Rescaldo

Filipe Vital, vereador da Câmara Municipal de Portimão, assina este artigo de opinião, onde desmonta aquilo que considera serem os 8 mitos que circulam sobre o grande incêndio de Monchique

Com a declaração de extinção do incêndio que, durante uma semana, no início de Agosto, lavrou nas encostas da Serra de Monchique, importa desfazer alguns mitos que foram criados e alimentados por títulos bombásticos com a subsequente propagação nas redes sociais.

Não sendo um especialista na matéria, corro obviamente o risco de falhar na análise. No entanto, a abordagem que vou tentar ter baseia-se no senso comum, no que pude assistir no terreno, nas conversas que fui tendo com os operacionais e na minha (pouca) experiência ao acompanhar o comando no teatro de operações do incêndio das Casas Velhas, em Portimão, há dois anos. Nessa altura, convivi de perto com o stress de quem sabe ter nas suas mãos a vida de outrém, mas também assisti ao sangue frio daqueles a quem foi confiada uma missão e que só descansaram depois de a cumprir.

Mito 1: A estratégia de combate privilegiou a salvaguarda da vida humana, tendo negligenciado de forma ostensiva a proteção dos bens.

Parece-me óbvio que qualquer acontecimento desta natureza deva ter como primeiríssimo objetivo a salvaguarda da vida humana. As casas reconstroem-se, as florestas regeneram-se, apenas a vida não é recuperável, uma vez perdida.
Mas vamos, por absurdo, aceitar que, de facto e devido à tragédia de Pedrogão, existiram indicações para que a única preocupação fosse as pessoas e que tudo o resto fosse para deixar arder.

Aceitando esta tese, convém comparar os números deste incêndio com um outro grande incêndio que há 15 anos assolou esta mesma área. No incêndio de 2003, arderam cerca de 40.000 hectares, contra os 26.000 de 2018, e arderam 250 casas, contra as cerca de duas dezenas de 2018.

Partindo do princípio que, em 2003, não havia a preocupação exclusiva na salvaguarda da vida (pelo facto de essa preocupação apenas ter surgido no pós-Pedrogão) e que, em 2018, foi essa a orientação, teríamos que, em 2018, ter pelo menos 150 casas ardidas, o que claramente não aconteceu.

Mito 2: Deviam ter sido os Bombeiros de Monchique a liderar o combate e não Autoridade Nacional de Proteção Civil, por esta desconhecer o terreno.

Deviam e foram. Desde logo, no combate inicial que é feito pela corporação local, coadjuvada pelas corporações vizinhas.

Depois, com a permanência do Comandante dos Bombeiros de Monchique no Posto de Comando Operacional, dando o seu apoio às decisões estratégicas que é preciso tomar e, no caso deste incêndio em particular, comandando uma das duas frentes do incêndio, com autonomia para despachar meios e definir a abordagem a seguir.

Mito 3: Existiam meios no Teatro de Operações que, embora disponíveis, não estavam a ser utilizados.

Em primeiro lugar, importa saber se esses meios estavam afetos ao combate ou se eram de particulares, não estando disponíveis para o combate direto.

Partindo do princípio que assim não era e que todos os meios estavam a ser coordenados pelo comando, parece-me que faz sentido, antes de corrermos atrás de uma qualquer teoria da conspiração, pensar que, numa batalha, terão sempre de existir meios de reserva, que possam ser projetados no terreno em caso de necessidade, respondendo a imprevistos ou a cenários mais ou menos previsíveis que necessitam de resposta ao minuto.

Isto tanto se aplica à maquinaria, como aos meios humanos, que têm de estar frescos para terem uma real capacidade de intervenção.

Mito 4: O comando deste incêndio foi e é profundamente incompetente.

Resta-me, relativamente a este ponto, referir que foram exatamente estes os “incompetentes” que foram chamados à Lousã e a Pedrogão Grande em 2017 e que dominaram aquele que é considerado um dos piores incêndios de sempre na história do nosso país.

Resta dizer que após um interregno de 24h (o suficiente para descansar) a equipa de comando inicial reassumiu funções em Monchique tendo acabado por dominar também este incendio. Acrescento que, tal como anunciado pela ANPC, não houve em momento algum mudança de estratégia, ou seja, as pessoas foram rendidas para poderem descansar mas sem pôr em causa a linha de ação definida inicialmente.

Mito 5: Os Bombeiros passaram fome.

Esta foi uma das notícias que mais reações gerou na opinião pública. É óbvio que deve ter havido falhas na distribuição da alimentação. Imagine-se o pesadelo logístico que é distribuir refeições (pelo menos quatro vezes ao dia) a 1200 operacionais que estão espalhados pela Serra. Imagine-se ainda que há acessos cortados pelo próprio incêndio, o que dificulta ainda mais esta operação.

Daí a dizer-se que os bombeiros passaram fome vai uma distância que não me arrisco a percorrer.

