Crónicas do Sudoeste Peninsular: De novo, a descentralização administrativa!

Mais um artigo do professor António Covas, desta vez refletindo (de novo) sobre a descentralização de competências

A descentralização é e será um tema recorrente da vida política portuguesa. O Sul Informação noticiou mais um pacote de medidas sobre a descentralização aprovado pelo Conselho de Ministros do dia 13 de setembro, entre as quais se contam a justiça, o policiamento de proximidade, a proteção civil, o turismo, os fundos comunitários, os jogos de fortuna e azar e as zonas balneares.

Como não se conhece ainda o pacote financeiro correspondente, é compreensível que muitos municípios hesitem sobre a melhor altura para aderir a esta nova condição. Em linguagem popular, a “mercearia do costume” e muita dissimulação à mistura a nove meses das Eleições Legislativas.

Sem negar a importância das novas competências e as respetivas transferências, bem como o papel atribuído às entidades intermunicipais, importa colocar este exercício de descentralização na devida perspetiva.

O “sistema move-se”, porém, nada disto, em bom rigor, altera substancialmente a situação hoje vigente. Num país que tem e terá uma dívida pública e privada gigantesca, será sempre a política macroeconómica europeia e nacional a determinar quanto investimento público, empréstimo obrigacionista, restrição, cativação ou libertação de fundos são autorizados e em que condições.

Quer dizer, passam as competências e os recursos, mas permanece, cada vez mais apertada, a condicionalidade macroeconómica e financeira, ela, também, cada vez mais sofisticada (basta lembrar que a Troika continuará a visitar-nos semestralmente até 2035).

Além do mais, num mundo globalizado e virtualizado, as principais decisões não passam por estas pequenas unidades administrativas que são a grande maioria dos nossos municípios.

 

A sociedade política local e a instituição-plataforma municipal

Seja como for, para lá desta transferência de competências e recursos, e de outras que se seguirão, nenhum de nós espera que o município do século XXI receba essas novas atribuições e competências como se fosse, ainda, um município do século XX.

No futuro próximo, quando os nativos digitais assumirem funções de representação, a sociedade política local irá separar-se cada vez mais do poder autárquico.

Ao mesmo tempo, esperamos nós, no quadro da sociedade da informação e comunicação, o poder local será cada vez mais participativo e democrático porque acompanhará, em geometrias e ritmos muito variáveis, a difusão da cultura digital, da economia das redes e dos valores da sociedade colaborativa.

Nessa altura, terá chegado a vez da instituição plataforma-municipal, como uma constelação de conselhos municipais apoiados em secretariados executivos para administrar diferentes políticas municipais de uma forma muito diferente da atual.

Quando as gerações Y e Z, os chamados nativos digitais, atingirem a idade adulta e iniciarem a sua participação política (mais ou menos uma década), o poder municipal estará mais distribuído entre a sociedade política local e a instituição município-plataforma.

Três grandes vetores afetarão a estrutura técnica e tecnológica da autarquia local tal como a conhecemos hoje: a desmaterialização, a desintermediação e a automação.

Estas alterações funcionais modificarão substancialmente a configuração técnico-administrativa e o capital social das autarquias locais que evoluirão, muito provavelmente, para uma estrutura de serviços a quatro níveis: uma loja do cidadão, presencial e online, em primeira instância, uma estrutura de administração polivalente e itinerante orientada para o problem-solving, em segunda instância, uma estrutura de governança preventiva e participativa orientada para o problem-saving, em terceiro lugar, e, por último, uma estrutura de planeamento e programação orientada para os projetos de maior fôlego e, também, mais criativos.

No contexto acabado de enunciar, estas transferências de atribuições, competências e recursos são apenas isso, isto é, pequenas alterações incrementais muito dependentes de uma “mercearia institucional e financeira” extremamente cansativa em tempo e energia despendidos.

Além disso, não se descortina ainda qual é a nova estrutura de relações político-administrativas com os restantes setores da administração desconcentrada do estado, nos planos regional, sub-regional e mesmo distrital.

Trata-se, aqui, de recriar o complexo digital e cooperativo da administração local, interagindo mais com os cidadãos e as suas organizações, muito provavelmente em plataformas de outsourcing muito diversas e imaginativas. Aliás, estou em crer que a expressão autarquia local passará de moda por invocar conceitos mais conservadores como autarcia, hierarquia e autoridade.

