Nova estela da misteriosa escrita do Sudoeste é vedeta da National Geographic e mostra-se no Museu de Loulé

Estela milenar indica que a serra do Caldeirão ainda pode esconder muitos segredos e tem um enorme potencial arqueológico

Uma nova estela, com sete a oito signos da misteriosa escrita do Sudoeste, encontrada no final da Primavera no concelho de Loulé, é hoje revelada na edição portuguesa da revista «National Geographic» e passa a poder ser vista no Museu de Loulé.

Esta estela (bloco de pedra que se fixava no solo), com mais de 2500 anos, ou seja, da Idade do Ferro, tinha sido recolhida há cerca de oito anos por Jorge Narciso, do Grupo Etnográfico da Serra do Caldeirão, que a encontrou na Cortelha, como parte integrante da parede de um poço construído pelo seu sogro, muitos anos antes. A pedra tinha as letras viradas para baixo.

Passou a ser usada, sempre com as letras viradas para baixo, como adereço pelo Grupo Etnográfico da Serra do Caldeirão, onde simbolizava a pedra da lavadeira. E foi em Maio passado, durante o cortejo da Festa da Espiga, em Salir, que o fotógrafo Jorge Graça, com o seu olhar atento, a viu e reconheceu os símbolos da escrita do Sudoeste nela inscritos.

«O Jorge Graça, que é um fotógrafo profissional com muito trabalho feito sobre o património de Alte e da serra, fotografou a peça, falou com a Dália Paulo e enviou-me imagens. E foi assim que confirmámos que se tratava, de facto, do fragmento de uma nova estela», recordou Pedro Barros.

Dália Paulo, diretora da Câmara de Loulé, disse ao Sul Informação que a forma como «esta estela foi apropriada pelo Grupo Folclórico e depois descoberta é digna de ser contada. É que esta pedra andou durante anos a fazer parte do carro alegórico que o grupo fazia para a cortejo etnográfico. Este ano, não foi o Senhor Narciso que fez o carro e, em vez de a porem com as letras para baixo, puseram ao contrário. E foi no desfile que o Jorge Graça se apercebeu. Esta pedra já tinha passado no desfile todos estes anos, mas ninguém tinha ainda reparado no seu valor arqueológico».

Jorge Narciso, sublinhou ainda aquela responsável, «não sabia o que era, mas tinha percebido que a pedra tinha interesse. De tal forma que a incorporou no desfile etnográfico».

Segundo o arqueólogo Amílcar Guerra, da Uniarq – Centro de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, «a leitura do texto é clara, com todos os traços bem gravados, e revela alguns signos raros e outros inéditos».

O fragmento de estela, com 48×37 centímetros, apresenta «sete a oito signos gravados», reconhecendo-se o E, o R e os A. Esta escrita que se concentra no Sudoeste Peninsular, daí o seu nome, adaptou o alfabeto fenício e depois criou uma escrita própria ajustada à língua das populações que aqui viviam.

Pedro Barros, um dos arqueólogos responsáveis pelo “Projecto ESTELA”, que tem levado à descoberta, inventariação e estudo deste objetos, salienta que as estelas são «um dos maiores tesouros da arqueologia europeia, havendo apenas cerca de cem exemplares e a maioria foi encontrada em Portugal (perto de 90%)».

«Esta escrita é um símbolo privilegiado da herança histórica do Algarve e Baixo Alentejo, pois ela é, afinal, a mais antiga manifestação de escrita da Península Ibérica e ainda hoje está por decifrar», acrescenta.

No caso desta nova estela da Cortelha, além dos contributo para a investigação linguística da misteriosa e ainda indecifrada escrita do Sudoeste, a sua importância tem a ver com o facto de ter sido «encontrada numa área onde até hoje ainda não tinham sido encontrados vestígios arqueológicos da Idade do Ferro, revelando assim o enorme potencial que a Serra entre o Algarve e Baixo Alentejo tem, para investigar este tema».

«Esta estela revela também que há uma zona de transição e não um hiato», como até agora parecia, na serra do Caldeirão, entre os «dois conjuntos conhecidos no concelho de Loulé, um na área do Ameixial, onde foi encontrada há 10 anos a última estela, e outro na zona Benafim/Salir», salientou Pedro Barros, em declarações ao Sul Informação.

«Se bem trabalhada do ponto de vista arqueológico, a serra vai revelar muitos dos segredos que ainda esconde», acrescentou o arqueólogo que, em conjunto com Samuel Melro, tem sido o responsável pelo “Projecto ESTELA”.

Para já, nos próximos meses, a dupla de arqueólogos espera poder voltar ao vale onde se encontra o poço, porque podem ter «muito potencial arqueológico», para tentar «identificar o sítio arqueológico de onde provém a estela», que poderá ser uma necrópole. Mas Pedro Barros não tem demasiadas expectativas, uma vez que «tudo pode já ter sido remexido», ao mesmo tempo que a zona está coberta de mato, o que torna difícil o trabalho de prospeção arqueológica.

Depois de descoberta a sua importância, a estela da Cortelha, que foi doada por Jorge Narciso, ao Museu Municipal de Loulé, num «exemplo extraordinário de cidadania livre e responsável», pode ser vista a partir de hoje, 27 de Julho, a até ao final de Setembro, naquela estrutura museológica.

«Tal como neste caso, há informação que pode estar na posse de muitas pessoas da terra, que não sabem da importância do que têm em mãos. Por isso, se alguém tiver alguma coisa arqueológica, que possa ter interesse, o meu apelo é que vá até ao Museu de Loulé ver se é importante», concluiu Pedro Barros.

Uma das estelas epigrafadas com a Escrita do Sudoeste, patentes no Museu Nacional de Arqueologia

As restantes estelas com escrita do Sudoeste do concelho de Loulé também podem ainda ser observadas na premiada exposição de arqueologia “Loulé: Territórios. Memórias. Identidades”, patente até ao final do ano no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, bem como no Museu da Escrita do Sudoeste, o MESA, em Almodôvar, dedicado ao tema.

A Câmara de Loulé salienta que «tem vindo a promover e apoiar um conjunto de ações para valorização deste Património Cultural no interior do concelho», como são as iniciativas do festival de caminhadas do Ameixial (Walking Festival Ameixial), que «escolheu esta escrita como sua identidade e fator diferenciador», ou a «candidatura para a valorização dos sítios arqueológicos da escrita do Sudoeste do Ameixial, ou mesmo a recente homenagem a José Rosa Madeira, que doou a vários Museus um importante conjunto de estelas com escrita do Sudoeste».

Em preparação, pelo Museu de Loulé, e integrada nas atividades do Ano Europeu do Património sobre o tema “Partilhar Memórias”, está «uma homenagem aos guardiões da identidade de Loulé, os “louletanos” singulares e doadores beneméritos, sem os quais o Museu Municipal e a história local, regional e mesmo nacional hoje não seria a mesma».

Será no dia 27 de Setembro, no âmbito das Jornadas Europeias do Património. «O Senhor Jorge Narciso será um dos nossos convidados especiais nesse dia e uma das pessoas que serão homenageadas», revelou Dália Paulo.

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