Crónica do Sudoeste Peninsular: Penamacor

O exemplo de Penamacor e da criação da Secretaria de Estado para a Valorização do Interior

O Diário de Notícias anunciava, na sua edição de 14 de outubro, que “os fugitivos do Brexit estão a invadir o concelho mais envelhecido de Portugal”.

De acordo com o relatório do SEF de 2017, e pelo 3º ano consecutivo, o distrito de Castelo Branco está entre os que mais crescem na taxa de residentes estrangeiros, juntamente com Bragança. E Penamacor é o município onde esta taxa é maior, quase 10% dos habitantes são estrangeiros, cerca de 400. Em 2011 Penamacor tinha o maior índice de envelhecimento, para cada 100 jovens com menos de 15 anos havia 545 idosos com mais de 65 anos. Penamacor era também o concelho mais despovoado, em 50 anos o concelho passou de 10 mil habitantes para cerca de 5 mil.

Tudo começou há dois anos, hoje Penamacor tem 400 registos de cidadãos estrangeiros, dos quais 60% são britânicos e os restantes têm ligações ao mundo anglo-saxónico. “O Brexit radicalizou as posições, toda a Europa nos odeia, aqui encontrámos um lugar onde as pessoas nos apreciam e podemos viver em paz”.

Os sinais desta “invasão” nos últimos dois anos são visíveis. Uma mercearia gourmet no centro de Penamacor. Uma imobiliária de um cidadão irlandês que acaba de concluir a centésima transação. Uma escola internacional com 33 crianças de 17 nacionalidades. Uma escola de futebol para jovens de 11 e 12 anos com um treinador australiano. Outros pequenos negócios estão em curso. Diz o Presidente da CM de Penamacor: ”vamos abrir um centro tecnológico para que seja possível trabalhar aqui com internet de alta velocidade”.

Estes estrangeiros residentes adquirem pequenas quintas (em Aldeia do Bispo, por exemplo) a bom preço, muitas vezes abandonadas. São, na sua maioria, trabalhadores no ativo em atividades globalizadas (Londres, Hong Kong, Singapura), têm um elevado nível cultural e são, de uma maneira geral, trabalhadores digitais.

Entretanto, na última remodelação governamental, é criada a Secretaria de Estado da Valorização do Interior que ficará sedeada em Castelo Branco, o distrito a que pertence o município de Penamacor.

Qual é o alcance e o significado destes dois epifenómenos, tão diferentes e tão iguais. Eis algumas breves reflexões a este propósito.

 

Dois avisos à navegação

Começo com dois avisos à navegação. Em primeiro lugar, vamos para o sexto exercício de programação dos fundos europeus (2020-2027) e ninguém parece interrogar-se sobre as razões pelas quais as assimetrias regionais e territoriais se agravaram em quase trinta anos de investimento local, rural e regional.

De cada vez que há um “período de ajustamento”, por razões de défice ou de dívida pública, assistimos a uma desvalorização dos ativos do território e a uma forte depreciação dos investimentos realizados (e já nem falo dos incêndios florestais). Este será o nosso principal problema, agora e no futuro, ou seja, a destruição de tecido produtivo e de tecido social sempre que acontece um “período de ajustamento severo”.

Com um país extremamente endividado, tanto público como privado, e com o elevado custo de oportunidade do “investimento em interioridade” não haverá política de desenvolvimento territorial que resista ao stop-and-go da política de ajustamento macroeconómico. Estou a pensar nesse mar imenso dos “territórios de baixa densidade”, sobretudo, nesses concelhos-lar do rural remoto que crescem todos os dias à míngua de esperança e gente empreendedora.

Em segundo lugar, os territórios mais remotos e hostis são um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as universidades, os centros de investigação, as associações empresariais e as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar estes territórios.

Todavia, à “nova economia imaterial”, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais ou cooperativos.

Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, que aí vegetam sem um mínimo de sustentabilidade. Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal ou associativa, já para não falar da qualidade do ator-rede que administra os novos equipamentos e infraestruturas.

Quer dizer, teremos de fazer, rapidamente, uma revisão da matéria dada no que diz respeito aos espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, os polos tecnológicos, as associações de desenvolvimento local, que têm sido até agora os locais privilegiados para fazer nascer estas redes de inovação e perceber melhor o lado virtuoso da baixa densidade e as razões para tão baixa performatividade e efetividade destes instrumentos de intervenção no território. Feitas estas duas advertências, voltemos a Penamacor e à valorização do interior.

 

As condições gerais para a valorização do interior

Para ser realmente efetiva, uma estratégia de valorização do interior precisa de respeitar certas condições gerais:

– Os programas de intervenção territorial não podem ser reduzidos a um elenco de medidas, necessitam de uma intencionalidade estratégica e operacional e de um calendário de execução;
– Os territórios não podem ser reduzidos a “nomenclaturas territoriais estatísticas” ou comunidades de municípios que não se sentem fazendo parte de uma comunidade de destino ou de um território-desejado;

– Os atores-principais não podem ser reduzidos a departamentos da administração pública local e regional, os territórios necessitam da mobilização da inteligência emocional e a criatividade dos cidadãos;

– Os controladores do processo de seleção e decisão não podem ser reduzidos a templates e algoritmos, os territórios necessitam de um ator-rede que in situ seja o “principal cuidador”;

– A economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, é necessário que esses eventos sejam integrados em “atos orgânicos” de estruturação longa da economia local;

– A inovação territorial não pode ser reduzida à informática de gestão e administração, é necessária uma nova cultura de ordenamento urbanístico com relevo para as pequenas e médias cidades do interior no que diz respeito ao seu autogoverno, em formatos socioinstitucionais inovadores como são a economia dos contratos, das convenções, dos clubes e dos territórios-rede;

– A inovação agroecológica não pode ser reduzida a umas medidas difusas de natureza agroambiental, sem verdadeiro impacto, é necessário defender no âmbito da PAC pós-2020 uma nova geração de bens públicos rurais, tais como infraestruturas verdes, corredores ecológicos, equipamentos agroecológicos e ecossistémicos e pagamentos por serviços ambientais prestados;

– O capital social não pode ser reduzido a uma sociabilidade fraca ou cooperação de baixa intensidade, de resto, não se compreende que sendo a cooperação um recurso abundante e barato não seja usado com mais frequência e intensidade pelos territórios do interior.

