Monchique, que projeto de futuro?

Em mais uma das suas Crónicas do Sudoeste, o professor António Covas escreve: «Os programas de intervenção territorial não podem ser reduzidos a um pacote de medidas, necessitam de uma intencionalidade estratégica e operacional e de um calendário de execução»

Os grandes fogos são sempre um sinal de disfunção grave na história longa de um país. Mais uma vez, a tragédia abateu-se sobre os mais desfavorecidos. Até ao próximo episódio. Infelizmente, num país bipolar de longa data, quase tudo depende do Estado Central ou do Estado local.

Quer dizer, “há muita coisa que tem de permanecer na invisibilidade” porque simplesmente não há recursos para tudo. E os que permanecem na invisibilidade são aqueles que não perturbam a pacatez do sistema clientelar e corporativo já estabelecido.

O interior do país não faz parte desse sistema clientelar ou faz parte apenas marginalmente para “calar” algum barão local com a voz mais grossa e, portanto, também, com mais acesso e visibilidade política.

Esse interior esquecido e a sua longa invisibilidade, que só os incêndios perturbam, oculta uma morte há muito anunciada. Infelizmente, este é apenas mais um episódio porque a convergência das alterações climáticas, das alterações demográficas e das monoculturas agroindustriais preparam o caminho do abandono para que estes territórios sejam “finalmente capturados” sem que, para tal, seja necessário preparar a sua privatização.

Infelizmente, o universo liliputiano dos nossos pequenos municípios do interior é um terreno difícil para a formação de comunidades de autogoverno mais fortes e musculadas.

Em artigo anterior, escrevi: “Felizmente que não tenho soluções prontas a usar. Tenho apenas a esperança do bom senso e o bom senso diz-me que a criação das “comunidades intermunicipais”, colocadas entre os níveis local e regional, é um excelente pretexto para reconsiderar toda a política territorial de valorização do interior; que a triangulação destas comunidades com os politécnicos e as associações empresariais é um bom exercício de inteligibilidade territorial; que os contratos territoriais CIM/NUTS III são um bom instrumento de programação e planeamento; que um ator-rede e uma governança dedicada são dois fatores imprescindíveis para um bom desempenho, pois só há competência se houver permanência”

 

Monchique, que projeto de futuro?

Depois dos incêndios, as perguntas essenciais, nesta altura, parecem-me ser estas: quando dizemos Monchique, em que projeto de futuro estamos a pensar, qual é a linha de rumo que vamos prosseguir? Quem são os protagonistas e quem nos acompanha nesse caminho?

E se o território de partida é o concelho de Monchique, o território de chegada nunca poderá reduzir-se ao concelho de Monchique, ou, dito de outro modo, qual é o território-desejado onde queremos colocar tanta inteligência racional como emocional?

E como só há competência se houver permanência, qual é o ator-rede ou estrutura de missão que vamos implantar no terreno para administrar o projeto?

 

A valorização do interior

Para ser efetiva, a estratégia de valorização do interior precisa de respeitar certas condições gerais:

– Os programas de intervenção territorial não podem ser reduzidos a um pacote de medidas, necessitam de uma intencionalidade estratégica e operacional e de um calendário de execução;

– Os territórios não podem ser reduzidos a “nomenclaturas territoriais estatísticas” ou comunidades de municípios que não se sentem fazendo parte de uma comunidade de destino ou de um território-desejado;

– Os atores-principais não podem ser reduzidos a departamentos da administração pública local e regional, os territórios necessitam da mobilização da inteligência emocional e a criatividade dos cidadãos;

– Os controladores do processo de seleção e decisão não podem ser reduzidos a templates e algoritmos, os territórios necessitam de um ator-rede que in situ seja o seu “principal cuidador”;

– A economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, feiras ou festivais, é necessário que esses eventos sejam integrados em “atos orgânicos” de estruturação longa da economia local;