Para já, a única certeza que temos hoje é a de que haverá mais pluralidade e diversidade de poderes locais e que essa nova realidade, a sociedade política local, mudará gradualmente a face do poder autárquico tal como o conhecemos hoje.

Em 2030, no final do próximo período de programação plurianual, o poder local estará irreconhecível. Para melhor, espero eu.

 

Digitalização e verticalização das políticas do território

A referência recorrente às entidades intermunicipais, comunidades intermunicipais e outras entidades, neste pacote administrativo é, em si mesma, muito eloquente, mais pelo que oculta do que pelo que revela.

Em primeiro lugar, pelo modo como essas entidades podem interagir com os municípios e o seu universo muito peculiar (fundações, empresas, associações), em segundo lugar, pelo modo como se articulam com a administração regional do estado, já para não referir as relações inovadoras com o universo colaborativo e participativo emergente.

As questões pertinentes nesta altura passam pela atuação futura das entidades intermunicipais, mas, também, e porventura mais decisivamente, pela chamada “verticalização das políticas do território” promovida pela digitalização funcional dos serviços regionais e pela segregação das suas funções atuais.

Podemos então perguntar: passaremos nós, no futuro próximo, da municipalização e da regionalização à sub-regionalização, por intermédio da criação de entidades intermunicipais de teor muito variado?

Serão as entidades intermunicipais um facilitador autorizado e competente em direção à nova sociedade política local ou, pelo contrário, constituirão mais um travão político-partidário, clientelar e corporativo, ao nascimento dessa nova sociedade?

Com efeito, é bom não esquecer que a digitalização favorece a especialização funcional dos serviços, logo a sua desintermediação, verticalização e recentralização.

As direções-gerais em Lisboa, investidas na condição de “autoridade nacional de gestão” perante Bruxelas, não terão muita “apetência” para lidar com serviços regionais que não estão diretamente sob a sua tutela hierárquica e funcional.

Se a sociedade política local não estiver atenta, esta tendência pesada introduzida pela revolução digital e o algoritmo regulamentar de Bruxelas poderá contrariar muitas promessas de descentralização.

 

Aprofundar a democracia local, intermunicipal e regional

Sem um novo sistema de valores ajustado à sociedade da informação e comunicação, só haverá bricolage político-partidária. No plano da representação política, a democracia local pode ser organizada em redor de quatro eixos principais ou, se quisermos, de quatro “tipos democráticos”: a democracia representativa, a democracia participativa, a democracia associativa intermunicipal e a democracia colaborativa.

Estas relações a quatro dimensões configuram uma nova ecologia política, institucional e sociológica do poder local do futuro. Há, obviamente, uma autonomia relativa do município face a este sistema de coordenadas, mas o essencial da política municipal será determinado, em boa medida, por esta matriz de coordenadas. Vejamos, esquematicamente, a contextualização destas “quatro democracias”.

No quadro da democracia representativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos para “relações verticais para cima” em direção à administração regional e central. Aqui, as principais referências são: a regionalização, os pacotes legislativos sobre transferências de competências para os municípios e as reformas parcelares e sectoriais da administração pública desconcentrada.

No quadro da democracia participativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos para as “relações verticais para baixo” em direção aos cidadãos e grupos de interesses. Aqui, as principais referências são as seguintes: uma nova lei eleitoral de listas abertas, uma gestão participativa organizada em conselhos locais, mais democracia digital, plataformas tecnológicas, redes e comunidades online e vários tipos de consulta direta.

No quadro da democracia associativa, a prática corrente da administração autárquica remete-nos para as “relações horizontais inter pares” em direção à própria organização política local.

Aqui, as principais referências são as seguintes: mais e melhor associativismo intermunicipal, um novo federalismo autárquico de 2º grau, comunidades intermunicipais, mais euro-cidades e euro-regiões no quadro transfronteiriço e europeu.

Por último, no quadro da democracia colaborativa, é a inovação municipal e as relações extra-territoriais que devem prevalecer. Aqui, as principais referências são as seguintes: as plataformas digitais e as redes sociais, os espaços de coworking e os tiers-lieux, os territórios-rede de geometria variável, os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT).