 

A secretaria de Estado, o ator-rede, o “curador da baixa densidade”

A estratégia de valorização do interior para ser bem-sucedida precisa da presença permanente de um ator-rede. Só há competência se houver permanência.

Este ator-rede tem quatro missões principais: promover a identificação com o território-rede, cuidar da territorialização das medidas aplicáveis, reunir uma massa crítica de atribuições, competências e recursos e promover a formação e rejuvenescimento do capital social do território.

Por outro lado, importa evitar a todo o custo que “os silos ministeriais” descarreguem as medidas que têm em stock sobre os territórios, sem cuidar da territorialização dessas medidas e respetivo envelope financeiro. Esta é, justamente, a competência fundamental do ator-rede, a saber, ser um centro de racionalidade, cuidar da retenção dos efeitos de aglomeração, reduzir os efeitos externos negativos e potenciar os efeitos externos positivos.

Para tal, os contratos territoriais de desenvolvimento são, igualmente, uma opção em aberto (ver Público,16 Dez, 2015).

Espero, sinceramente, que a Secretaria de Estado da Valorização do Interior localizada em Castelo Branco seja uma espécie de “curadoria” dos territórios de baixa densidade.

 

Em nome de um federalismo autárquico de 2º grau, a cidade-rede

Num texto anterior, já me referi ao conceito de “cidade distrital inteligente” (Público, 7 de março de 2018) para expressar a absoluta necessidade do federalismo autárquico, capaz de acolher no seu seio um “governo dos comuns” e animar um “centro partilhado de recursos digitais”.

Não sei se será o distrito ou a comunidade intermunicipal, sei que precisamos de uma estrutura de autogoverno dotada com um mínimo de população, atribuições, competências e meios, que seja capaz de articular os poderes setoriais e intermunicipais com as expetativas das populações expressas através de recursos digitais e suscitar os efeitos de aglomeração e escala que o território mais necessita.

De acordo com o conceito de “rede de vilas e cidades inteligente ou cidade-rede”, seria constituída uma “plataforma de cidadania interativa” com o propósito de selecionar os “bens e serviços comuns” que deveriam ser colocados ao serviço de toda a população da rede, uma cidade-rede com pelo menos 100 mil habitantes.

De acordo com este novo elenco de prioridades, a “comunidade de autogoverno” debateria a natureza, os conteúdos e os limites do “centro partilhado de recursos digitais”, tendo em vista apetrechar a cidade-rede com as “infraestruturas de conexão” que viabilizam os novos serviços digitais, assim como o modelo operacional e logístico que colocaria os bens comuns ao serviço da população da cidade-rede.

As “cidades-rede inteligentes” do interior de Portugal teriam uma dimensão média mais elevada, recriariam a sua área de influência, e essa circunstância seria uma oportunidade única de colocar à sua disposição serviços comuns polivalentes e itinerantes com uma eficácia e eficiência muito superiores.

 

Notas Finais

Em síntese, a rede de vilas e cidades do interior ou cidade-rede teria para cumprir o seguinte programa:

– Em primeiro lugar, concluir a cobertura e a acessibilidade digitais de alta velocidade,

– Em segundo lugar, conceber uma nova geração de utilities (bens e serviços comuns) oferecida pela rede de municípios,

– Em terceiro lugar, levar as instituições de ensino profissional, técnico e superior, a praticar uma política de portas abertas de modo a facilitar o melhor regime de empregabilidade e formação para toda a população,

– Em quarto lugar, implementar um programa de direito fiscal de modo a promover as iniciativas empresariais, mas, sobretudo, a facilitar o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente do universo da economia social, solidária e colaborativa,

– Em quinto lugar, criar um regime de incentivos à inovação social, ambiental e cultural e estruturação do 4º setor, de modo a garantir um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento,

– Finalmente, investir a instituição universitária como meta-plataforma regional e principal incubadora de start up na sua região, se quisermos, uma espécie de “campo de cultura” onde se cultivarão os perfis profissionais do próximo futuro tendo em vista aumentar a empregabilidade de um trabalhador cada vez mais pluriativo e intermitente.

Se formos capazes de materializar este programa, nessa altura, a Secretaria de Estado da Valorização do Interior e o concelho de Penamacor, entre outros, poderão receber uma “comunidade nómada” muito mais substancial que incluirá uma variedade muito importante de participantes: estudantes Erasmus, bolseiros de investigação e doutoramento, jovens empresários, emigrantes retornados, imigrantes económicos, asilados e refugiados, trabalhadores digitais em trânsito, homens de negócios em mobilidade, trabalhadores intermitentes das artes do espetáculo, espetadores e agentes de grandes eventos, desportistas radicais em treinamento, membros de espaços de coworking e de tiers-lieux, freelancers de todos os tipos, voluntários em campos de férias e trabalho, etc.

Enfim, cidadãos do mundo vivendo em topoligamia, isto é, casados com vários territórios, em condições de mobilidade constante e estatutos socioprofissionais muito variáveis.

De um território-stock a um território-fluxo e em recomposição permanente, eis o futuro que nos espera nos nossos territórios do interior, assim chamados.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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