– A inovação territorial não pode ser reduzida à informática de gestão e administração, é necessária uma nova cultura de ordenamento urbanístico e rural com relevo para as pequenas e médias cidades do interior no que diz respeito ao seu autogoverno, em formatos socioinstitucionais inovadores como são a economia das plataformas e dos territórios-rede;

– A inovação agroambiental não pode ser reduzida a umas medidas difusas sem verdadeiro impacto, é necessário defender no âmbito da PAC pós-2020 uma nova geração de bens públicos rurais, tais como infraestruturas verdes, corredores ecológicos, equipamentos agroecológicos, mosaicos paisagísticos e, em consequência, pagamentos por serviços ambientais prestados no quadro da gestão e conservação destes bens públicos;

– O capital social é um fator crítico e não pode ser reduzido a uma sociabilidade fraca ou cooperação de baixa intensidade; de resto, não se compreende que sendo a cooperação um recurso abundante e barato não seja usado com mais frequência e intensidade pelos territórios do interior.

Finalmente, a estratégia de valorização do interior para ser bem-sucedida precisa da presença permanente de um ator-rede.

Este ator-rede tem quatro missões principais: promover a identificação com o território-rede, cuidar da territorialização das medidas aplicáveis, reunir uma massa crítica de atribuições, competências e recursos e promover a formação e rejuvenescimento do capital social do território.

Por outro lado, importa evitar a todo o custo que “os silos ministeriais” descarreguem as medidas que têm em stock sobre os territórios, sem cuidar da territorialização dessas medidas e respetivo envelope financeiro.

Esta é, justamente, a competência fundamental do ator-rede, a saber, ser um centro de racionalidade, cuidar da retenção dos efeitos de aglomeração, reduzir os efeitos externos negativos e potenciar os efeitos externos positivos. Para tal, os contratos territoriais de desenvolvimento são uma opção em aberto ( Público,16 Dez, 2015).

 

O Programa de Intervenção e Desenvolvimento Territorial

O programa de desenvolvimento territorial para a zona de intervenção nunca será mobilizador se não tiver a coragem de definir quais são os públicos a que se destina, por exemplo: desempregados de longa duração, jovens desempregados à procura do primeiro emprego, aposentados e reformados de baixos rendimentos, grupos vulneráveis e sensíveis da população, trabalhadores precários em trânsito, trabalhadores migrantes com dificuldades de inclusão, pequenos empresários em dificuldade, etc.

Uma vez conhecidos os públicos mais carenciados e as suas necessidades, estamos em condições de definir alguns eixos de intervenção que na sua estreita interconexão podem ajudar a estabelecer estratégias individuais de autoemprego, de associativismo e cooperativismo, de criação empresarial, por exemplo, no quadro dos eixos seguintes de intervenção:

. organização de um sistema de abastecimento alimentar multilocal
. organização de um sistema de institutional food e circuitos curtos
. organização de um serviço de trabalho a tempo parcial
. organização de uma plataforma de trabalho on demand
. organização de um sistema de voluntariado
. organização de uma rede de mercados de ocasião
. organização de uma rede de serviços ambientais
. organização de uma rede de serviços energéticos
. organização de uma rede de cuidados de saúde itinerante
. organização de uma rede de serviços turísticos (banco de alojamento)
. organização de uma rede de artes e ofícios
. organização de uma rede de eventos e animação turística
. organização de uma rede de espaços de coworking.

Assim sendo, e para pôr em prática estes eixos de intervenção, a estratégia de desenvolvimento territorial deverá prosseguir a seguinte metodologia:

. criar uma comissão promotora para a área de intervenção
. definir o território de partida e o território-rede de chegada
. criar o ator-rede e o grupo de missão
. desenhar os primeiros projetos associativos e colaborativos
. desenhar os primeiros trajetos profissionais pluriativos
. recrutar os vários destinatários das ações de intervenção e sua afetação
. desenhar o primeiro pacote de formação profissional
. desenhar os primeiros projetos empresariais do projeto
. desenhar os primeiros sistemas remuneratórios alternativos e complementares
. desenhar os primeiros círculos/clubes de amigos do projeto
. desenhar o primeiro sistema de incentivos apropriado (microcrédito)
. desenhar o primeiro sistema de financiamento participativo do projeto.