A partir do aprofundamento democrático desta tipologia de relações é possível imaginar um modelo de governação intermunicipal e regional muito mais estruturado e complexo, em busca, sobretudo, de mais inteligência coletiva territorial. O exemplo que se segue é um pequeno ensaio de aplicação à região e aos municípios do Algarve:

– Conselho Executivo Regional (formado pelos diretores sectoriais regionais);
– Presidente do Conselho Executivo Regional equiparado a Secretário de Estado;
– Estruturas de missão para as unidades territoriais do PROTAL;
– Entidades intermunicipais para o upgrading de certos bens e serviços comuns.
– Autarquia online (loja do cidadão) para os serviços de rotina do município;
– Conselhos Locais Participativos para os serviços comuns ou comunitários;
– Núcleos de programação, planeamento e criatividade;
– Estruturas polivalentes e itinerantes de assistência municipal;
– Estruturas de missão para os territórios-rede de geometria variável;
– Forum Municipal (espaço público de debate organizado).

Nesta linha de pensamento, retomo o que escrevi em artigo anterior (Público, 08-05-2018) sobre a futura administração municipal:

1. Um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação multiníveis em múltiplas formas e modalidades de rescaling;

2. Um município mais aberto e interativo em matéria de economia municipal, acertando com grupos de cidadãos uma nova crowd economy, isto é, práticas inovadoras de crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning e distinguindo entre serviços públicos e serviços ao público;

3. Um município mais móvel e itinerante na prestação de serviços pessoais, inovando em matéria de serviços de mobilidade, transporte e bancos de tempo, tendo em vista a criação de uma genuína economia solidária, em especial, em benefício da população sénior do concelho;

4. Um município muito mais verde em matéria de economia dos 4R (reduzir, reciclar, reparar e reutilizar) e muito mais eficiente em matéria de recursos ociosos criando uma “dinâmica economia colaborativa” no que diz respeito ao reaproveitamento destes recursos subutilizados;

5. Um município muito mais virado para a economia criativa e cultural em tudo o que diz respeito à gestão de recursos intangíveis e simbólicos, isto é, uma verdadeira economia imaterial ao serviço da cultura;

6. Um município muito mais polivalente, horizontal e interativo no que diz respeito à sua orgânica interna, que se traduzirá numa nova relação funcional entre o front-office e o back-office, devidamente acompanhada de uma alteração substancial da estrutura dos seus colaboradores, isto é, do seu capital social;

7. Um município cada vez mais peer to peer, com menos hierarquia e mais heterarquia, um verdadeiro “par interpares”, por exemplo, em matéria de parcerias público-privadas mais inteligentes territorialmente, por exemplo na provisão de serviços ao público;

8. Um município menos fiscalista e mais contratualista no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto de grupos de interesse locais, regionais, nacionais e internacionais;

9. Um município mais cristalino e transparente no que diz respeito à accountability municipal, isto é, com uma monitorização das políticas públicas e das contas públicas muito mais interativa e em tempo real;

10. Um município com via verde jovem no domínio da economia digital, isto é, mais aberto e imaginativo para a sua população jovem, por via de diversas plataformas inteligentes que envolvam a escola e suas extensões, desde simples espaços de coworking até estruturas de fablab e centros de investigação.

 

Nota Final

O município do século XXI estará permanentemente em interação com a sociedade política local, confunde-se com ela, será uma espécie de plataforma móvel em permanente remontagem.

O município do século XXI apresentará uma estrutura de custos e geometria variáveis, orientada para tornar mais efetiva a inteligência coletiva territorial, que será, doravante, a sua principal motivação e objetivo.

No mesmo sentido, assistiremos ao crescimento do federalismo autárquico sob a forma de entidades intermunicipais para áreas, projetos e serviços de maior envergadura.

As relações exteriores serão, igualmente, um vetor fundamental da vida local e regional, nos planos artístico, desportivo e cultural, muito para lá das vulgares geminações.

O município do século XXI será concebido, não de dentro para dentro, como até aqui, mas de dentro para fora e de fora para dentro.

O município do século XXI será, definitivamente, um ator mais cosmopolita. Cuidado, porém. A recentralização, promovida pela digitalização de serviços e funções, espreita a cada canto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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