E as melhores praias no Algarve de há 100 anos eram…

Em 1918, as praias do Algarve já começavam a despontar, mas a realidade era bem diferente da atual. Livro com 100 anos mostra quais as principais praias algarvias da época

O Verão no Algarve é, nos nossos dias, sinónimo de praia. Afinal, a região congrega ao longo do seu litoral algumas das mais belas praias da Europa, que atraem anualmente milhões de visitantes. Todavia, nem sempre assim foi.

Só na década de 1870, ir à praia passou a integrar os hábitos dos portugueses. Ramalho Ortigão publicou, em 1876, o livro “As praias de Portugal – Guia do banhista e do viajante”, um clássico que nos permite hoje conhecer os hábitos e costumes, bem como as principais zonas balneares da época.

No entanto, das cerca de 30 praias indicadas, apenas uma se localizava abaixo do rio Tejo, a de Setúbal. Nem mesmo no capítulo “As praias obscuras” foi feita qualquer referência aos areais algarvios.

Se é certo que o comboio, o principal meio de transporte da época, não descia além de Casével (Castro Verde), somente no fim do século XIX a praia da Rocha adquiriu algum destaque no panorama nacional.

Para tal, contribuíram os trabalhos de Júlio Lourenço Pinto, em “O Algarve – Notas Impressionistas”, publicado em 1894, ou as deslumbrantes descrições de Manuel Teixeira Gomes, nos seus livros.

Já nos primeiros anos do século XX, adquirem algum relevo, sempre ténue, as praias de Lagos, Albufeira e Monte Gordo.

Só em 1915, com a realização do Congresso Regional Algarvio, que já aqui aflorámos noutro artigo, as potencialidades turísticas da região ganharam algum destaque no contexto nacional.

É justamente a promotora do Congresso, a Sociedade de Propaganda de Portugal, criada em 1906, que vai dar à estampa em 1918, um guia intitulado “As nossas Praias – indicações gerais para uso de banhistas e turistas”.

O pequeno livro de quase 100 páginas tinha como objetivo “chamar as atenções gerais para as utilidades e belezas naturais do nosso país” e logo de coligir e coordenar “dados e informações [que] por aí correm dispersos acerca das praias de Portugal, (…) tudo quanto possa elucidar sucintamente, a portugueses e a estrangeiros, acerca do número, do valor e da variedade das nossas estações balneares, muitas das quais, sem nada ficarem a dever às mais afamadas praias do estrangeiro”.

Procurava, assim, dar a conhecer as diferentes praias repartidas pelas várias províncias, sem perder a oportunidade de criticar aqueles que, “apesar de possuir no seu país praias de primeira ordem”, não deixavam de “preferir uma ou outra praia estrangeira para lá deixarem o ouro que tão conveniente e patriótico seria gastar de preferência” em Portugal.

Foram assim elencadas 50 praias do Minho ao Algarve. Vejamos, pois a província sulina, à qual foram dedicadas 12 páginas.

Com um clima temperado, a região do Algarve era apontada como “regularmente sadia”, apresentando a costa “magníficas praias”, onde raras vezes o banhista deixava de tomar banho por causa do estado do mar.

A primeira nomeada foi Albufeira. Considerada regular, era muito concorrida, principalmente nos meses de Setembro e Outubro.

Na vila, não obstante ser reconhecida como uma das “mais comerciais de toda a província”, não existiam hotéis, apenas duas hospedarias modestas, pertença de António Vieira e Bernardino da Silva.

O aglomerado urbano encontrava-se dividido pela ribeira, em duas partes, comunicando ambas por uma ponte de apenas um arco. O peixe era muito abundante e saboroso, pelo que ali demandavam pescadores do Algarve e do Alentejo.

Na costa, existiam 7 armações de pesca de atum e sardinha, bem como pescadores que se dedicavam à arte de xávega, empregando no total cerca de 700 homens.

Além do pescado, o comércio repartia-se pelos figos, alfarroba, amêndoa, ovos e obras de palma e esparto.