O ator-rede e o grupo de missão são a estrutura operacional do território-rede de Monchique/Barlavento algarvio.

 

O sistema operativo do Sudoeste/Barlavento Algarvio

Creio que a dificuldade maior do Sudoeste/Barlavento Algarvio diz respeito ao seu sistema operativo e sua “arquitetura de interiores”. Quando um programa é filho de medidas já existentes e de sistemas de financiamento já estabelecidos o resultado não poderá ser surpreendente.

É verdade, não temos, ainda, uma comunidade intermunicipal do Sudoeste ou do Barlavento Algarvios, uma agência regional, uma sociedade de desenvolvimento, um fundo de capital de risco, uma rede de microcrédito, uma start up de crowdfunding, uma plataforma tecnológica, uma incubadora de microempresas, um laboratório colaborativo, um espaço de coworking. Temos em contrapartida o sistema convencional “CCDR/CIMAL/NERA”, normalizado e padronizado por plataformas, templates e algoritmos.

O “Sistema CCDR/CIMAL/NERA” não é o triângulo dourado da territorialização das políticas públicas. Faz o que pode. O Sudoeste/Barlavento não é, ainda, um território-desejado, os seus sinais distintivos não têm ainda a força de uma identidade própria.

O grupo de missão não existe e não é um centro nevrálgico de racionalidade territorial, o ator-rede não é, ainda, o cuidador que interpreta o sentimento e a ambição do território-desejado. Tudo isto dá uma ideia do que falta ainda fazer.

 

Os signos distintivos territoriais e as start up da nossa imaginação

Se não ficar provado no território do sudoeste e barlavento algarvios a geografia sentimental e a verosimilhança racional e emocional do nosso projeto de futuro, teremos falhado mais uma tentativa de valorização do interior.

Deixo aqui dois exemplos para um projeto de futuro: os signos distintivos territoriais e as start up da 2ª ruralidade.
Conhecer os signos distintivos territoriais abre-nos a porta para diferentes cenografias do território. O naturalismo romântico do nosso rural profundo será sempre um trunfo e um ativo preciosos.

Para lá da agricultura convencional chegará também a “agrocultura” e os os neo-rurais mais românticos. O mundo rural e o campo tornar-se-ão uma espécie de cenário natural para as produções de nicho, as mais variadas.

Os signos distintivos territoriais são a matéria-prima de um território e é sobre eles que se vai construir o projeto de desenvolvimento.

Dou alguns exemplos: áreas de paisagem protegida e zonas sensíveis, amenidades paisagísticas e turísticas, endemismos locais, percursos de natureza, denominações de origem protegida, sítios e estações arqueológicos, museus e monumentos, serviços ecossistémicos e corredores verdes, apelações patrimoniais, materiais e imateriais, matas e bosquetes, mercados de nicho e marcas coletivas, parques e quintas pedagógicas, paisagens literárias, festivais, romarias e peregrinações, etc.

Estes sinais distintivos constituem o chamado colar de pérolas do território-rede e é a partir deles que se faz a construção social de uma “geografia desejada”, de uma nova identidade simbólica.

Ao mesmo tempo que testamos a inteligência e a imaginação abrem-se novas cadeias de valor e as start-up da economia digital, sobretudo as empresas do marketing digital e da publicidade, aproveitarão a oportunidade e tomarão o mundo rural como um décor para as suas próximas incursões e representações.

Eis algumas ideias para uma pequena incubadora de start up da 2ª ruralidade a criar no concelho de Monchique que, por exemplo, as águas de Monchique e as termas de Monchique poderiam apadrinhar.

