Crónicas de uma escavação arqueológica: E por debaixo dos mortos, estiveram antes os vivos…

Às 7h da manhã, a paisagem da ria e do mar em frente a Cacela é de encantamento. A equipa […]

Achado de recipiente na Casa II do Bairro Islâmico – Foto de Cristina Tété Garcia

Às 7h da manhã, a paisagem da ria e do mar em frente a Cacela é de encantamento. A equipa de arqueologia chega em silêncio, interrompido apenas pelos carrinhos de mão que transportam os materiais. Observa-se as áreas escavadas para rever os objetivos do novo dia de trabalho. Cada um pega no seu material de escavação: balde, pico, pá, escova e colherim.

O terreno está dividido em quadrados numerados como na batalha naval… 19E, 18D, etc. Cada participante da escavação concentra-se no seu quadrado, escava em sintonia, acertando o seu trabalho com o do vizinho.

A escavação arqueológica segue o princípio da sobreposição estratigráfica. Ou seja, geralmente, na deposição de camadas no solo, o estrato mais antigo está por debaixo do estrato mais recente.

A terra encara-se com respeito, um mistério que se vai desvelando pouco a pouco, através do rigor da escavação, do cuidado com os detalhes, do registo atento no caderno de campo. E as etiquetas de identificação de materiais ensacados, as listas desses sacos, as fichas das diferentes camadas de terra — que os arqueólogos denominam de unidades estratigráficas —, as fichas de registo de muros, dos derrubes das paredes e coberturas das casas, a recolha de amostras.

Fragmento de talha islâmica decorada. Achado da campanha de 2018 – Foto de Maria João Valente

E a conversa anima-se. Vão-se trocando impressões sobre o recipiente a que poderia ter pertencido o fragmento cerâmico ainda agora encontrado (uma talha decorada, talvez?), sobre a delicadeza da sua decoração, o tipo de revestimento, a identificação dos animais a que pertencem os pequenos ossos, a diversidade de conchas…

Por debaixo das terras lavradas em período moderno, encontramos a Necrópole Cristã de que falámos na crónica anterior (datada da segunda metade do séc. XIII e muito provavelmente em uso durante um ou dois séculos).

Por debaixo desta “cidade dos mortos” — é o que significa o termo “necrópole” —, encontramos o espaço dos vivos: um bairro islâmico construído no período Almóada, durante os séculos XII e XIII.

A sequência de camadas (unidades estratigráficas) observadas no Poço Antigo em 2001. Na base, podem ver-se pedras pertencentes às estruturas habitacionais do Bairro Islâmico – Foto de Cristina Tété Garcia

Este bairro encontra-se situado fora do perímetro do Castelo de Cacela, junto à ribeira das hortas. As casas islâmicas assentam diretamente no substrato rochoso (datado do Miocénico), que terá sido cortado em socalcos. Trata-se de uma engenharia muito usual nos bairros islâmicos e existem vários paralelos no Al-Andalus. A Sul, a disposição do bairro segue paralela à falésia, no sentido poente-nascente.

Parte deste bairro terá, aliás, sofrido ampla destruição pela erosão da arriba, situação muito agravada pela construção do caminho moderno que dá acesso à praia. Não conhecemos ainda o seu limite norte, mas, das escavações já feitas, sabemos que existem arruamentos, delimitados por habitações e muros. Estas ruas possuíam condutas de escoamento das águas das chuvas, demonstrando o planeamento na sua construção.

Vista genérica sobre o Bairro Islâmico do Poço Antigo em 2001 – Foto de Cristina Tété Garcia

As habitações encontradas são típicas do mundo medieval islâmico. Com poucas aberturas para o exterior (a vivência doméstica é privada e a casa é do domínio essencialmente feminino), estas vivendas desenvolvem-se em torno de um pátio descoberto, rodeado de outros compartimentos como o átrio, o salão e a cozinha.

Nelas não encontrámos poços ou outros sistema de captação de águas para uso doméstico. A proximidade da ribeira facilitava o acesso a este importante elemento. Existe um poço nas imediações que poderá datar da época em que estas casas foram habitadas.

O embasamento das casas era de muros construídos em alvenaria e a parte superior destes muros era feita em taipa, uma construção de terra.

Com exceção dos pátios, os compartimentos tinham pavimento em terra batida e cobertura de telha de canudo assente em massa de cal, sobre caniçado depositado sobre barrotes de madeira. Um tipo de construção que perdurou até à contemporaneidade.

Por vezes, aplicaram-se fixações extra (pregos, barro) para evitar a destruição do telhado pelos fortes ventos costeiros a que estava sujeito.

Foram até agora identificadas quatro estruturas: três seriam habitações, outra, com disposição um pouco diferente, pode ter sido um armazém.

Um dos casos mais interessantes é a Casa I, localizada no extremo nascente do bairro, mais próxima da ribeira. De planta quadrangular, tem uma área de aproximadamente 80 m2. A entrada para o átrio/salão é feita por um vão de pouco mais de um metro.

No centro da casa, impera o tal pátio central, em que o pavimento é feito de grandes lajes de calcário, xisto e grés. Este pavimento parece ter sofrido abatimento durante um sismo. No pátio, foi também encontrado um fuste de coluna em mármore da época romana, que terá servido de assento para os seus moradores.

Vista parcial da Casa I do Bairro Islâmico. Aqui se pode ver o pátio central com pavimento de grandes lajes – Foto de Cristina Tété Garcia

A cozinha situava-se a poente do pátio. Tinha planta retangular e numa das suas paredes foram encontrados nichos para arrumações miúdas. Num dos seus cantos, a lareira de forma circular era feita de pedaços de telhas carbonizadas.

Ao lado, identificámos um amontoado de cinzas e carvões com restos cerâmicos e várias conchas côncavas de vieira (lembrem-se que ainda hoje temos as chamadas “conchas da sopa”).

Curiosamente, para lá de alguns fragmentos de recipientes cerâmicos, como cântaros para a água, panelas e caçoilas para cozinhar refeições, foi também encontrado um brinco de campânula esférica — alguém o terá deixado cair, quiçá durante a preparação de um jantar.

Gradualmente, o bairro foi abandonado. Para trás, ficaram os restos das últimas refeições, peças e recipientes, que os habitantes não levaram consigo. Ficou lixo, que tão bem testemunha a vida do passado.

Pormenor da lareira da Casa I do Bairro Islâmico – Foto de Cristina Tété Garcia

A arqueologia do Bairro Islâmico do Poço Antigo diz-nos que foi habitado por gentes que parecem ter-se dedicado principalmente aos afazeres da terra, mas também a tarefas ligadas ao mar. Uma comunidade que, na sua alimentação, misturava recursos terrestres — encontrámos muitos restos de ovelhas e cabras, coelhos e galinhas — e recursos marinhos — como a ostra, berbigão, raia e dourada.

A arqueologia diz-nos isto, mas pode dizer-nos mais ainda. Mas disso falaremos na próxima crónica…

 

As crónicas anteriores sobre a arqueologia de Cacela Velha podem ler-se aqui e aqui.

Se quiserem visitar a escavação, o Dia Aberto ao público irá decorrer a 9 de Julho, das 10h00 às 13h00. Serão muito bem-vindos.

 

Autoras: Cristina Tété Garcia é técnica superior da Direção-Regional de Cultura do Algarve.
Maria João Valente é professora auxiliar na Universidade do Algarve.
Ambas coordenam os trabalhos arqueológicos de Cacela e são investigadoras do CEAACP (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património).

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