Anualmente, realizavam-se duas feiras, a 3 de Fevereiro e 15 de Agosto. Entre as curiosidades a visitar, constavam o castelo, “restaurado em parte”, onde se encontravam alojadas algumas repartições públicas, a igreja matriz (cujas obras ainda decorriam), a caverna da Cova do Xorino, o hospital e a capela de Nossa Senhora da Orada.

Seguiu-se Armação de Pêra. Então pertencente à freguesia de Alcantarilha, foi classificada como “excelente praia de banhos”, muito frequentada na estação balnear não só pelos habitantes da localidade, como das limítrofes.

Na aldeia, existiam várias adegas, fábricas de conservas de peixe e de cordoaria, estabelecimentos comerciais e industriais de diversos géneros, empresas de armações de pesca e calafates.

A vida do banhista decorria ali “sem ostentações faustosas e sem o bulício que outras praias proporcionam, em relativo socego e descanso de corpo e espírito.”

Não foi feita referência a casas de pasto na aldeia, embora as indicasse em São Bartolomeu de Messines e São Marcos da Serra, “arredores sobremaneira apreciáveis”. Já em Silves, além da história da cidade, fazia referência a três hotéis (Central, Macário e Silvense) de serviço regular (2ª ordem).

Carvoeiro constituía a terceira praia sugerida. Povoação piscatória, com “uma bela praia de banhos e excelentes casas de habitação, tanto permanente como temporária”.

Durante o Verão, funcionava um casino com interessantes diversões e com todas as comodidades para os banhistas.

Construído por Patrício Eugénio Júdice, era então, em 1918, explorado pela sua viúva. Nas imediações, localizavam-se quatro armações de sardinha e uma de atum. O principal comércio da área era vinho, figo, amêndoa e alfarroba, que exportava com profusão.

Tinha ainda indústrias de conserva de sardinha e atum e diversas fábricas de louça ordinária, bem como lagares de azeite.

Só existia um hotel e uma hospedaria, mas em Lagoa. Distância que os banhistas faziam de carro ou a pé, às primeiras horas da manhã.

Também na sede de concelho havia um Ateneu, onde eram permitidos jogos legais, leitura de jornais e revistas e se realizavam, de quando em vez, “diversões instrutivas, soirées, etc.”

Sucedia-se a Praia da Luz, em Lagos. Tida como “sobremaneira interessante”, era “uma das mais lindas e desafogadas praias do nosso litoral”, ou não apresentasse “pontos de vista de uma superior beleza, que jamais nos podem esquecer”.

Motivos que ali levavam extraordinária concorrência, não só de algarvios, famílias do Baixo Alentejo, mas de Espanha, também.

Existia um casino, de iniciativa de António Santos, no qual eram promovidas as diversões típicas. Aos domingos e dias de folga, decorriam “bailaricos e descantes”.

O “algarvio gosta de música e ama a dança”, apontava o guia. Eram, pois, comuns os bailes de roda e mandados, um pouco por todo o lado.

Nas imediações da praia, localizavam-se mais de oito armações de pesca. Em Lagos, existia o Teatro Gil Vicente, porém com raros espetáculos, apenas aquando as digressões de artistas de Lisboa, um salão cinematográfico e o Salão Clube Artístico Lacobrigense.

Na cidade, existia o único hotel, o Miquelina. Foram ainda feitas breves referências às praias de S. Roque, com 4 quilómetros de comprimento, da D. Ana, dos Estudantes e a do Pinhão.

Das quatro, a dos Estudantes era a mais frequentada, todavia, nenhuma suplantava a “bela praia da Luz”. De qualquer forma, os turistas que demandassem a Lagos não podiam deixar de degustar as deliciosas frutas que por ali se comercializavam, principalmente a “sua soberba uva de mesa, deveras primorosa”.

Da Praia da Luz, o guia saltou para a extremidade nascente da região, Monte Gordo. Povoação piscatória e “uma excelente praia de banhos, deveras interessante e muito concorrida pelos povos das imediações e uma ou outra família espanhola”.