Existiu desperdício, até porque o número de refeições despachadas de Portimão em direção a Monchique era sempre superior em, pelo menos, 20% às necessidades reais.

A título de exemplo, basta dizer que, na fase mais crítica do incêndio, eram confecionadas 1800 refeições, quando os operacionais nunca ultrapassaram os 1400 homens e mulheres.

Mito 6: Os Bombeiros recusaram ajuda da população.

Um dos fenómenos mais extraordinários e bonitos sempre que existe uma catástrofe é a enorme onda de solidariedade que se gera. Todos querem ajudar, o que muitas vezes se revela um problema.

A energia e os recursos despendidos a canalizar a ajuda são enormes e, na maioria dos casos, infrutíferos.

A partir do momento que o Município de Portimão assumiu a confeção das refeições, as necessidades caíram a pique.

Os milhares de litros de água, de sumos, de bebidas energéticas que ainda estão armazenadas e sem destino definido devem fazer-nos pensar.

A ajuda só o é realmente se for útil para quem está no terreno. Um exemplo paradigmático é o do leite: há anos que já não se pede leite para os operacionais e, incêndio após incêndio, são centenas os litros de leite doados.

Mito 7: As faixas de gestão de combustível não servem para nada.

Pois foi exatamente numa dessas faixas que uma frente de 5 quilómetros foi impedida de entrar em Portimão, onde apenas arderam cerca de 300 hectares.

O último mito é sem sombra de dúvida o mais perigoso e o que pode ter implicações mais trágicas no futuro:

Mito 8: Quem resistiu à GNR salvou a sua casa.

Para desmistificar, volto a referir que “apenas” arderam 17 habitações. Claro que este “apenas” tem de estar rodeado de enormes aspas, porque, para cada uma das pessoas que perdeu o seu lar, é uma tragédia terrível que tenho dificuldade sequer em imaginar.

A questão de fundo é que, sem a intervenção das forças de segurança, o risco para as pessoas teria atingido patamares insuportáveis.

A este risco, teríamos de somar o risco acrescido a que os operacionais ficariam sujeitos em caso de desobediência generalizada das populações.

Confesso que não sei como reagiria se confrontado com uma situação similar, mas nenhum Comandante se pode dar ao luxo de não se preocupar com a segurança dos cidadãos e também com a dos seus próprios homens.

Ao ficar em casa, apesar das ordens de evacuação, não era só a sua vida que estavam a pôr em risco, era também a vida dos que procuravam combater as chamas e que, de repente, se viam com uma nova e mais arriscada missão.

A mensagem (falsa) de que quem resistiu à GNR salvou os seus pertences pode, num futuro próximo, ter consequências trágicas, pelo que é nossa obrigação repor a factualidade. Apelos públicos à desobediência civil são atos irresponsáveis, que nem no calor dos acontecimentos encontram justificação.

Combater um incêndio destas dimensões é uma tarefa hercúlea. São literalmente tomadas dezenas de decisões sobre cenários construídos com base na informação disponível.

As condições meteorológicas (47º centigrados sentidos no local onde se iniciou o incêncio), a orografia, os acessos ou os meios disponíveis tornam cada incêndio único.

As decisões são tomadas com base na previsibilidade de acontecer determinado evento. O combate é tudo menos uma ciência exata em que conhecemos a reação para cada ação.

Aquilo que pode ser apontado como falha pode não passar de uma resposta preparada para determinado acontecimento que não se chegou a concretizar ou que, por força de fatores não controláveis, assumiu um rumo distinto do inicialmente previsto. A realidade e a perceção que dela temos podem não ser exatamente a mesma coisa.

Confesso que pensei várias vezes antes de escrever estas linhas. Seria muito mais cómodo para mim manter o silêncio e esperar que o destino evitasse um mal maior num futuro próximo.

Nem sempre o mais confortável é o mais correto e esta é uma dessas situações. Reconheço a necessidade de encontrarmos rapidamente culpados para o que corre mal, mas isso não nos deve impedir de olhar para a realidade com um olhar crítico mas objetivo.

Apenas desejo apresentar uma versão diferente da versão tantas vezes repetida pelas redes sociais, nem que seja para nos fazer refletir – assumindo mais uma vez que não sou um especialista.

Uma última nota. Incêndios com estas características não se apagam com água. Estes incêndios começam a apagar-se, mesmo antes de deflagrarem – fazendo cada um de nós o seu trabalho de casa.

Esta é uma boa altura para pormos a mão na consciência e questionarmo-nos se realmente fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que a tragédia fosse evitada.

Talvez depois deste exercício consigamos reduzir o ruído e concentrarmo-nos no que realmente interessa: deixar para os nossos filhos uma terra melhor do que aquela que encontrámos.

 

Autor: Filipe Vital
Vereador da Câmara Municipal de Portimão

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