidade, viradas para a atividade que é o atual motor da economia: o turismo. Mas, mesmo aqui, não se esquece a história e o património, em grande parte imaterial, desta comunidade.

Exemplo dessa modernidade é a Galeria Vasco da Gama 26, que abriu nesta rua da baixa em Junho passado, no rés-do-chão de um edifício que em tempos foi carpintaria de barcos, depois albergou uma escola de adultos e agora foi recuperado pela arquiteta Marlene Uldschmidt, uma alemã apaixonada por Ferragudo e que aqui vive e trabalha há cerca de uma década.

Na galeria, pode ver-se «Mar e Terra», uma exposição de fotografia da autoria da própria Marlene, onde a terra é representada por uma imagem em grande formato das entranhas decadentes do antigo edifício construído em taipa (agora recuperado e readaptado a novas funções), e o mar por outra foto, também de grandes dimensões, mostrando a espuma de uma onda a rebentar na praia.

Mas o mar é representado também, e sobretudo, pela impressionante galeria de 18 fotografias a preto e branco, feitas em 2007, dos fundadores da Associação de Pescadores de Ferragudo. «Hoje, desses 18, já só haverá uns cinco ainda a trabalhar», lamentou Marlene Uldschmidt, que recebeu o grupo de visitantes, ao início da noite, na sua galeria.

É uma exposição que, como explicou a arquiteta, é uma «homenagem», porque faz «a ligação entre a história dos materiais, a atividade e as pessoas, os pescadores de Ferragudo». Mas, admitiu, «esta exposição representa também alguma tristeza, por uma era que já não existe».

Ali ao lado, fica a Casa Grande, de Luís Alberto, empresário local e ex presidente da Junta de Freguesia. É a antiga casa de um capitão, que, depois de alguns anos fechada, alberga agora um bar de vinhos e restaurante de tapas, que conserva o ambiente e a magia de tempos passados. Neste local, o grupo fez a primeira pausa para degustação gastronómica da noite: chouriço assado, com bom pão caseiro algarvio e uns mosquitinhos de aguardente de medronho ou de melosa. Com o frio que lá fora estava, o medronho serviu para aquecer…as almas.

Ainda há pouco o grupo tinha partido dali de perto, da Praça Rainha D. Leonor, a mulher do rei D. João II que, no século XV, mandou criar esta povoação ribeirinha.

Sónia Felicidade, técnica superior da associação Vicentina e responsável pela organização destes eventos denominados «Compromisso Marítimo», explicou que, desde essa altura, houve a preocupação de «dar privilégios aos homens do mar, para que eles viessem povoar estas zonas da costa e mantivessem a atividade da pesca, que era altamente rentável para a coroa. Esses privilégios passavam, por exemplo, pelo facto de eles não serem recrutados para as guerras, para defender o país, ou por poderem andar armados em terra. Mas, em contrapartida, eram eles que defendiam a costa da pirataria, que, nesses tempos, era um perigo constante aqui no Algarve».

Susana Santos e Silvano são os dois guias especializados da empresa de animação turística Etnogarbe, que, em parceria com a associação Vicentina, promovem a série de eventos, este ano a decorrer em Lagos e em Ferragudo, duas das dez localidades algarvias onde existiram, durante séculos, os tais «Compromissos Marítimos», uma espécie de segurança social dos pescadores e outros homens ligados ao mar, paga por eles próprios.

«Havia dez compromissos marítimos no Algarve, muito bem divididos, cinco no Barlavento, cinco no Sotavento. Eram Lagos, Portimão, Alvor, Ferragudo e Albufeira, aqui deste lado, Vila Real de Santo António, Tavira, Fuzeta, Olhão e Faro, no outro», explicou Susana Santos.

Deles faziam parte «não só os pescadores, mas também os calafates, os carpinteiros, todos os que estivessem ligados à vida do mar». O Compromisso de Ferragudo foi mandado instituir por D. João V, no século XVIII, através de uma carta régia. E continuou, nos mesmos moldes, até ao advento do Liberalismo, no século XIX, persistindo com algumas modificações até à República e ao Estado Novo, quando foram extintos e os seus bens, privilégios e funções foram transferidos para as Casas dos Pescadores e do Povo, e, já depois do 25 de Abril, para a Segurança Social. Hoje são apenas uma memória.

Em Ferragudo, o edifício do Compromisso Marítimo, recuperado há três anos pela Junta de Freguesia e transformado em sala de exposições, fica quase ao lado da Igreja Matriz, pelo que isso talvez explique o facto de, aqui, não haver uma capela dos marítimos, dedicada ao padroeiro dos Compromissos, S. Pedro Gonçalves Telmo, como acontece por exemplo em Tavira, com a chamada Igreja das Ondas.

«S. Pedro Gonçalves Telmo era também conhecido como Corpo Santo, por isso era esse um dos primeiros nomes dos Compromissos Marítimos», recordou a guia.

A imagem do santo, sempre representada com um barco a seus pés, está num altar da igreja de Ferragudo. Mas agora a devoção dos homens do mar e das suas famílias volta-se, sobretudo, para Nossa Senhora da Conceição, em honra da qual ainda hoje se faz uma animada e muito participada procissão pelo rio, a 15 de Agosto.

Apesar de todas as transformações e da omnipresença do turismo como atividade económica principal, Ferragudo, como ficou patente nesta visita de quatro horas pelas suas ruas, histórias e património, mantém ainda uma forte ligação ao mar. Basta dizer que é nesta vila que tem sede o único e muito ativo agrupamento de Escuteiros Marítimos do CNE no Algarve. E os seus membros são quase todos filhos e netos de pescadores, calafates, operárias conserveiras e outras pessoas ligadas ao mar.

Porque, como já tinha explicado Sónia Felicidade, este percurso pela vila de mareantes iria ser pontuado por degustações, o segundo capítulo gastronómico aconteceu no edifício do Compromisso Marítimo, bem abrigados do vento frio que entretanto se levantou. O grupo aqueceu-se de novo com um caldo verde e depois, subindo ao primeiro andar, aconchegou o estômago com pataniscas de bacalhau, salada de ovas e outros petiscos do mar, regados com vinho tinto.

Faltava apenas a parte final de todo este programa: o concerto ao ar livre, no adro da igreja, do músico MPeX. O cenário era perfeito, com uma vista abrangendo todo o estuário do Arade…mas o vento forte que soprava fez com que o concerto de guitarra portuguesa, misturada com música eletrónica, numa linguagem muito própria, tivesse apenas uma trintena de espectadores, portugueses e estrangeiros, alguns idos de propósito para ouvir MpeX.

Foram três dezenas de resistentes, agasalhados como num dia de Inverno rigoroso, de casacos grossos, cachecóis e gorros de lã. Mas MpeX, ainda mais exposto ao frio do que quem assistia ao concerto, não deu tréguas e arrancou da sua guitarra os sons de uma musicalidade bem portuguesa, voltada para o futuro. Uma forma perfeita de terminar esta intensa jornada do «Compromisso Marítimo».

E atenção: no próximo ano, haverá mais três sessões deste »Compromisso Marítimo», em Lagos (16 de Março e 25 de Maio) e em Ferragudo (27 de Maio). A organização promete que não serão iguais e que haverá até algumas «surpresas». Esperemos que uma delas seja um tempo mais ameno.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

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