Monchique, ali à saída de Pedrógão

«Infelizmente, não temos memória estratégica e a desfaçatez e impunidade política – não partidária, já que todos têm a sua quota-parte de culpas – continuará»

No dia 19 de Junho de 2017 escrevi neste espaço um texto, intitulado “Pedrógão, Algarve”.

Aí, num exercício quase profético, constava o seguinte: “Podemos escrever, falar, gritar, que não passaremos de um coro de mudos, já que nada vai trazer de volta as vítimas do fogo florestal de Pedrógão Grande. Pior, começa a parecer que nada pode evitar a repetição de tal calamidade. Ontem Pedrógão, amanhã Monchique, São Brás de Alportel, qualquer sítio. Separa-nos a distância do acaso, já que estamos por nossa conta.”

Se Outubro de 2017 fundamentou o receio da repetição, com as consequências dramáticas que se conhecem, Agosto de 2018 tornou amargamente certeira a mórbida mas previsível previsão, passe a redundância, quanto à primeira vítima algarvia.

Não sendo eu bruxo, é legítimo concluir que a coisa era realmente visível, para quem quisesse ter os olhos abertos.

Ainda assim, outros viam outras coisas, e um mundo bem mais cor-de-rosa.

Foi assim que o nosso Primeiro-Ministro, aquando da visita ao Algarve, no início do passado mês de Junho, não hesitou em apontar Monchique como caso extraordinário de articulação entre município e particulares na aplicação da delirante cartilha governamental, milagrosa panaceia para todos os fogos da época 2018. Ao mesmo tempo, o Centro de Estudos Florestais do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa apontava Monchique como o principal concelho em risco de incêndio.

Obviamente isto foi ignorado, pois a realidade é um lastro intolerável para as vacas voadoras.

E assim, Monchique, aluno exemplar, deu-se afinal mal, e a enganadora sensação de dever cumprido transformou-se entretanto no dilacerante pesadelo de quem fez tudo o que lhe indicaram, e ainda assim tudo perdeu.

Porque o que lhes foi dito para fazer em Monchique, como no resto do País, não passou de uma sórdida manobra de distracção, para nos manter a comer a sopa com garfo no que a fogos diz respeito.

Contra o conhecimento, contra a técnica, contra a comissão independente, contra o bom-senso, contra o respeito pela dor de um País que ainda lembra os mortos de 2017, o Governo achou por bem pôr os ovos nos mesmos cestos de sempre, acrescentando uma lógica capaz de fazer La Palice ficar verde de inveja: sem árvores não há fogo.

Tentou tudo nesse esforço. Também no início de Junho, o ministro da Administração Interna anunciava triunfante o estado de preparação, com o maior – e convenientemente mais caro – dispositivo de sempre.

Isso, e SMS a avisar que estava calor. Até a Glassdrive foi chamada à refrega. Mas reparar quebras isoladas ou substituir vidros é uma coisa. Conseguir fazer algo por uma manta de estilhaços incoerente é outra.

Pouco mais de dois meses volvidos, e um incêndio depois, a propaganda esfumou-se nas cinzas de mais de 23.000 hectares.

Ou não fosse Portugal a terra dos sistemas perfeitos… mas sistematicamente azarados. É assim que se explica que, com excelência por todo o lado, tantas coisas corram tão mal. “Excepções”, diz António Costa.

É assim na prevenção dos fogos, é assim na promoção da saúde, é assim nos transportes, é assim na política, é assim no combate à corrupção.

Desta feita, felizmente, não morreu ninguém. Mas muitas vidas foram destruídas.

No calor do momento, o Primeiro-Ministro tentou convencer-nos de que trabalhava afincadamente na resolução do fogo.

Como? Através de um ultrajante ensaio fotográfico a partir do seu já costumeiro e ofensivo escritório de férias em tempo de aperto. Em poses tão espontâneas e naturais como as de um matraquilho a ensaiar a espargata. E tudo isto num tweet, talvez em homenagem a Donald Trump. Mal podemos esperar pelo focus group, ou um concerto dos Xutos com o Presidente (provavelmente já não no modo Mitch Bacano que mostrou recentemente).

Infelizmente, não temos memória estratégica e a desfaçatez e impunidade política – não partidária, já que todos têm a sua quota-parte de culpas – continuará.

Sabia-se que Monchique estava em risco. Devido ao seu historial de incêndios e à grande percentagem da área coberta por floresta – na circunstância, com presença muito significativa de eucaliptal – e matos. Tudo isto com sérias e justificadas dúvidas quanto à gestão de combustível nesse contexto. Tudo isto avisado.

Porque face ao crescente despovoamento e abandono das nossas paisagens rurais (Monchique é mais uma vítima, e infelizmente não a última), os incêndios obedecem a ciclos determinados pelo crescimento do combustível, ou seja, pelo tempo que demora até o material vegetal crescer e ser em quantidade e densidade tal que propicie a fácil propagação de uma qualquer ignição – seja espontânea, criminosa ou negligente.

Se as nossas paisagens, em Monchique, Pedrógão, onde seja, fossem ordenadas, pensadas e estruturadas, vividas, geridas, com um leque diversificado e complementar de actividades, estas ignições existiriam – como existem desde há pelo menos 100.000 anos, quando controlámos o uso do fogo – sem que encontrassem condições para atingir esta intensidade e severidade. Seriam estruturalmente resistentes e resilientes, com mais matas e menos “florestas”.

Mas para isso é preciso gente. Gente que monde, corte, apanhe, consuma, queime, utilize organicamente a vegetação, o combustível. Gente que trabalhe e molde a terra, que organize e dinamize os ciclos ecológicos, principalmente o da fertilidade. E gente é o que falta nestas paragens.

Porque não há atractividade ou competitividade na actual configuração do nosso modelo territorial e económico, porque não há trabalho, rendimento ou condições de vida. Se calhar manter aberta uma escola ou um centro de saúde em espaço rural faz muito mais pela prevenção de incêndios do que uma desmatação à brasileira.

É por isso que cada vez menos gente e cada vez mais terra se entregam a modelos de rentabilização remota, frequentemente ausente, de que o polarizador eucalipto é sintoma, e não causa.

Porque é da morte do mundo rural, da morte da paisagem que estamos a falar. Do modelo territorial bipolar e descompensado que perpetua o nosso falhanço enquanto País.

Mas quanto a isso ninguém quer fazer nada. Porque não dá nas vistas, porque não permite jogos de protagonismo, porque – lamentavelmente – não alimenta horas de painéis televisivos, porque não é imediato, porque não serve interesses, a não ser os do País e das gerações presentes e vindouras.

E desses, ninguém quer saber.

Almada Negreiros já nos tinha alertado: “Quando nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a Humanidade”.

Por isso mesmo, se não for antes, para o ano cá nos encontramos, neste preciso ponto, a chover não no molhado, mas no queimado.

P.S. – uma grata, e nunca gasta, palavra de reconhecimento para a coragem dos homens e mulheres das corporações de Bombeiros de Norte a Sul. Os tais que, contra medo e adversidade, e seguramente com os seus humanos defeitos, enfrentam o pesadelo de outros, pelos outros, de frente. Os tais a quem o Estado não providencia sequer água, alimento ou descanso. Os tais que tanto servem de carne para canhão como bode expiatório. Os tais que, ainda assim, nunca se negam. Obrigado, sois grandes.

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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