Com diversas casas para “alugar na época própria”, mas sem hotéis. Estes somente em Vila Real de Santo António, onde existiam três, o Almirante, Central e Lusitano, duas hospedarias, Antónia de Jesus e António Trindade, e as Estalagens do Damião, do Bandeira e do Moita.

No que toca a divertimentos na sede de concelho, existia o Teatro Alexandre Herculano, o Grémio Lusitano e as Bandas Musicais 1º de Maio e 5 de Outubro.

Vila Real era o principal porto da província, considerado como a “Bolsa do Atum”, tinha ainda numerosas fábricas de conserva, as mais importantes da região.

A derradeira praia do Algarve e do livro foi a Rocha. “Praia verdadeiramente explendida e que se nos afigura destinada ao mais prospero futuro”, vaticinava o guia.

Com um “clima dulcíssimo mesmo no Inverno, com o seu céu quasi sempre livre de nuvens, com as suas paisagens tão lindas e tão características”, constituía uma zona privilegiada para o turismo.

Até porque, no Inverno, as temperaturas eram sempre amenas e muitos superiores às estações então em voga no estrangeiro, nomeadamente Biarritz e mesmo a Côte d’ Azur.

A frequência normal de banhos era de Agosto a Outubro. Ali havia um hotel, um casino e bastantes construções, enquanto muitas outras se projetavam.

Aventava-se ainda a ligação a Monchique de uma linha elétrica, bem como uma avenida marginal, pelas falésias, até Alvor.

Quanto a Portimão, era das “povoações mais industriais e comerciais do Algarve”, a cujo porto acediam dezenas de navios para carregar os géneros exportados dos concelhos de Monchique, Lagoa, Silves, Albufeira e Lagos.

Na sede de concelho, destacavam-se o Hotel Ferrari, bem como a hospedaria de Sanção de Jesus.

A nível de distrações, havia o Teatro de S. Camilo, o Salão Cinematográfico, do Grémio Familiar e dos clubes Artístico e União.

O principal comércio era o figo, amêndoas, sal, laranjas, aves, peixe, obras de palma e esparto, cortiça, mel, alfarroba, conservas de peixe, legumes e frutas.

Todas estas praias eram servidas pelo caminho de ferro, com relativa proximidade, à exceção de Lagos. A via férrea quedava-se pelo Parchal (Portimão-Ferragudo), mas dali partiam várias diligências, para a Praia da Rocha, para a Praia da Luz, durante a “temporada dos banhos”, e diariamente para Lagos, Aljezur, Vila do Bispo e Monchique.

Montegordo, além do apeadeiro próprio, podia usufruir, a partir de Vila Real de Santo António, de ligações através de vapor a Alcoutim, Pomarão e Mértola, exceto aos domingos.

Albufeira e Armação de Pêra serviam-se das gares ferroviárias de Albufeira e Alcantarilha, respetivamente, das quais saíam diligências e outros veículos para transporte de passageiros e bagagens. O mesmo sucedia com Carvoeiro, relativamente à estação de Lagoa-Estômbar.

Foram assim seis as praias selecionadas no Algarve de 1918, com as da Rocha e Luz a ser apontadas como as eleitas. Teria, por aqueles anos, também alguma concorrência, apesar de não elencada, a praia de Quarteira.

Volvidos 100 anos, tudo se alterou e as praias da região, hoje mais de 130, suplantam todas as congéneres do país.

Até a época balnear, então reduzida de Agosto/Setembro a Outubro, se prolonga agora de Maio a Outubro. Pela costa algarvia, já quase não existem hoje armações de pesca e há pouquíssimas fábricas de conservas nos aglomerados piscatórios, enquanto também as obras de esparto e palma desapareceram.

Dificilmente, em Lagos, se apreciarão uvas de mesa ali colhidas, mas a qualidade do peixe, a luz, a tranquilidade do mar mantiveram-se.

É certo que muito foi descaraterizado, nos últimos 50 anos, mas o Algarve de hoje, pleno de hotéis e de bulício, continua a encantar residentes e turistas.

Boa praia!

 

Nota: As imagens utilizadas são meramente ilustrativas e correspondem a postais ilustrados.
Nas transcrições, manteve-se a ortografia da época.

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação

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