Uma rede multi-local de pequenas economias de aglomeração

O concelho de Monchique não é território que chegue para montar uma economia de rede com profundidade e espessura suficientes. É fundamental desenhar uma “arquitetura de interiores”, isto é, uma rede multi-local de pequenas economias de aglomeração, uma espécie de administração territorial polinucleada que seja capaz de gerar e reticular pequenas economias de aglomeração em redor de núcleos de governação.

Eis alguns núcleos dessa governação territorial em redor dos quais podem emergir as start up antes mencionadas:

– Uma rede de produção descentralizada de energia: os sistemas de microgeração em rede têm um balanço energético muito favorável, não obstante algumas dificuldades de montagem dos sistemas que o tempo resolverá facilmente; acresce que estas redes permitirão converter consumidores puros de energia em produtores e vendedores de energia à rede elétrica nacional.

– Uma rede de produção local e multilocal de alimentos: não apenas no “modo biológico”, mas, também, nos “modos integrados” para os quais se elaborariam programas de conversão agroecológica apropriados a cada espaço biofísico, já para não falar das hortas sociais e urbanas nos pequenos aglomerados; esta agricultura de proximidade, devidamente organizada, poderia abastecer creches, lares, cantinas, hospitais, escolas, etc.

– Uma rede de economia circular: envolve a política dos 4R – reduzir, reciclar, reutilizar e reparar – mas, também, a conservação do património genético, a produção de novos inputs para as atividades económicas, a compostagem, a saúde dos ecossistemas e a sua conexão com a saúde pública.

– Uma rede de serviços ecossistémicos e biofísicos: a gestão proactiva do mosaico paisagístico, não apenas no sentido estritamente biofísico, mas, também, no sentido da bioconstrução e da regulação climática; a arquitetura biofísica inclui, ainda, a arte e a cultura no sentido de uma estética da paisagem com valor cultural e simbólico, como expressão artística e como fator de atratividade que atualizam a memória e o futuro dos lugares-desejados;

– Uma rede de serviços turísticos em espaço rural: é, seguramente, a atividade motora do próximo futuro, a atividade que torna possível e viável a existência e a gestão do sistema colaborativo e todo o trabalho de marketing territorial que resulta da necessidade de pôr em relevo a importância fundamental dos quatro núcleos de governação anteriormente referidos e as suas respetivas cargas de visitação;

 

Nota Final

Nestas diferentes áreas de intervenção os ambientes inteligentes – a chamada smartificação do território – serão determinantes, porventura com custos crescentes de prestação de serviços que se torna necessário mutualizar como serviços comuns colaborativos.

Falo, por exemplo, da silvicultura preventiva à ecologia do fogo, da hidrologia à bioengenharia, da agricultura de precisão à luta biológica e à arquitetura da paisagem, da telemedicina aos serviços ambulatórios ao domicílio, já para não referir a verdadeira revolução na visitação turística, que começa por ser uma pré-visão e uma pré-visitação ex situ para se transformar, depois, numa visitação interativa in situ.

A mudança que se avizinha e anuncia, em todos os elementos que atrás referimos, é conhecimento-intensiva, por isso não está ao alcance dos modos mais convencionais de governo e administração da clássica propriedade agro-rural. Já não basta ser proprietário ou pagar uma renda, é imprescindível produzir serviços comuns de valor acrescentado que têm um custo e um benefício para toda a comunidade.

Neste sentido, o condomínio agrorural é um modelo de governo e administração do território inspirado no condomínio urbano, mas que o ultrapassa largamente por razões que se prendem com a natureza e complexidade do mosaico agro-silvo-pastoril em que assenta.

Os jovens universitários algarvios podem conceber plataformas tecnológicas para gerir estas redes descentralizadas, criar as suas start up para o efeito e prestar serviços inestimáveis às populações locais. Não há nenhuma fatalidade que impeça os barlaventinos de atingir tal desiderato.

 

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